Mulheres do cinema, Cinema das mulheres

Além de mais de quarenta filmes, mostra em São Paulo propõe debates, palestras e cursos sobre presença feminina na produção cinematográfica brasileira

“Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé: a partir dos anos 1990, com a chamada “retomada do cinema brasileiro”, mulheres passaram a ter presença quantitativamente significativa na produção nacional

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— intermitente, espasmódica e marcadamente masculina

Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS

Poucos eventos poderiam ser tão oportunos como a mostra Mulheres, câmeras e telas, da Cinemateca Brasileira. Até o dia 2 de fevereiro, na sede da entidade em São Paulo, serão exibidos quarenta filmes realizados por diretoras, quase todas brasileiras. A programação inclui também debates, palestras e cursos.

Num cinema de história intermitente e espasmódica como o nosso, pontuado por surtos, interrupções e fracassos, e ainda por cima marcadamente masculino, várias gerações de mulheres podem ser vistas como pioneiras e desbravadoras. Salvo engano, a chanchada não contou com nenhuma diretora. A Vera Cruz tampouco. Mesmo movimentos progressistas e supostamente libertários, como o cinema novo e o chamado “cinema marginal”, tiveram “musas”, mas não realizadoras.

Talvez não seja casual que duas importantes cineastas da atualidade – Helena Ignez e Paula Gaitán (ambas com filmes na mostra) – só tenham passado à direção na maturidade, depois da morte de seus respectivos maridos, Rogério Sganzerla e Glauber Rocha.

A mostra da Cinemateca inclui desde a pioneiríssima atriz, produtora e diretora Carmen Santos (num documentário sobre sua vida e obra dirigido em 1969 por Jurandyr Noronha) até jovens realizadoras de hoje, como Julia Murat (Pendular) e Juliana Rojas (Sinfonia da necrópole).

Desbravadoras solitárias

Entre aquela e estas, aparecem desbravadoras mais ou menos solitárias de várias épocas, como Gilda de Abreu (O ébrio), Maria do Rosario (Marcados para viver), Tereza Trautman (Os homens que eu tive), Ana Carolina (Amélia), Adelia Sampaio (Amor maldito), Raquel Gerber (Ôrí) e Suzana Amaral (A hora da estrela).

Foi só nos anos 1990, com a chamada “retomada do cinema brasileiro”, que as mulheres passaram a ter uma presença quantitativamente significativa na produção nacional, com o surgimento de diretoras como Tata Amaral, Eliane Caffé, Laís Bodanzky, Anna Muylaert e Lina Chamie – todas com filmes na mostra.

As exceções estrangeiras que completam a programação foram escolhidas a dedo: Romance (1999), da francesa Catherine Breillat, A menina santa (2004), da argentina Lucrecia Martel; O estranho que nós amamos (2017), da norte-americana Sofia Coppola. Extremamente diferentes entre si, os três filmes lidam com o insondável – e eventualmente explosivo – desejo feminino. A menina santa, em particular, é de uma atualidade pungente ao colocar na tela, com todas as sombras e ambiguidades características de sua diretora, o tema do assédio sexual.

Em suma, uma mostra imprescindível, que bem poderia se desdobrar no futuro em uma continuação dedicada ao trabalho igualmente notável de nossas produtoras, da citada Carmen Santos a Vania Catani, passando por Mariza Leão, Lucy Barreto, Assunção Hernandes, Sara Silveira, Clelia Bessa, Debora Ivanov, Luciana Tomasi, Nora Goulart e inúmeras outras. Sem essas mulheres, o cinema brasileiro não existiria.

Os iniciados

A simples presença de um título sul-africano no circuito exibidor brasileiro, por ser tão rara, já mereceria atenção. Mas Os iniciados, longa-metragem de estreia de John Trengove em cartaz no IMS Paulista e no IMS Rio, vai muito além do exotismo ou da curiosidade etnográfica. É uma observação madura e sensível das tensões eróticas e relações pessoais de dominação num ambiente cultural complexo e em rápida transformação.

Na África do Sul atual, pós-apartheid, rapazes adolescentes são levados a um acampamento nas montanhas para submeter-se ao tradicional ritual Xhosa de iniciação à masculinidade adulta, que inclui uma circuncisão feita ali mesmo, sem anestesia e aparentemente sem o devido acompanhamento médico. Durante os dias que antecedem e sucedem a cirurgia, esses garotos são acompanhados por “cuidadores”, homens adultos encarregados da sua recuperação física e da sua educação para a virilidade. (O próprio Nelson Mandela foi submetido a esse ritual aos 15 anos.)

O protagonista, Xolani (Nakhane Touré), é um desses cuidadores. Trabalhador de uma fábrica na cidade, ele todo ano se desloca à montanha para servir no ritual. Desta vez ele cuida de um rapaz de Johanesburgo, Kwanda (Niza Jay), estigmatizado pelos outros como filhinho de papai rico. Ao mesmo tempo, Xolani reencontra um velho amigo, Vija (Bongile Mantsai), também cuidador, com quem mantém uma secreta e atormentada relação homoerótica. Vija, para complicar, leva uma vida dupla: é casado e tem filhos.

Para além do aparente paradoxo – um casal gay servindo a um mecanismo de reprodução de uma cultura machista –, o filme trabalha com desenvoltura, mas ao mesmo tempo com delicadeza, os inúmeros atritos e fricções suscitados pela situação. Nas bordas do quadro, por assim dizer, entrechocam-se tradição milenar e capitalismo globalizado, campo e cidade, tribo e classe social; no foco dramático, a tensão é entre o desejo íntimo e as máscaras sociais. Em meio a um contexto histórico-social determinado pulsa uma questão humana universal.

Saudade Pela janela

Pelo menos duas outras estreias merecem atenção. Uma delas é o documentário Saudade, coprodução Brasil-Portugal dirigida por Paulo Caldas. Montado em torno de canções, lugares e sobretudo depoimentos de escritores, historiadores e artistas de várias áreas, o filme busca traçar o percurso e os inúmeros significados da palavra “saudade” para brasileiros, portugueses e africanos lusófonos. Não se trata de uma investigação etimológica com rigor acadêmico, mas de um ensaio pessoal sobre as reverberações poéticas de um vocábulo poderoso. Um deleite do começo ao fim.

Já Pela janela, longa de estreia de Caroline Leone também em cartaz no IMS Paulista e no IMS Rio, acompanha a viagem – geográfica e existencial – de uma mulher de meia-idade, Rosália (Magali Biff). Ela acaba de ser demitida de seu emprego de décadas como operária e aceita a contragosto ir à Argentina com o irmão, José (Cacá Amaral), encarregado de levar até lá um automóvel. Com sutileza, a câmera parece passar de um registro quase documental, objetivo, para uma observação cada vez mais sensível do renascimento da personagem, de sua abertura para o mundo e os seres que a cercam.

Nessa jornada, a água, em todas as suas formas (chuva, poça, cachoeira, banho, rio) e em todos os seus significados (limpeza, renascimento, batismo, mergulho no absoluto), cumpre um papel central. A proeza é ajudada enormemente pela brilhante atuação de Magali Biff.

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