Como começar a necessária reparação às vítimas de covid

Organização de pessoas que sofreram efeitos da doença apresentam documento em que pedem punição aos responsáveis, respeito à memória dos mortos, políticas de saúde mental e criação de leis para evitar que torne a acontecer

Em outubro de 2021, a Avico montou um memorial em frente ao Congresso Nacional, em Brasília, para homenagear os 600 mil mortos na pandemia de covid-19. Foto Evaristo Sa/AFP
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Paola Faceta em entrevista a Gabriel Brito

“Eu não entendo que seja possível retirar o país da crise social e institucional sem a reparação e a responsabilização pela crise da covid-19. Seria praticamente a mesma coisa que foi feita quando anistiamos e permitimos que agentes da ditadura continuassem sem a devida responsabilização”. É assim que Paola Falceta, diretora da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas de Covid-19 (Avico Brasil), define o tamanho do dilema que está posto para que o Brasil realmente se livre da herança bolsonarista e reconstrua as tantas pontes que foram demolidas nos últimos tempos.

Na semana passada, a Avico foi a Brasília e se encontrou com o grupo de transição da saúde, que tenta reorganizar um ministério tomado pelo negacionismo, além do puro e simples desprezo pela vida, como simbolizado pela passagem do general Eduardo Pazuello na pasta. No encontro, a Associação entregou documento em que fala taxativamente sobre responsabilização e reparação. O termo remete a processos de transição de ditaduras a democracias e serve para ilustrar a dimensão dos traumas sociais causados pelo bolsonarismo.

“A responsabilização é mais por uma questão legal e jurídica, de cumprimento de leis que já existem e também criação de leis necessárias e jurisprudência. A questão da reparação é um pouco mais ampla e mais demorada. Ela é um conceito dos direitos humanos que vem como uma série de medidas, desde a criação de um museu a coletivos de profissionais da saúde mental para discutir em grupo o que foi vivido, para que a sociedade entenda que de fato houve um crime e não pode acontecer nunca mais”.

Na conversa com o Outra Saúde, Paola explica como se deu a articulação que culminou na organização da Avico, nascida da indignação de pessoas comuns que viveram suas próprias tragédias. Ela perdeu a mãe, outros perderam filhos, amigos, pessoas idosas e jovens. Os traumas são diversos e não podem cair no esquecimento, menos ainda numa retórica hipócrita de reconciliar o país a partir da impunidade de uma extrema-direita que abraçou a irracionalidade como método de governança. Até porque esta direita tem dado mostras de que não pretende se reconciliar com nada nem ninguém.

“Não vamos parar de sofrer por causa do luto, para cada pessoa é de um jeito. Uma coisa é eu ter perdido minhaa mãe, outra coisa é quem perdeu o filho com 29 anos, uma criança com 13. Essas dores nunca mais vão ser sanadas, mas a reparação é no sentido de que minimamente consigamos viver. E para isso nós precisamos de uma série de medidas. Desde sermos escutados a não ser novamente violados, não sermos ridicularizados em termos de saúde mental, termos acesso à saúde, trabalho para quem ficou desempregado, voltar a frequentar uma escola no caso dos órfãos”.

Paola também explica que as pautas da Avico e da própria questão da pandemia não se restringirão ao ministério da Saúde. Passam por questões trabalhistas, educacionais, previdenciárias. Milhões de vidas que mudaram de rumo a partir da aparição de um vírus e até hoje não foram reorganizadas. Em alguns aspectos, jamais poderão ser.

Por fim, nunca é demais lembrar: a pandemia ainda não acabou, morre uma quantidade diária de pessoas que não deveria ser considerada aceitável. Há toda uma banalização da morte a ser combatida e uma herança cujo descalabro ainda não terminou de ser inventariado.

“Eu tenho certeza que tem sido dado peso menor do que o real da pandemia de covid-19, principalmente com o negacionismo instituído no Governo Federal. Temos uma enorme e absurda subnotificação. Nós temos apagão de dados, falta de recurso. Nós temos todo um negacionismo de dizer que a pandemia não é nada. É uma gripezinha. As sequelas da covid longa e as mortes em consequência da covid longa, que não são contabilizadas”, destacou Pala.

Leia a entrevista completa de Paola Falceta ao Outra Saúde.

Como se formou e articulou a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19?

A Avico Brasil nasceu a partir do falecimento da minha mãe pela covid-19, dona Italyra, com 81 anos, aqui num hospital federal de Porto Alegre, auge do colapso de saúde, em 2 de março de 2021. Ao mesmo tempo, eu tinha contato com o Gustavo Bernardes, que também é um defensor de direitos humanos, mais direcionado à luta LGBTQIA. Ele tinha sido hospitalizado, entubado, até desenganado, mas conseguiu vencer a covid-19 e ficou em recuperação, com covid longa.

