O previsível atentado contra Cristina Kirchner

Discurso de ódio transbordou das redes sociais e se infiltra em instituições, partidos e mídias. A tônica é distorcer a realidade e destruir o adversário político, a qualquer preço. Tentativa de assassinato é reflexo destes tempos estranhos e violentos

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Por Ezequiel Ipar, na Revista Anfíbia | Tradução: Rôney Rodrigues

Apesar da consternação gerada pela tentativa de assassinato da vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner, nos deparamos com a certeza de que se trata do evento de violência política mais previsível e explicável da história recente. Isso, que finalmente se materializa com brutalidade, a qual observamos na crueza registrada na imagem da arma de fogo apontada contra uma das principais lideranças do país, uma resposta, explicada por um processo social, político-ideológica e midiático muito evidente e muito específico. Na história imediata temos o assédio e a perseguição no processo judicial [contra a Cristina] alardeado pela mídia. Se a isso se somam as infelizes declarações de líderes políticos, os pedidos de pena de morte, mais a série de eventos que vêm acontecendo só no último ano, há um primeiro registro que explica por si só essa trágica fotografia.

Então, o circuito deve ser reposto para alentar o discurso de ódio contra políticos que transitam nas redes sociais, meios de comunicação, influencers políticos e movimentos de estetização da violência nas ruas. Neste caso, é contra uma determinada orientação, mas na realidade é contra a vida política democrática em geral. Foi isso que emergiu. Passou por esse circuito onde as palavras não dizem nada e terminou em um evento político muito grave, comparável a eventos como a violência política que culminou na tomada do Capitólio nos Estados Unidos, a radicalização de grupos de direita na Europa ou as múltiplas manifestações de violência política no Brasil de Bolsonaro. Isso poderia acontecer porque essa rede de ideologia, mídias e tecnologias de comunicação estava preparando, sequer de maneira silenciosa, esse tipo de evento. O contexto político-ideológico marcado pela crescente intolerância e autoritarismo político merece, de forma urgente, a nossa atenção.

Ao longo deste último ano, acumularam-se declarações e posicionamentos que compõem o sistema no qual esse fato deve ser considerado: as declarações explícitas do juiz Rosenkrantz para desqualificar a doutrina de um dos principais partidos políticos do país; o aprofundamento de distorções que levam o sistema judiciário à perseguir e condenação funcionários e ex-funcionários políticos (diante dos mesmos atos, pune sistematicamente alguns e sempre exonera outros); a desproporcionalidade entre os crimes que são imputados e as penas que são propostas (com a pena de morte sempre como um incentivo fundamental); a negação da igualdade de inteligências para refletir no espaço público; a normalização nos meios de comunicação de mensagens que promovem e justificam abertamente o desaparecimento de um partido político; a crescente estetização da violência nas redes sociais que discutem questões políticas e, last but not least, as declarações de importantes lideranças políticas, em alguns casos até parlamentares e dirigentes de forças políticas, que estimula a disputa sob a lógica antidemocrática do “eles ou nós”.

Em todos esses casos, apela-se a uma suposta racionalidade dos pronunciamentos e das declarações públicas que justificam esse tipo de destruição massiva do adversário político, questão que continua gerando efeitos paradoxais sobre identidades e ideologias.

Esses pronunciamentos acreditam que seguem critérios elementares de racionalidade quando chegam ao ponto de justificar a exclusão ou a violência política de forma direta. Uma racionalidade que sempre aparece como resposta, como reação defensiva diante de uma ameaça: “como são violentos, não temos outra alternativa senão a violência”, “como eles fazem demandas infinitas e impossíveis de cumprir, não temos escolha a não ser exclui-lo”, “como criticamos a verdade de nossas ideias, só podemos considerá-los como incapazes de pensar por eles mesmos”.

A distância entre o que é devolvido pelo espelho em que os cidadãos se reconhecem e as práticas sociais nas quais efetivamente desenvolvem sua vida social é algo que afeta e abre fissuras por dentro de todas as posições ideológicas. Mas estamos diante de algo diferente quando um juiz da Suprema Corte faz uma proclamação em que o filósofo liberal Rawls é convocado e, depois, acaba por condenar com retórica jurídica a doutrina abrangente de um partido pelo simples fato de pretender alojar direitos sociais no âmbito da constituição de um Estado racional. O mesmo vale para o suposto liberalismo do legislador que vocifera o slogan “eles ou nós” como práxis política recomendada. Também para funcionários que se apressam em identificar críticas públicas em relação à decisões políticas ou jurídicas com um ato de incitação à violência.

Se se afirma que criticar as decisões de um juiz ou funcionário no espaço público é um ato de violência e uma irracionalidade política que o Estado deveria sancionar, então o que se propõe é que todas as decisões importantes do Estado, especialmente aquelas que têm que resolver conflitos, devem ser tomadas em um espaço fechado e aceitas em silêncio. Mas esse modelo de gestão do capitalismo – porque, em grande medida, é disso que se trata a questão de fundo – não se relaciona com os princípios das democracias liberais. Em vez disso, assemelha-se aos argumentos cotidianos de Estados autoritários e partidos políticos não iliberais. Este é o jogo de espelhos invertidos em que os partidos de direita na Argentina sucumbem e hoje os impede de cumprir seu compromisso com uma democracia pluralista baseada na proteção dos direitos humanos.

Toda essa mobilização de fantasias autoritárias não apenas deteriora a qualidade da democracia, mas também explica a sequência trágica que vimos repetidamente na noite de ontem, impossível de esquecer.

(Esta nota foi publicada em 31 de agosto de 2022 e atualizada na noite de 1º de setembro de 2022).

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