A nova geopolítica dos Jogos Olímpicos

Como a China projetou-se, após o fim da URSS, como potência ao encalço dos EUA. As desigualdades (e abismo de medalhas) entre países ricos e pobres. No Brasil, muito mudou com o bolsa-atleta; Mas só vida digna despertará potencial esportivo

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Por Daniel M. Huertas | Imagem: Ernie Barnes

Se a geopolítica procura compreender e analisar a distribuição e correlação de poder pelo mundo, é possível afirmar que existe uma “geopolítica olímpica”? A resposta é positiva, muito por causa do alto valor estratégico que o esporte comporta, seja em ações de soft power, de política pública ou simplesmente como um indicador do índice de desenvolvimento de uma sociedade. Nesse aspecto, os Jogos Olímpicos possuem a capacidade de extrapolar o conjunto dos binômios técnico-tático e físico-emocional, alçando os esportes a um outro nível de apreensão, reflexão e análise.

A própria história dos Jogos da Era Moderna, inaugurados na Grécia em 1896 como um ideal de confraternização e entrelaçamento dos povos pela prática e competição esportivas, é recheada de fatos e eventos que comprovam o seu envolvimento com a política, mesmo que o objetivo central e a narrativa do Comitê Olímpico Internacional (COI) não sejam exatamente esse. O duplo boicote ocorrido nos anos 1980 – Estados Unidos, em Moscou/1980, e União Soviética (URSS), em Los Angeles/1984 – foi o auge de um período no qual a busca por medalhas também era embalada por toda a simbologia da Guerra Fria.

O Muro de Berlim caiu em 1989 e, na Olimpíada seguinte (Barcelona/1992), a antiga URSS competiu com o nome de Equipe Unificada, representação esportiva da temporária Comunidade dos Estados Independentes. Esta era composta por 12 das 15 ex-repúblicas soviéticas, já que Estônia, Letônia e Lituânia obtiveram o direito de disputar os Jogos pelos seus respectivos comitês olímpicos após a sua independência política. Mas, no século XXI, não demorou muito para que a Olimpíada se tornasse um dos espelhos de outra grande corrida pelo poder em escala global, substituindo-se apenas a antiga URSS pela República Popular da China.

Essa percepção ficou mais nítida a partir dos Jogos de Pequim, em 2008, quando o país asiático, já em franco e maduro processo de desenvolvimento econômico, tecnológico e social, precisava escancarar ao mundo uma outra faceta dessa trajetória de ascensão. Além da realização impecável daquele evento, sob a chancela do Partido Comunista Chinês, pela primeira vez os EUA foram desbancados no quadro geral de medalhas no período pós-Guerra Fria, levando-se em consideração o critério oficial adotado pelo COI – ou seja, o maior número de medalhas de ouro.

Interessante notar, na tabela abaixo, como vem se desenvolvendo o crescimento esportivo chinês, inserido como uma variável-chave de seu projeto nacional. Em Seul, na última Olimpíada que contou com a participação da URSS, em 1988, a China ficou na 11ª colocação, com 28 medalhas no total (5 de ouro). Logo acima dela vieram, em ordem crescente, Itália, França, Romênia, Bulgária, Alemanha Ocidental, Hungria, Coreia do Sul, EUA, Alemanha Oriental e URSS.

Quadro de medalhas dos Jogos Olímpicos (1988-2020)

De Barcelona a Atenas, no período 1992-2004, a China pulou da 4ª para a 2ª colocação. A coroação veio em território chinês com a organização da 29ª edição da Olimpíada. Nos três eventos subsequentes, os EUA retomaram a dianteira, mas sempre acompanhados de perto pela China – 2º lugar em Londres/2012 e 3º no Rio/2016. Em Tóquio, inclusive, o país asiático liderou o quadro até o último dia de competição, quando então foram superados pelo rival com a conquista de quatro ouros (ciclismo, boxe, basquete feminino e vôlei feminino).

