Polêmica: Os “identitários” sabem ouvir?

Contraposição a um artigo publicado em Outras Palavras. Antagonismos esvaziados tem efeito colateral: o marxismo desaparece como prática fundamentalmente política – e protagonistas das lutas sociais tornam-se figuras mudas e surdas

Cacica kaingang Gah Té. Foto: Alass Derivas/@derivajornalismo
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O texto de Moysés Pinto Neto, publicado por Outras Palavras no início de março, apresenta-se como um diagnóstico contraposto a outros diagnósticos e aos seus supostos formuladores. Ali, está em jogo o desafio de representar, em termos claros e forjados com linhas divisórias dramáticas, o panorama de uma polêmica na qual incidem o bolsonarismo, a “esquerda liberal racionalista” (acadêmicos progressistas), a “esquerda radical” (influencers comunistas e velhas lideranças marxistas), uma “nova direita fantasiada de esquerda” (nacionalistas econômicos) e as/os protagonistas de um movimento “minoritário” em permanente mutação; movimento que, hoje, confronta-nos com a radicalidade de suas lutas, ancoradas na densa tessitura de filosofias e modos de vida estruturalmente alheios aos regimes de governo promovidos pelo “Deus-Capital-Branco”. No seio dessa polêmica, instala-se um profundo equívoco que organiza os olhares confusos do bloco esquerdista e do bloco bolsonarista: eles só conseguiriam enxergar nas políticas minoritárias o sinal de uma falta identitarista – falta de “luta de classes”, falta de ponderação no tocante a tendências essencialistas, falta, em suma, de radicalismo transversal e vocação majoritária – ou, então, no pior dos casos, o indício de uma insubordinação corpo-política e onto-epistêmica que exige repressão e normalização.

Nesta oportunidade, gostaria de objetar um tipo de impulso diagnóstico que parece constituir a pedra de toque para qualquer tomada de posição no campo de alianças e antagonismos que configura nossa época. Ao hábito do diagnóstico, que, diga-se de passagem, aproxima o texto em questão às análises verticais de conjuntura apreciadas por certa militância sempre ávida pela “linha correta”, gostaria de opor o gesto de tomar a palavra e fazê-la ecoar na conjuntura, em busca de ressonâncias que revelem sua possível densidade política. Essa proposta não pretende oferecer à/ao leitor/a uma ferramenta de diagnóstico mais aguda do que outras diante do campo social onde desejamos multiplicar linhas de fuga e emancipações convergentes. Trata-se, antes, de chamar a atenção para o que as lutas – minoritárias? – já estão fazendo no quesito produção de efeitos transformadores em mundos concretos. Deslocar o foco de atenção para esse quadrante foi uma necessidade que se apresentou para mim após ler o texto de Moysés e me dar conta do quão despido ele estava de instrumentos capazes de proporcionar uma relação ativa e criadora com determinados processos coletivos que clamam por escuta, por palavras e atos que adensem seu horizonte de intervenção. Tais processos podem conter todos aqueles elementos (os esquerdistas, os bolsonaristas, os minoritários) que nosso autor dispõe numa topografia eivada de oceanos de incompreensão, mas nem por isso seu desenvolvimento exige o tratamento distante e clarividente do diagnóstico para se tornar objeto de escolha e posicionamento político.

Visitemos brevemente um desses processos. Depois, avaliemos se diagnósticos como o aqui discutido são o ponto de partida mais interessante para explorar, na prática, as relações estabelecidas entre seus componentes.

Em meados de outubro de 2022 teve início a Retomada multiétnica kaingang, xokleng, popular, também denominada Retomada Gãh Ré, localizada no pé do Morro Santana, uma zona arborizada da cidade de Porto Alegre onde a vegetação nativa atualmente viceja ao redor dos rastros desastrosos de uma pedreira desativada na década de 1980. A área da Retomada pertence à Maisonnave Companhia de Participação, cujos planos de instalar no local um loteamento com 11 torres e 714 apartamentos foram acolhidos de bom grado pelo poder público municipal, adepto da rentabilização intensiva do espaço urbano.

Poucas semanas depois do início da Retomada Multiétnica – observemos, desde já, que uma das etnias reivindicadas em seu escopo era a “popular” –, um pedido de reintegração de posse impetrado pelos proprietários da terra e contestado pelo Ministério Público Federal foi, finalmente, acolhido por certa desembargadora sob o argumento de que a “invasão” da área pelos indígenas não possuía “qualquer respaldo além da invocação da ancestralidade, cujo processo ainda pende de definição”.