Temos experiência e formação acadêmica em direitos humanos, ele é advogado e eu assistente social. Aí a gente começou a pensar maneiras de defender essa população que estava completamente invisibilizada e abandonada pelo governo Bolsonaro, até chegarmos à conclusão de que devíamos criar uma associação e entrar com ações, contra a União, Bolsonaro, os ministros, contra quem quer que fosse. Por quê? Porque a gente estava percebendo que a via democrática era impossível, não havia diálogo nenhum.

O negacionismo estava muito grande no país. Fossem os governos do estado ou dos municípios apoiando esse absurdo, também só poderíamos caminhar por vias legais. É assim que a Avico Brasil nasce, com a colaboração de mais uma advogada trabalhista e dois bacharéis em política pública.

Naquele momento éramos a única associação com vítimas diretas da pandemia. Existia a ABRAVICO, uma associação nacional, mas o criador não tinha nenhuma relação com a covid. Ele fundou mais no sentido de defender a população do vírus. Depois veio a Associação Vida e Justiça, que também começou como uma indignação de vários militantes. Tivemos muitas adesões de políticos conceituados, ex-parlamentares, enfim, esse é o cenário de criação da Avico Brasil, em abril de 2021. Fora isso, também sou pesquisadora de Covid longa na Fiocruz e um dos meus coordenadores é Hermano Castro, também da Fiocruz e parte da equipe de transição.

Há conexões diretas como entidades representativas da saúde?

No início, não tínhamos conexões diretas até porque estávamos tentando nos organizar, mas logo, com a procura absurda de pessoas no Brasil inteiro, até porque nós éramos a única entidade disposta a isso, começamos a oferecer grupos de apoio aos enlutados, orientações jurídicas e começamos com o nosso terceiro eixo, que é o de controle e participação social. Aí sim começamos a ter conexões com as entidades de saúde, principalmente as de controle social.

Nós fizemos várias ações conjuntas com o Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre, Conselho Estadual do RS, inclusive foi criado um comitê em defesa das vítimas da covid. Depois começamos a participar juntamente com a Vida e Justiça de várias ações e reuniões do Conselho Nacional de Saúde. Ao mesmo tempo, começaram a nos chamar para outros conselhos, em outros estados. Nestes casos eram participações mais pontuais, com depoimento, parcerias, orientações. Aqui no Rio Grande do Sul somos participantes mais ativos mesmo, fazemos parte das construções da política pública relativas à covid-19 durante o ano inteiro.

Vocês se encontraram com a equipe de transição em Brasília. O que foi conversado e o que avalia do retorno obtido?

No ano passado tivemos uma ação em que passamos o dia inteiro no Conselho Nacional de Saúde e os conselheiros criaram a resolução, aliás a recomendação número 13-2021, com uma série de orientações que inclusive estão sendo discutidas na justiça e provavelmente agora vão ser apoiadas.

Naquele momento, tivemos de denunciar ao Ministério Público Federal, fazer reunião, audiência, junto com o Ministério da Saúde. A partir dessa resolução a gente já vinha falando sobre as medidas necessárias de mitigação da covid-19.

Como tínhamos todo esse trabalho anterior, havia uma documentação razoavelmente organizada que foi entregue para equipe de transição de saúde. Chegamos a contribuir com os GTs de transição de outras áreas e agora também contribuímos para o revogaço da Saúde, a respeito do qual temos um documento com uma lista de medidas administrativas do Ministério da Saúde que devem ser revogadas.

Há uma série de situações que até então nunca tivemos possibilidade de falar. Acredito que a equipe de transição, a exemplo do Arthur Chioro, foi extremamente sensível. E esperamos que de fato o desdobramento dessa reunião seja a aceitação pelo menos parcial de nossas demandas e que possamos iniciar um trabalho em conjunto a partir de 2023.

Vocês são enfáticos em exigir reparação e responsabilização. Como seria isso?

A responsabilização é uma premissa legal jurídica em relação a todas as violações de direitos humanos cometidas durante a pandemia de covid-19 pelo governo Bolsonaro. E também deve-se responsabilizar o próprio Bolsonaro e seus gestores em relação à pandemia. São duas esferas, uma é cível, contra a União, e a outra criminal, contra um grupo de pessoas que a gente sabe muito bem quem são, em especial depois da CPI da Pandemia e das coisas absurdas que foram cometidas.

Essa é a parte de responsabilização, que vem mais por uma questão legal e jurídica, de cumprimento de leis que já existem e também criação de leis necessárias e jurisprudência. A questão da reparação é um pouco mais ampla e mais demorada. Ela é um conceito dos direitos humanos. Para dar um exemplo: o holocausto, que tem um museu em sua memória. Nesse caso não precisamos só de um museu da pandemia, com uma mensagem para que não aconteça nunca mais. É importante, queremos e estamos lutando para isso, mas também pretendemos que a reparação seja no sentido de que as vítimas e os familiares de vítimas possam minimamente ter uma vida digna, sem esse sofrimento, a dor dessa tragédia que assolou tantas famílias. E a reparação vem como uma série de medidas, desde a criação de um museu a coletivos de profissionais da saúde mental para discutir em grupo o que foi vivido, para que a sociedade entenda que de fato houve um crime, que a gente não inventou isso e não pode acontecer nunca mais.