Entretanto, a análise da “geopolítica olímpica” abre espaço para outros fatores. Nos ginásios, arenas, piscinas e estádios, atletas e comissões técnicas nada mais são do que um enorme reflexo, televisionado ao vivo para todo o planeta, da organização e regionalização do espaço mundial. Assim, a dicotomia entre países subdesenvolvidos e desenvolvidos torna-se explícita, pois o sucesso no campo esportivo depende de material humano, planejamento e recursos financeiros, geralmente entrelaçados pelo apoio estatal. Dos 206 comitês olímpicos nacionais1 atualmente reconhecidos pelo COI, apenas a Coreia do Norte decidiu não participar por causa da pandemia do coronavírus.

Cabe lembrar que, oficialmente, a Federação Russa disputou a competição sob a bandeira do Comitê Olímpico Russo (ROC, na sigla em inglês), pois fora banida das competições até o fim de 2022 pela Corte Arbitral do Esporte, consequência dos sucessivos escândalos de doping de atletas russos. O COI também permitiu a participação de uma Equipe Olímpica de Refugiados, mas foi comum a presença de imigrantes naturalizados e de filhos de imigrantes em várias equipes, sobretudo da Europa. Pelo menos esse fato pode ser visto como um aspecto positivo dos fluxos migratórios em massa, verificados nas últimas décadas, que geralmente redundam em tragédias ou em arrefecimento do racismo estrutural.

Dos 204 comitês que estiveram em Tóquio, 93 (ou 45,58%) ganharam pelo menos uma das 1.080 medalhas disputadas e, desses, apenas 65 (ou 31,86%) abocanharam ao menos uma das 337 medalhas de ouro. Os outros 111 comitês (ou 54,41%) não subiram ao pódio: 41 da África, 26 da América Latina, 20 da Ásia, 14 da Oceania e 10 da Europa. Mas como foi essa distribuição de medalhas pelo mundo?

A ideia aqui é contrapor o chamado mundo desenvolvido ao subdesenvolvido, a fim de evidenciar a distribuição desigual dos louros olímpicos. E, de modo bastante pragmático, estamos incluindo no primeiro grupo, por continente, EUA e Canadá (Américas); China, Japão, Coreia do Sul e Israel (Ásia); os países da Europa Ocidental (a porção mais rica daquele continente) e Austrália e Nova Zelândia (Oceania). O escalão dos subdesenvolvidos é composto por América Latina, África, Ásia (exceto China, Japão, Coreia do Sul e Israel), Oceania (exceto Austrália e Nova Zelândia) e Leste Europeu (zona da antiga Cortina de Ferro, a porção mais pobre daquele continente). A tabela abaixo sintetiza a brutal superioridade do grupo desenvolvido, tanto em número de medalhas (ouro e total) quanto em relação ao número de comitês olímpicos medalhistas.

Síntese da distribuição das medalhas da Olimpíada de Tóquio

Dessa forma, fica bastante visível que a ampla maioria dos comitês olímpicos que sequer subiu ao pódio (106 de 111) figura no grupo subdesenvolvido. Das 1.080 medalhas distribuídas, nada menos do que 669 foram abocanhados por um seleto rol de 24 países do grupo desenvolvido, evidenciando uma relação país/medalha bastante desigual. As limitações para a alavancagem do crescimento esportivo dos países pobres nada mais revelam do que um simulacro da situação em que vivem no cotidiano: déficit habitacional, serviços precários de saúde e educação, posição desvantajosa na chamada divisão internacional do trabalho (geralmente exportadores de commodities e mão-de-obra barata e importadores de capitais, tecnologia e produtos de alto valor agregado), altas taxas de desemprego, moeda fraca e falta de soberania e voz ativa nos principais foros decisórios internacionais. Uma espécie de periferia receptora dos desígnios do chamado mundo globalizado.

