O enigma dos “Coletes Amarelos”

Após semanas de mobilização, eles prometem abalar a França sábado e têm apoio de 70% da população. Mas desafiam tanto a direita quanto a esquerda. Por que?

Por Antonio Martins | Vídeo: Gabriela Leite

Em pânico, o gabinete do presidente francês, Emmanuel Macron, articula, para este sábado, uma operação policial poucas vezes vista na história do país. Cerca de 89 mil homens estarão nas ruas, fortemente equipados (inclusive como treze blindados). Tentarão evitar que a mobilização dos “coletes amarelos” [gillets jaunes, em francês] cumpra sua promessa de bloquear as rodovias de todo o país e chegar ao Palácio do Eliseu, sede do governo. Deflagrada há três semanas, contra o aumento do preço dos combustíveis, a revolta não parou de crescer, desde então. Mas o que é ela? E por que desafia tanto os ultra-capitalistas, de Macron, quanto a esquerda institucional?

Detestado pelo pseudo-filósofo Olavo de Carvalho, o pensador e militante comunista italiano Antonio Gramsci cunhou certa vez uma frase que ajuda a compreender o fenômeno. Há momentos na História, disse ele, “em que o velho mundo está morrendo, mas o novo tarda em despontar. Nesse claro-escuro, nascem todos os monstros”. Os “coletes amarelos” não são um monstro no sentido popular do termo, mas assombram por desafiar as lógicas políticas tradicionais. São cidadãos comuns, que despertaram sem apoio dos partidos, sindicatos ou outros movimentos. Ramificaram-se rapidamente por toda a França (já começam a surgir versões locais em outros países europeus) e articulam-se com muita eficácia pelas redes sociais.

A ideia que o movimento sustenta surgiu numa petição postada em maio, na plataforma Change. Reuniu 300 mil assinaturas contra a alta do combustível (o diesel, mais popular na França, subiu 23% este ano). Tomou as ruas depois que dois cidadãos postaram, há semanas, um evento no Facebook, convocando a população a bloquear as estradas, em 17 de novembro. Ganhou um símbolo quando uma outra pessoa publicou, no YouTube, um vídeo sugerindo adotar os jalecos fosforecentes, que uma lei de 2008 obrigou os motoristas de veículos de carga a vestir ao volante. Em muito sentidos, o protesto aproxima-se da grande mobilização dos caminhoneiros no Brasil, em 2018.

Porém, não se restringe a uma categoria profissional: espalhou-se pela sociedade. Ao rejeitar a alta dos combustíveis decretada pelo governo, parece aproximar-se da esquerda – ainda mais a partir do final de novembro, quando passou a pedir a renúncia do presidente de direita (A frase “Macron demission” tornou-se seu slogan, pichada até no Arco do Triunfo). Porém, a alta de combustíveis que o movimento rejeita é provocada por uma proposta da esquerda, dos ambientalistas, dos que criticamos a civilização do automóvel. O presidente francês, que apesar de neoliberal flerta com certas críticas contemporâneas ao sistema, adotou os tributos que dissuadem emissões de CO². Ao rejeitá-los, os “coletes amarelos” parecem se aproximar de Donald Trump…

Num artigo que Outras Palavras publicou há alguns dias, o jornalista português Nuno Ramos de Almeida associa o estranho movimento às transformações produtivas e regressões sociais que marcaram o capitalismo nas últimas décadas. A destruição do Estado de Bem-Estar social dissolveu as relações coletivas, o orgulho pela Saúde e Educação públicas. O aumento brutal da desigualdade empobreceu as maiorias – obrigadas a uma vida medíocre –, enquanto os barões das finanças ficaram cada vez mais ricos, insolentes e esbanjadores. . Por isso, o movimento parece ter, além de apoio de mais de 70% dos franceses, a radicalidade da raiva. Não recuou sequer quando o governo Macron suspendeu (e depois anulou!) uma nova alta do preço dos derivados de petróleo, que estava prevista para 1º de janeiro. No entanto, esta raiva reivindica, essencialmente o direito de empreender individualmente (sem ser perturbado pelo Estado e por impostos ambientais) – e o de consumir. Se a paralisia da esquerda se mantiver, é possível que se torne, rapidamente, combustível para uma direita mais primitiva, ao estilo Marinne Le Pen.

O movimento dá razão a Gramsci – o filósofo que tira o sono de Olavo de Carvalho – por duas razões. De fato, há um mundo que se recusa a morrer: o da a aristocracia financeira, dos parasitas que se tornaram totalmente dispensáveis como classe, pois além de não produzirem nada não são essenciais sequer na atividade bancária. Porém, não se retiram; ao contrário, exercem um poder que pesa cada vez mais sobre o conjunto da sociedade. O gráfico abaixo mostra os efeitos da política tributária de Emmanuel Macron, que cortou impostos sobre a riqueza e sobre as grandes corporações – exatamente como pretendem fazer Bolsonaro e Paulo Guedes no Brasil. A curva está dividida em centis de renda. Repare no canto à direita, onde está o 1% mais rico. Sua renda disponível cresceu quase 6%, enquando a dos mais pobre recuava.

Mas o mundo novo também teima em não nascer. A esquerda tradicional permanece atônita, diante das transformações do sistema. Os movimentos anti-(ou pós-)capitalistas que surgiram nos últimos vinte anos limitam-se, por enquanto, a enunciar valores opostos aos hegemônicos. Hesitam em transformá-los em propostas políticas concretas, capazes de dialogar com as maiorias e mobilizá-las. Por que tarda tanto a articulação de um movimento global pela Renda da Cidadania? Somos capazes de críticas cada vez mais ácidas à ditadura do automóvel.

Mas no Brasil, por exemplo, demoramos a propor medidas claras de recuperação da malha ferroviária, ou a instalação vigorosa de redes de trens de superfície que rompam o isolamento das periferias. Condenamos o consumismo – mas não chegamos a construir, em escala ampla, formas não-mercantis de pertencimento social e de preservação da auto-estima (pense, entre muitas outras possibilidades, na difusão de moedas solidárias – inclusive para favorecer a ocupação das multidões desempregadas – ou em aplicativos que ajudem a proteger a população negra da violência policial). À falta destas alternativas, e diante da opressão capitalista, emergem muitas vezes respostas reacionárias ou individualistas.

Por tudo isso, valerá muito acompanhar, neste sábado, a grande mobilização dos “coletes amarelos” franceses contra Emmanuel Macron. Será ainda melhor aproveitar para refletir sobre nossa responsabilidade coletiva na emergência do mundo novo a que se referia Antonio Gramsci.

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