Feminismo e Marx: sintonia e conflito

As sociedades devem ser reorganizadas a partir do trabalho? Ou o cuidado, centro da vida, deve ser também o da política? Há 200 anos, marxismo e lutas feministas vivem aproximações e divergências. Dossiê da revista Cult tenta situá-las

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> Este texto é parte da edição 282 da Revista Cult — parceira editorial de Outras Palavras. O número reúne artigos sobre o feminismo marxista. Veja o índice completo e conheça o espaço Cult no OP

Nos dois últimos anos, a crise econômica, política e social instalada no país desde 2018 foi agravada pela pandemia de covid-19, que matou milhões de pessoas ao redor do mundo e mais de 600 mil no Brasil. Deixando de lado a nefasta atitude do poder executivo no trato da pandemia, é interessante ressaltar como ficou visível a importância das atividades ligadas à preservação da vida, em escala privada ou pública. Comprovaram-se o tempo, a competência e a dedicação exigidos para providenciar e preparar alimentos, limpar a moradia, cuidar da roupa, educar, assistir os doentes. A somatória desses trabalhos tem sido conceituada por feministas marxistas como reprodução social: um conjunto de tarefas essenciais para a continuidade de cada humano e da espécie, logo, da própria sociedade, e que o patriarcalismo designa como “trabalho de mulher”, uma espécie de “não trabalho” invisibilizado.

A introdução das políticas neoliberais a partir da década de 1970 começou por solapar as conquistas do Estado de bem-estar social em várias democracias europeias, ao mesmo tempo que a privatização de empresas estatais reduziu os investimentos em equipamentos sociais, especialmente no setor da saúde e da educação, com especial prejuízo para as mulheres, que, via de regra, são as responsáveis pelas crianças e jovens. Além disso, o neoliberalismo não apenas acirrou as tendências inerentes ao capitalismo, como aumentou de forma exponencial o volume de meios de produção e ativos financeiros nas mãos de poucos e reduziu a esmagadora maioria da população à força de trabalho explorada.

“Enquanto as mulheres não forem livres as pessoas não serão livres”, pôster feito em serigrafia na década de 1970 pelo coletivo feminista inglês See Red Women’s Workshop, cujos trabalhos ilustram o dossiê Cult

Algumas novas características o diferenciam de fases anteriores do capitalismo, como a atual supremacia do capital financeiro e especulativo, superando os tempos em que o capital industrial dava as cartas. Enquanto em fases anteriores o “mercado” permanecia em uma esfera relativamente separada das demais instituições e aparelhos de Estado, como a escola, a Igreja e mesmo a família, o neoliberalismo é uma ideologia que transforma subjetividades e formata os seres humanos a fim de os transformar em “empreendedores e empreendedoras de si mesmos”. Nesse sentido, busca solapar as ideias de solidariedade, de projetos sociais, de defesa dos direitos, em todos os movimentos cujo objetivo é criar uma nova sociedade. Nas palavras da abominável ideóloga neoliberal, a inglesa Margaret Thatcher: “Não existe sociedade. Há homens e mulheres individuais e há famílias”.

Na América do Sul, o experimento neoliberal pôde ser aplicado em toda sua radicalidade após o brutal golpe de Estado comandado por Augusto Pinochet, em setembro de 1973. Todas as conquistas sociais do governo socialista de Salvador Allende foram abolidas, um processo selvagem de privatização aumentou a dependência do Chile em relação ao capital estrangeiro e reduziu a maior parte da população à pobreza. No Brasil, paradoxalmente, foi um sociólogo, considerado de centro-esquerda, quem se transformou no grande arauto da modernidade e do novo, privatizando grandes empresas a preço de banana e acelerando o ataque aos direitos trabalhistas em finais do século 20. Ao mesmo tempo, igrejas evangélicas, com sua teoria da prosperidade e seu repúdio aos movimentos sociais, constituem importantes agentes disseminadores não apenas do “empreendedorismo” como do neoconservadorismo.