Muitos desses países não possuem uma cultura esportiva pelos motivos supracitados, que acabam brecando a sua simples prática. Afinal, fica difícil se dedicar aos esportes quando a dignidade humana fica reduzida a expectativas frustradas e falta de esperança generalizada. Outros, talvez por motivos de ordem sociocultural, não enxergam nos esportes o potencial que carregam por si só, caso de alguns países muçulmanos e da Índia. Afinal das contas, é preciso reconhecer que a competição olímpica em espaço ampliado é uma criação do mundo ocidental, ornada pelos avanços da Segunda Revolução Industrial no final do século XIX. O desenvolvimento capitalista, cuja essência é alimentada pelo desejo e necessidade de competir, viu nos esportes – e nos Jogos Olímpicos – uma forma de aproximar os homens do desempenho perfeito, ou seja, de acordo com o lema olímpico, “mais rápido, mais alto, mais forte” (citius, altius, fortius).

Alguns países periféricos conseguiram, por motivos diversos, atingir um grau de excelência em esportes específicos, caso dos jamaicanos nas provas de velocidade e de quenianos e etíopes nas provas de fundo, ambas no atletismo. Cuba e boa parte das nações oriundas da antiga esfera de influência soviética ainda demonstram desempenho acima da média, herança do legado do valor dado ao socialismo para a prática do esporte, mas pouco afeita às bases monetaristas que a caracterizam nos países de ponta. Claro que essa situação vem sofrendo mudanças substanciais com o avanço de um sistema de competições, premiações e ações de marketing em rincões esportivos até então distantes da ingerência do dinheiro, gerando um verdadeiro mercado global esportivo com calendário regular e instituições forjadas para o seu fomento e gestão.

O caso brasileiro é peculiar diante do alto potencial para a alavancagem esportiva no país, principalmente pela expressividade da população jovem que estaria apta à prática de alguma modalidade; da presença de alguns clubes de referência na formação e desempenho de atletas (como o Esporte Clube Pinheiros, por exemplo) e pelas possibilidades que historicamente se apresentam aqui e acolá de atletas diretamente bancados por parentes. O quadro analítico fica completo ao se acrescentar a irrelevante sinergia com as universidades (mola propulsora do esporte olímpico nos EUA) e a supervalorização do futebol a partir da segunda metade do século passado, na qual muitos especialistas afirmam ter contribuído para atrofiar os demais esportes, então tidos como amadores.

Essa situação, entretanto, vem sofrendo gradativas alterações. Ficou comprovado que se houver vontade política, planejamento e garantia de recursos perenes os resultados aparecerão. Em 2005, o governo Lula criou o maior programa federal de fomento ao esporte olímpico, batizado de Bolsa Atleta, amplificando uma parcela do tão necessário braço estatal para o desenvolvimento esportivo do país. Trata-se de uma das principais iniciativas mundiais de repasse de verba diretamente aos atletas, sem a intermediação de clubes, federações ou confederações. Em Tóquio, 240 dos 302 componentes do Time Brasil (79%) dispuseram do benefício. Em 19 das 35 modalidades olímpicas, 100% dos atletas eram bolsistas, caso da canoagem e ginástica artística, por exemplo.

Mas o fato é que o valor destinado pelo programa sofreu reduções entre o penúltimo e o último ciclo olímpico, como demonstra a tabela abaixo. Em 2020, o governo federal não lançou edital do Bolsa Atleta, e tampouco neste ano, retirando a chance de abrigar novos pretendentes. Mas, segundo informações divulgadas pelo Ministério da Cidadania, no ano passado foram mantidos os repasses mensais para 6.357 atletas das categorias Estudantil, Base, Nacional, Internacional e Olímpica/Paralímpica, além de 274 atletas do Bolsa Pódio2.

