Mulheres, cidades segregadas e insegurança hídrica

Responsáveis pelo trabalho de cuidados, elas são quem mais sofre com falta de estrutura hídrica. Mas há também divisão racial clara do acesso à água e esgoto: bairros centrais há serviço; nos periféricos — e mais negros — carência é grande

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Por Talita Gantus de Oliveira

Já é amplamente sabido, bem como investigado há décadas por diversas pesquisadoras feministas, como Thithy Battacharya, Nancy Fraser, Cinzia Aruzza e Silvia Federici, que a divisão sexual do trabalho acaba por delegar às mulheres toda a carga do trabalho de reprodução social, principalmente no que tange os cuidados de pessoas e as tarefas domésticas. Num sistema capitalista, a reprodução social engloba a reprodução diária e de longo prazo dos meios de produção e da força de trabalho para fazê-los funcionar. Também engloba a produção e a reprodução de habilidades manuais, mentais e conceituais. Para o capital, a reprodução social é uma esfera ampla e conveniente em que os custos reais são terceirizados para as famílias e incidem desproporcionalmente sobre diferentes grupos da população.

Também já se sabe que, no atual período da pandemia da covid-19, essas tarefas se acumulam ainda mais, sobrecarregando as mulheres física e mentalmente, não apenas pelos efeitos psicossociais que esse cenário já traz consigo, mas também pela piora nas condições materiais que grande parte da população tem vivido atualmente.

A água é uma demanda para o cumprimento das tarefas domésticas e de cuidados. Mais que isso, a água é um elemento indispensável para a manutenção da vida. Quem cuida de tarefas domésticas, mora em regiões da cidade com acesso a saneamento básico, e pertence à classe trabalhadora, muito provavelmente já teve a distribuição de água em casa interrompida por obras municipais em algum momento da vida — me questiono se moradores dos Jardins, bairro nobre de São Paulo, já passaram por isso, ou se em algum momento faltou água na mansão do Dória. Ousaria dizer que, se você se enquadra nesse grupo, já deve ter pensado que ficar sem água é pior do que ficar sem energia elétrica. Sem água não se cozinha, não se toma banho, as roupas se acumulam por lavar, o banheiro vira um desastre, enfim, a vida doméstica se transforma em um caos. Pior ainda para quem tem criança em casa.

Num cenário como o da pandemia, a indisponibilidade de água impossibilita a higienização necessária para conter a disseminação do coronavírus, além de contribuir para a sobrecarga já mencionada das mulheres. Principalmente porque esses fatores vêm associados à dinâmica de produção das cidades, em que pessoas empobrecidas não acessam amplamente os equipamentos urbanos, como saneamento básico. Não obstante o saneamento básico compreender o acesso ao esgotamento sanitário, à coleta seletiva de resíduos e à água, chamo atenção aqui para o conceito de segurança hídrica. Esse conceito surge como proposta de direcionar a gestão de recursos hídricos de modo a alcançar resultados efetivos na disponibilidade de água de qualidade aos cidadãos e cidadãs. Afinal, não adianta ter água se ela estiver contaminada e imprópria para consumo.

Sendo a renda já escassa da maioria das famílias direcionada em primeiro lugar à compra de alimentos e à manutenção da moradia, não há excedentes para que se recorra à compra de água mineral para consumo, quando a água que sai na torneira é imprópria — isso quando a água chega à torneira. Lembremos, ainda, que, segundo dados do IPEA, 43% das famílias em áreas urbanas são chefiadas por mulheres. Enquanto 63% das casas comandadas por mulheres negras com filhos de até 14 anos estão abaixo da linha da pobreza, para mulheres brancas e com filhos, a proporção de casas abaixo da linha da pobreza é de 39,6%, o que demonstra a racialização do empobrecimento. Como as mulheres são as responsáveis pela gestão doméstica da água, que se inclui no trabalho não remunerado de reprodução social, acabam sendo, também, as mais afetadas pela insegurança hídrica.

Mas, quem são as mulheres mais afetadas pela insegurança hídrica? Todas são afetadas igualmente?

São essas as perguntas que Jéssica Barcellos, Júlia Moreira e eu, Talita Gantus, buscamos responder em um artigo científico, cujos resultados apresento resumidamente aqui. Por meio da espacialização de dados georreferenciados — utilizando os parâmetros de renda, distribuição racial e acesso ao saneamento básico (água e esgotamento sanitário) — e de uma análise estatística, obtivemos o panorama didaticamente apresentado no mapa abaixo.