Para tais forças reacionárias e conservadoras, o feminismo é um inimigo a ser combatido. As demandas feministas, como o direito de decidir sobre seu corpo e maiores investimentos públicos em equipamentos para as crianças, desde as creches, também englobam a preocupação com a violência que se alastra pela sociedade brasileira. A maior parte das mulheres sofreu algum tipo de constrangimento, dos mais educados aos mais selvagens. A antropóloga Rita Segato teorizou sobre o “mandato” que os homens recebem para submeter as mulheres, um mandato que se origina de diversas fontes, entre as quais as crenças religiosas, que se baseiam em uma visão patriarcal e bíblica do “deus pai todo poderoso” para doutrinar e subordinar a mulher ao homem. A desqualificação da mulher, mesmo na forma do elogio à doçura e a outras virtudes ditas femininas, serve tanto para diminuir seu valor no mercado de trabalho como para permitir que os homens, em abstrato, sintam-se autorizados a submetê-la. As mulheres têm lutado desde sempre. Mas foi apenas a partir da proletarização e da exploração do trabalho fabril feminino que as perspectivas emancipacionistas ultrapassaram a luta pelo direito ao voto.

A história do marxismo feminista tem suas origens no próprio desenvolvimento das lutas operárias na Europa, a partir de meados do século 19, e na participação de mulheres nos partidos socialistas e comunistas. A primeira geração de marxistas feministas contou com teóricas e militantes do peso de Rosa Luxemburgo, autora de um estudo ainda atual sobre a acumulação do capital. Clara Zetkin, ao mesmo tempo que organizava as trabalhadoras, editava o jornal Igualdade, foi deputada comunista e uma lúcida analista do fascismo. Alexandra Kollontai, em uma de suas obras, foi uma das primeiras a tratar das mudanças que deveriam ocorrer nas relações entre homens e mulheres.

Simone de Beauvoir dialoga com o marxismo em O segundo sexo, não obstante suas divergências com o marxismo economicista então dominante. Mas foi a psicanalista Juliet Mitchell quem primeiro ampliou a perspectiva marxista ao analisar as diferenças oriundas da divisão sociossexual do trabalho e o lugar ocupado pela mulher na reprodução biológica, na maternidade e na socialização das crianças em contraposição à esfera de produção econômica ocupada principalmente pelos homens. Seu trabalho pioneiro, publicado no Brasil em 1966 com o título Mulheres: a revolução mais longa, apresenta uma nova perspectiva feminista marxista. Também entre os anos 1965-75, a filósofa comunista Angela Davis denunciou e militou contra o racismo na sociedade estadunidense, mostrando suas conexões com a dominação capitalista.

No Brasil, Heleieth Saffioti foi uma acadêmica pioneira com seu livro Mulher na sociedade de classes, enquanto Lélia Gonzalez teve uma trajetória mais próxima à de Angela Davis por ser uma teórica que sempre atuou politicamente. O feminismo nascido na resistência à ditadura militar de meados dos anos 1970 era de esquerda, crítico do patriarcalismo, mas também do capitalismo. Suas militantes abriram caminhos importantes e conquistaram vitórias, como as consolidadas na Constituição de 1988, atuando sempre em uníssono com a luta pelas liberdades democráticas.

Com a queda da ditadura, houve uma dispersão de militantes históricas pelos partidos políticos, universidades e postos burocráticos, de modo que a militância em movimentos sociais arrefeceu. O retorno à militância se deu tanto pela organização de novos movimentos, como a Marcha Internacional das Mulheres e a organização de mulheres dentro do MST, como pela criação de grupos espontâneos em escolas e universidades. Os feminismos dos dias atuais apresentam um amplo espectro de bandeiras e organizações, incluindo os movimentos antirracistas e LGBTQIA+s, e utilizam canais de difusão como blogs e vídeos em redes sociais. Ao mesmo tempo, com a ampliação das oportunidades de formação, uma geração de intelectuais feministas está difundindo novas referências de análise e enfrentando o androcentrismo científico e político.

A diversidade teórica dos feminismos constitui o cerne dos textos escritos por nossas convidadas para este dossiê. Enquanto Claudia Mazzei Nogueira acentua a importância do marxismo para o feminismo, Bruna Della Torre, Daniela Costanzo e Isabella Meucci concluem que o marxismo precisa ser feminista se quiser ser radical. Danielle Tega faz um balanço acurado das teorias decoloniais, mostrando suas divergências internas e acentuando a necessidade de uma práxis feminista contra o Estado capitalista, racista-colonial e heterocispatriarcal. Na mesma linha, Rosane Borges mostra a importância de virarmos o jogo para que se avizinhe um mundo em que a vida de cada um/a e de todas/os efetivamente importe.

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