Mas ainda é pouco frente ao imenso potencial disponível, pois esporte de excelência depende também de apoio técnico, nutricional e psicológico, estrutura ideal de treinamentos e presença constante nas competições de alto nível mundo afora, demandando gastos com viagens. O Bolsa Atleta garante um piso mínimo ao atleta (R$ 3.100/mês), estimulando-o a se manter na prática esportiva em detrimento do mercado de trabalho. De qualquer forma, pode ser considerada como uma das variáveis que ajudaram no crescimento do desempenho brasileiro a partir de 2008, tanto no aspecto geral quanto na expansão das modalidades e da participação feminina, como demonstram as tabelas abaixo.

Se quiser adentrar a galeria das potências olímpicas, o Brasil também precisa atacar e mitigar os seus problemas estruturais. E essa tarefa hercúlea só se tornará viável na medida em que haja uma robusta e duradoura convergência de forças progressistas, fiadoras de um verdadeiro projeto nacional, no qual, antes de mais nada, o esporte seja inserido como uma ferramenta de desenvolvimento social, acoplada a estratégias que garantam o bem-estar geral da população brasileira, principalmente daqueles pertencentes às camadas mais vulneráveis.

Mas, é bom lembrar, o esporte também é alvo de muita hipocrisia por parte dos atores hegemônicos, na forma que lhes parecer mais conveniente. Aqui não entraremos no mérito da realização de um evento de grande porte em meio a maior pandemia dos últimos tempos, que já ceifou milhares de vidas em todo o planeta. Talvez por causa da força do dinheiro, o COI conseguiu convencer o governo japonês a hospedar os Jogos com a promessa de máxima segurança sanitária3, mesmo que com o adiamento de um ano, com a rejeição de grande parte da população do país e sem a presença de público nas arquibancadas. Na cerimônia de abertura, o tradicional lema olímpico ganhou a palavra “juntos”, como força simbólica de que a Humanidade é capaz de transpor obstáculos mesmo em tempos extremamente difíceis.

Mas é praticamente inviável sobrepor os ideais de solidariedade, confraternização e compartilhamento em um contexto dirigido brutalmente pelo individualismo extremo, pela ciranda financeira, pelo consumismo desenfreado ou, como diz o grande geógrafo Milton Santos, pela tirania do dinheiro e da informação. O esporte, sozinho, não apresenta as credenciais necessárias para tornar o mundo um lugar mais justo, harmônico e equilibrado; o desafio é muito mais complexo e abrangente do que o entrelaçamento simbólico dos cinco anéis olímpicos.

1 Onze comitês olímpicos nacionais não representam países independentes: Bermuda, Ilhas Cayman e Ilhas Virgens Britânicas são territórios ultramarinos britânicos; Porto Rico, Samoa Americana, Guam e Ilhas Virgens Americanas são territórios não incorporados dos Estados Unidos; Aruba é território autônomo holandês; Taiwan é uma “província rebelde” da China; Hong Kong é uma região administrativa especial da China; e a Palestina é um Estado de jure que reivindica a sua soberania.

2 Extraído do jornal O Estado de S. Paulo, Tóquio2020/E4, 27 jul. 2021.

3 No dia do encerramento do evento, o COI divulgou em nota oficial o balanço da estratégia adotada com rígidos protocolos para minimizar ao máximo a disseminação do coronavírus, a partir de 1º de julho, visando garantir a integridade de todos os envolvidos em sua realização. Foram detectados 430 casos de infecção por covid-19: 236 trabalhadores terceirizados, 109 dirigentes de federações e técnicos, 29 atletas, 21 voluntários, 25 profissionais de mídia e 10 funcionários do COI. Nova nota aumentou o número de infectados para 458 no dia seguinte. O Comitê Olímpico Brasileiro (COB) afirmou que ninguém de sua delegação, seja atleta ou da comissão técnica, foi infectado.

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Um comentario para "A nova geopolítica dos Jogos Olímpicos"

  1. Lincoln M Marciano disse:

    Excelente texto! Geopolítica e esporte ficou show!

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