Trata-se também de evitar novas violências contra nós, no sentido de perseguição mesmo, porque sabemos que o bolsonarismo é uma vertente de neofascismo, de  nazifascismo e está muito aflorado. A gente acaba vivendo essa violência também, e entendemos que ela precisa ser minimizada, neutralizada.

Não vamos ter como parar de sofrer por causa do luto, para cada pessoa é de um jeito. Uma coisa é eu perder a mãe, outra coisa é quem perdeu o filho com 29 anos, uma criança com 13. Essas dores nunca mais vão ser sanadas, mas a reparação é no sentido de que minimamente consigamos viver. E para isso nós precisamos de uma série de medidas. Desde ser escutados a não ser novamente violados, não ser ridicularizados em termos de saúde mental, termos acesso à saúde, trabalho para quem perdeu trabalho, voltar a frequentar uma escola no caso dos órfãos. Em suma, é uma série de medidas de reparação, como colocamos em nosso documento.

Qual peso vocês concedem ao relatório final da CPI da Pandemia? Os 72 indiciamentos do relatório final devem ser referência do novo governo? Como encaminhar isso política e juridicamente?

A CPI teve um papel preponderante no levantamento e também na publicidade de crimes que estavam acontecendo em relação à pandemia de covid e eram minimizados e ridicularizados. Eram desacreditados, como se nós estivéssemos vivendo uma tragédia e fôssemos loucos, estivéssemos inventando aquela situação. A CPI deu voz às vítimas e isso foi muito importante, o que também reverbera agora no grupo de transição da saúde.

Mas eu acho que a CPI da covid, além de levantar questões fundamentais que têm a ver com corrupção, má utilização de recursos públicos, incompetência, negligência e crimes cometidos durante essa gestão, mostrou o aparelhamento do Estado em relação ao que aconteceu, por exemplo, com a Prevent Senior: o Estado foi usado por empresários como se fosse deles, com o ministério tentando emplacar o kit-covid, através de portarias e medidas administrativas, para beneficiar um grupo de empresários. Isso foi um absurdo, é totalmente antiético. Nesse sentido a CPI foi incrível, mas a gente de fato espera e gostaria que ela tivesse um desfecho melhor, diferente do que tem sido feito por MPF e PGR.

Gostaríamos que de fato os indiciados fossem investigados e essas pessoas fossem presas.

Há outras pautas relacionadas à pandemia no escopo de atuação da Associação?

As pautas relacionadas à pandemia de covid são transversais e múltiplas. Elas vão desde questões de covid na educação, na previdência, no trabalho, a questões trabalhistas, tanto dos trabalhadores formais quanto dos informais e da assistência social. Vai desde a previdência até o cuidado, a atenção e recursos para os órfãos e questões de direitos humanos. É amplo.

Portanto, quando falamos na atuação da Avico a gente sempre diz que ela atua em qualquer violação de direitos humanos cometida contra as famílias das vítimas, os sobreviventes da covid e os que ficaram com covid longa. Podemos falar de uma série de direitos humanos violados.

É possível retirar o país da crise social e institucional sem essa reparação e responsabilização?

Eu não entendo que seja possível retirar o país da crise social e institucional sem a reparação e a responsabilização da covid-19. Seria praticamente a mesma coisa que foi feita quando anistiamos e permitimos que agentes da ditadura continuassem sem a devida responsabilização. Eles tiveram um início de reparação com a comissão da verdade, algumas iniciativas dos governos mais progressistas, mas isso foi completamente cortado, destruído, desmantelado com avanço dos governos de direita a partir de Temer.

E com Bolsonaro não tem como a gente sair dessa crise, é impossível, até porque a gente não vai ficar quieto e vamos continuar mobilizados para alcançar essa responsabilização e reparação, nem que seja por organismos internacionais de direitos humanos, tribunal penal internacional e por aí vai.

Vocês diriam que está se dando pouco peso ao legado da pandemia na vida dos brasileiros? Como acredita que o coronavírus seguirá repercutindo no país?

Eu tenho certeza que tem sido dado peso menor do que o real da pandemia de covid-19, principalmente com o negacionismo instituído no Governo Federal. Temos uma enorme e absurda subnotificação. Nós temos apagão de dados, nós temos falta de recurso. Nós temos todo um negacionismo de dizer que a pandemia não é nada. É uma gripezinha. Nós temos todas as sequelas da covid longa e as mortes em consequência da covid longa, que não são contabilizadas.

Portanto, eu não tenho dúvida de que isso está sendo minimizado e nós precisamos cada vez mais dos movimentos sociais, das entidades, dos coletivos relacionados a direitos humanos, e também da academia, dos pesquisadores, para podermos provar que de fato houve essa banalização da vida. Porque parece que a morte foi aceita como uma coisa normal e não é possível, não é possível! Nem a morte pela covid, nem a morte pela fome, nem a morte por trabalho escravo, nenhum tipo de morte que seja oriunda de uma violação de direitos humanos deve ser banalizada.

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