Ucrânia: a provocação cada vez mais clara de Washington

Invasão russa é inaceitável e precisa acabar, mas a paz passa por reconhecer os fatos: EUA apoiaram o golpe em Kiev e o massacre de 14 mil ucranianos do Donbas. Personificar o horror em Putin mal disfarça a ojeriza ao mundo multipolar…

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Por Jackson Lears, no London Review of Books | Tradução de Maurício Ayer

A invasão da Ucrânia pela Rússia é uma catastrófica violação das leis internacionais. Os EUA e sua Otan devem fazer todo o possível para conduzi-la a um fim pacífico o mais rápido possível, promovendo o cessar fogo e a neutralidade da Ucrânia. Mas os obstáculos para a paz são complexos e não podem ser simplesmente atribuídos à Rússia. A guerra de Putin não começou em 24 de fevereiro de 2022. Foi prefigurada já em 1996, quando os EUA anunciaram a sua determinação em expandir a Otan para o leste, apesar dos avisos de observadores experientes como George Kennan e William Burns (agora diretor da CIA de Biden) que a medida exacerbar as preocupações de segurança russas. A situação agravou-se em fevereiro de 2014 com o golpe apoiado por Washington contra Viktor Yanukovych, a tomada do movimento Maidan por nacionalistas de extrema-direita e a instalação de um novo governo liderado por Arseniy Yatsenyuk – que incluiu ideólogos de direita em quatro cargos do gabinete.

Em semanas, o golpe havia provocado uma rebelião separatista entre os ucranianos de etnia russa no Donbas, que tinham fortes razões para temer a agenda cultural antirrussa do novo governo. Durante quase oito anos, o exército ucraniano – com o batalhão Azov, de extrema-direita, na vanguarda – tem tentado reprimir a revolta. Catorze mil pessoas morreram, incluindo mais de quarenta manifestantes pacíficos que foram trancados no edifício de um sindicato, onde foram queimados vivos ou saltaram das janelas. Em vez de denunciar as atrocidades, os políticos estadunidenses entraram com tudo no modo Guerra Fria, evocando o clichê mais desgastante daquele período: “Os Estados Unidos ajudam a Ucrânia e o seu povo”, disse o deputado Adam Schiff em janeiro de 2020, “para que possamos combater a Rússia ali e não tenhamos de combatê-los aqui”.

O apoio militar dos EUA à guerra ucraniana contra os separatistas, combinado com manobras da Otan nas fronteiras da Rússia e a obstinada insistência com a adesão de facto (se não de jure) da Ucrânia à aliança, só pode ser descrito como uma provocação sustentada e deliberada de um rival poderoso. Não foi surpresa quando Putin finalmente respondeu, reconhecendo e protegendo as repúblicas separatistas em Donbas. Infelizmente, ele foi além, gerando raiva nos EUA, UE e em outras regiões e países. A atmosfera está agora envenenada por discursos militaristas, incluindo a exigência ignorante e irresponsável de uma zona de exclusão aérea – o que exigiria que as forças dos EUA/Otan abatessem aviões russos, arriscando provocar a Terceira Guerra Mundial.

Por trás daquilo que Denis Johnson chamou de “árvore de fumaça” criada pelo olhar da segurança nacional e seus estenógrafos da mídia, é impossível saber o que se está acontecendo na Ucrânia. Poucos jornalistas conseguem fazer reportagens no leste do país, onde ocorre a maioria dos confrontos, e não há qualquer reconhecimento do amplo papel da extrema-direita na política e nas forças armadas ucranianas. A ironia é que, há anos, os liberais estadunidenses ficam obcecados com tudo o que possa ser vagamente rotulado como fascismo. Apenas a Ucrânia está liberada do escrutínio, talvez porque na atual mitologia estadunidense o principal neofascista do mundo é Vladimir Putin. Graças a este louco, Robert Reich anunciou, “o mundo está hoje assustadoramente fechado em uma batalha até a morte entre a democracia e o autoritarismo”. Em vez de enfrentar o grande realinhamento global que está em curso, com a convergência de Rússia, China e Índia, os estadunidenses continuam ligados às visões do Armagedom – o desejo de morte no coração do delírio imperial.

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