Antes, é importante ressaltar que mapas são instrumentos estratégicos utilizados na tomada de decisão da gestão pública. Entretanto, eles são representações e mostram apenas uma parte da realidade: todo mapa é resultado de uma escolha que traz luz a alguns aspectos e ignora outros. Ou seja, mais do que um repositório de dados, são instrumentos políticos. A escolha da escala, o cruzamento dos dados, a seleção dos parâmetros, por exemplo, são alguns dos elementos que definem aquilo que o mapa pretende comunicar, suas narrativas.

Os dados apresentados no mapa acima nos evidenciam que a região do Centro Expandido de São Paulo, onde encontram-se os distritos com moradores de maior poder aquisitivo, são também as localidades com maior acesso ao saneamento básico e com maior número de pessoas brancas. Em contrapartida, regiões periféricas possuem menor acesso a esses equipamentos, apresentam menor rendimento médio do lar e maior índice de pessoas negras. Moema, por exemplo, tem o maior índice de renda mensal das mulheres, R$ 4.908, menor índice de população negra (5,8%) e 99,75% da população possui abastecimento hídrico público. Em contrapartida, Parelheiros possui o menor índice de rendimento das mulheres, R$ 493 reais, uma das maiores porcentagens de pessoas negras (56,6%), e apenas 36,75% de abastecimento público.

Os dados de saneamento básico nos mostram um intervalo por se tratar de uma representação distrital. Cada distrito engloba um número de bairros que podem apresentar discrepâncias entre si, visto que há bolsões de bairros carentes de equipamentos urbanos vizinhos de bairros nobres – ou seja, dentro de um mesmo distrito. Se a representação fosse por setor censitário, por exemplo, que é um levantamento mais detalhado, conseguiríamos abarcar as discrepâncias que existem dentro de um mesmo distrito.

Todavia, durante a coleta dos dados encontramos dificuldades de acessibilidade a esse acervo. Essa ausência de transparência somada à complexidade na prospecção das informações parece ser uma escolha política dos órgãos públicos de ocultar o acesso, por parte das pesquisadoras/es, à realidade da situação do caos urbano no Brasil. Somado a isso, a não realização do Censo de 2020, para além do já insuficiente intervalo de 10 anos em que ele acontece, e que não dá conta de capturar as mudanças drásticas nas condições materiais da população brasileira frente ao avanço do neoliberalismo, é uma representação dessa escolha política.

Segundo pesquisa do Laboratório Justiça Territorial (LabJuta) da UFABC, em parceria com movimentos sociais, 7 em cada 10 entrevistados que moram em favelas na Região Metropolitana de São Paulo relatam algum tipo de dificuldade de acesso à água. Situação que, para muitos, piorou no último ano pandêmico.

A desigualdade socioespacial é a expressão do processo de urbanização capitalista, um produto da reprodução ampliada do capital que se perpetua como condição de permanência da desigualdade social. Os capitais, em cada momento histórico, buscam moldar as cidades aos interesses de um conjunto articulado de diferentes forças que podem compor uma aliança. São as incorporadoras imobiliárias, as empreiteiras, as prestadoras de serviços que deveriam ser fornecidos pelo Estado (como saneamento, energia elétrica, limpeza urbana, transporte público), os especuladores rentistas que atuam por meio de lobbies na formulação e implementação de políticas do urbano, com redução do controle público.

Falar sobre segregação étnico-racial na cidade não é apenas apontar para uma das faces do empobrecimento e da exclusão, mas reconhecer uma presença constantemente invisibilizada e certamente incômoda: o racismo como um dos componentes centrais de nossas desigualdades socioterritoriais, estruturadas por um modo de produção capitalista inerentemente excludente. Assim como já denunciava Carolina Maria de Jesus, são exatamente suas semelhantes – mulheres negras e marginalizadas – as mais afetadas pela insegurança hídrica na contraditória São Paulo. Exatamente por isso, prestamos a ela nossa homenagem no artigo aqui mencionado, intitulado Quarto de despejo: diário da insegurança hídrica, publicado como um capítulo do livro As múltiplas faces do vírus – gênero e vulnerabilidades, organizado pelo Instituto Política Por.De.Para Mulheres, da UFPR. Você pode acessar e baixar gratuitamente o livro neste link aqui. Nesse artigo, também tecemos discussões acerca da água como um direito inalienável em contraposição à visão capitalista da água como mercadoria.

Queremos uma cidade justa, equitativa, plural e plenamente vivida. Mas os direitos não caem do céu, são conquistados por meio da luta política, que representa as contradições a esse modelo mercantil da cidade e da vida. Já é tempo, precisamos nos organizar!

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