Os limites de dois "filmes do Oscar"

Em “A forma da Água”, Guillermo del Toro leva-se a sério demais. Já Spielberg, em “The Post”é mais complexo, mas incapaz de livrar-se do culto à “democracia americana”

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Em “A forma da Água”, Guillermo del Toro leva-se a sério demais. Já Spielberg, em “The Post” é mais complexo, mas incapaz de livrar-se do culto à “democracia americana”

Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS

O filme de del Toro, como já se disse, é uma homenagem ao clássico do terror B O monstro da lagoa negra (Jack Arnold, 1954)  e a sua continuação, A vingança do monstro (Arnold, 1955). Ambientado em Baltimore, EUA, em 1962 – auge da Guerra Fria –, mostra a criatura sendo alvo de pesquisas e disputas sinistras entre americanos e soviéticos até despertar a compaixão e o amor de uma faxineira muda e solitária, Elisa (Sally Hawkins). Em suma, sem risco de cometer spoiler, é a história de amor entre a bela e a fera, num contexto histórico-social hostil e opressivo.

Monstros amados

Do monstrengo do doutor Frankenstein a Edward Mãos de Tesoura, passando pelo King Kong e pelo E.T., sem contar a citada Fera e as aberrações humanas de Freaks (Tod Browning, 1932), são incontáveis as criaturas monstruosas ou simplesmente bizarras que, rejeitadas pela sociedade estabelecida, despertam a simpatia das almas mais sensíveis – na tela e na plateia. Lidar com o monstro é lidar com nossos desejos mais profundos e reprimidos – e a psicanálise se fartou de abordar esse tema.

Nada de muito novo, portanto, neste aspecto. Em A forma da água esse bestiário mais que secular, com a iconografia que o acompanha, está como que pressuposto. Nem é preciso passar da repulsa à empatia: estamos do lado da criatura logo de cara, e é difícil imaginar que o filme tenha que vencer alguma resistência por parte dos espectadores.

Tudo flui então, literalmente, como água. A elaborada cenografia retrô característica dos filmes do cineasta tinge-se aqui de uma luminosidade de aquário, com as cores borrando ligeiramente as formas. Some-se a isso uma evocação nostálgica dos anos 60, uma homenagem a clássicos do cinema musical, um vilão sem nuances em sua malvadeza (o chefe da segurança Strickland/Michael Shannon) e, não menos importante, uma turma “do bem” formada por personagens discriminados (a muda, a negra, o homossexual) e está completa a receita para agradar em cheio o público medianamente exigente e ganhar uma porção de Oscars.

Talvez seja implicância minha, mas não me agrada essa estratégia estético-narrativa de Del Toro, de dar ares adultos, profundos, “artísticos”, a uma fabulação essencialmente simplória e infantil. Nada a ver, por exemplo, com a fantasia de um Joe Dante ou de um Tim Burton (outros apaixonados pela tradição do cinema fantástico, pelos seres à margem, pela tecnologia vintage), com sua autoironia, seu humor sardônico, seus deslocamentos de sentido. Del Toro, em contraste, se leva a sério demais.

The Post

Spielberg é todo um outro departamento. Sua filmografia alterna duas linhas bem distintas: as fantasias infanto-juvenis e os dramas graves, “adultos”. Nestes últimos parece sempre ocorrer, como escrevi em outro lugar, um embate entre o talento (imenso, inegável) do diretor e suas limitações, digamos, ideológicas. Há um sentimentalismo patriótico, basicamente conservador, que o impede de ir fundo em suas abordagens histórico-políticas. Paradoxalmente, o “reacionário” Clint Eastwood às vezes consegue resultados melhores nesse terreno.

Nos últimos tempos, Spielberg, como que tomado pelo espírito de Frank Capra, parece empenhado em fazer dessa vertente da sua obra um cinema cívico, de resgate e exaltação de valores essenciais da democracia norte-americana e do American way of lifeLincoln The Post são pontos destacados desse esforço.

Na queda de braço entre o jornal The Washington Post e o governo Nixon no início dos anos 1970, em torno das notícias sobre a Guerra do Vietnã, está em jogo, evidentemente, a liberdade de imprensa, um dos pilares da sociedade democrática, mas também a questão mais ampla dos direitos do cidadão contra o poder do estado, tema caro ao liberalismo americano.

Quase sempre em seu cinema Spielberg faz o drama girar em torno de um herói individual. Em The Post esse protagonismo se divide em dois: o editor Ben Bradlee (Tom Hanks) e a proprietária do jornal, Kay Graham (Meryl Streep). Se ele não hesita desde o início em sua determinação de enfrentar a tirania do governo, ela tem dúvidas, oscila, pondera, sofre: é a personagem dramática mais interessante. Mas são ambos íntegros, corretos, sem mácula, como convém a heróis spielberguianos inspirados em figuras reais.

Relações promíscuas

O que há de mais interessante no filme é a abordagem das relações frequentemente promíscuas entre a imprensa e o poder político e econômico. Kay Graham hesita em publicar o que seu jornal sabe porque não quer ferir seu amigo pessoal Robert McNamara (Bruce Greenwood), ex-secretário de defesa. O combativo Ben Bradlee foi, ele próprio, amigo pessoal de John e Jackie Kennedy. Além disso, os magnatas dos quais depende a saúde financeira do jornal também exercem uma enorme pressão, que não condiz necessariamente com os interesses dos leitores e cidadãos.

É supostamente em defesa de tais interesses – de leitores e cidadãos – que o Post empreende a cruzada contra as mentiras governamentais – e em última análise contra Nixon, o tirano de quem no filme só ouvimos a voz e vemos a silhueta, numa das boas sacadas da direção. No mais, há a eficiência habitual do cineasta na sustentação do ritmo e da tensão e na descrição dos ambientes, sobretudo na vívida reconstituição de uma redação e de uma gráfica da época, com sua vibração característica.

Depois de um prólogo no campo de batalha do Vietnã, em que o analista militar Daniel Ellsberg (Matthew Rhys) tem acesso às informações explosivas que desencadearão toda a trama, a narrativa se alterna entre reuniões a portas fechadas, eventos sociais, o corre-corre da redação e cenas da vida doméstica dos protagonistas.

É neste último terreno que Spielberg às vezes resvala para o sentimentalismo e para a retórica edificante. Numa conversa um tanto incongruente no quarto da filha, de madrugada, a dona do jornal faz todo um discurso de desagravo à condição feminina numa sociedade em que ainda se via como natural a submissão da mulher ao mando do homem. É como se o diretor não confiasse que as ações da personagem bastariam para sustentar essa ideia.

Analogamente, a jornalista que atende o telefone e transmite aos colegas de redação o resultado de uma decisão crucial da Suprema Corte vê-se na obrigação de repetir o texto do voto de um dos ministros, citando os “founding fathers”, fazendo a apologia da liberdade de imprensa, etc. Assim, uma cena que se desenvolvia de modo magnífico é meio diluída pela lição de moral e cívica. Spielberg sendo Spielberg, ou melhor, Spielberg sabotando Spielberg.

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