Para a cacica Iracema, liderança kaingang da Retomada Gãh Ré, essa “ancestralidade”, que a desembargadora banalizava em seu despacho como se de uma abstração inócua se tratasse, possuía um sentido específico e incontornável. Palavras de Iracema: “a Justiça não pode condenar sem escutar. Ela [a desembargadora] não me escutou como liderança. Quando a gente é liderança, a gente escuta o outro lado […] só isso que eu quero que ela perceba. Por que sempre valoriza aqueles que têm mais? E os outros, que não têm? Isso é injustiça. Como liderança, jamais vou fazer isso […] aqui é onde estão enterrados os umbigos dos meus filhos, é onde estão as casas subterrâneas que existiram, é onde está a raiz dos meus tataravós. Sim, é sagrado para nós […]”. Tranquila e resoluta, instalada nessa terra agora recuperada como território de um modo de vida “ancestral”, porque guardião de outras ocupações do solo que o presente eterno do capital expurga de sua superfície amnésica, Iracema, ignorada pelas chefias do Estado, dirige-se ao “povo brasileiro”: “aqui é de um banco rico e explorador, sempre explorou o povo brasileiro e isso eu não quero mais que façam”.

Encontrei Iracema apenas uma vez. As palavras que vim transcrevendo foram recuperadas no ciberespaço, em vídeos e relatos que emanam da Retomada, ainda vigente. Quando Iracema conversou comigo, numa manhã de outubro de 2022, a ameaça da reintegração de posse ainda era distante e ela preferia falar de hortas, casas de reza, remoção de entulho e festejos com quem quer que sentisse afinidade por aquela expressão da luta kaingang, xokleng, popular. Durante a visita, notei que alguns apoiadores da mobilização vestiam camisetas estampadas com a foice e o martelo formando um arco e uma flecha acompanhada dos dizeres “Retomada Popular”. Eram estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – a “esquerda radical”? –, provavelmente vinculados à chapa homônima que, em meados de 2022, ganhara as eleições do DCE respaldada pelas militâncias da União da Juventude Comunista e do Coletivo Indígena. Este último, cabe mencionar, foi o artífice de uma vitoriosa luta pela criação da Casa do Estudante Indígena, em meio a forte confrontação com o reitor escolhido por Jair Bolsonaro ao arrepio da débil e obediente “democracia” universitária da UFRGS.

Outros coletivos também souberam ouvir as palavras de Iracema, quem, por sua vez, tornara suas as palavras daqueles cujos ouvidos e corpos ela pretendia mobilizar. A Teia dos Povos em Luta no Rio Grande do Sul, em declaração conjunta assinada pela Frente Quilombola, pela Federação Anarquista, pelo Coletivo LGBT Comunista, pelo Ateneu Libertário e por outras 42 agrupações, afirmou, em 10 de dezembro de 2022, que “os Maisonnave, família burguesa local ligada ao capital financeiro, que enriqueceram ainda mais durante a Ditadura Militar, são proprietários oficiais da área tradicional que foi retomada pelas/os kaingang e xokleng […] Os séculos passam e as elites seguem avançando em seu projeto genocida e colonial. Ao mesmo tempo os povos, com a força de seus encantados, com a firmeza do chão sob os pés das guerreiras e dos guerreiros, com a sabedoria dos mais velhos e das crianças, seguem resistindo. Seguem lutando e avançando na libertação da Terra e do Território”.

Essas longas transcrições, assim como a presença efetiva de uma heterogeneidade política em luta junto da Retomada Gãh Ré, nos dão um vislumbre da intensidade experimental que falta aos diagnósticos formulados à distância dos processos de fala e escuta nos quais “ancestralidade”, “comunismo”, “encantados”, “umbigos” e “tataravós” ressoam uns nos outros para sustentar uma objeção plenamente contemporânea à surdez das lideranças do Estado proprietarista.

As/os aderentes da declaração que recuperei acima talvez desconheçam que, no diagnóstico do filósofo, eles possuem linguagens fundamentalmente “inimigas” e percepções “profundamente erradas” uns dos outros. Iracema talvez ignore que sua ancestralidade reflete, na verdade, uma ontologia que, palavras de Moysés, “coloca em dúvida a antropologia filosófica de base do marxismo (e comum ao liberalismo), baseada no humanismo de origem greco-judaico-cristã-moderna”. Também eu ignorava esse detalhe essencial, quiçá pela deficiência de minha formação marxista ou, talvez, por praticar um marxismo não humanista. Seja como for, o que Iracema sabe, de fato, é que deve ser ouvida. “Ancestralidade” é o nome circunstancial desse substrato de memórias e de rastros sobre o qual ela anuncia outra vida possível diante daquelas e daqueles que, por distintas razões, também se sentem heterogêneos ao tempo presente e reúnem forças para arrastar as lideranças surdas do Estado ao terreno de luta onde nenhuma voz ou eco permanece silente. Aqui, encontro uma promissora ressonância com a dimensão mais sensível do esgotador diagnóstico de Moysés, precisamente aquela que renuncia ao fechamento do tabuleiro e elenca uma sequência de pontos de abertura por onde a política pode entrar sem pagar tributo às supostas incomensurabilidades conceituais argumentadas pela metapolítica. Os movimentos minoritários, reflete nosso autor, têm limites porque são, antes de qualquer coisa, “um processo de reabertura das virtualidades que foram sufocadas pelo poder colonial, mantidas apenas na forma de resistências, mas que podem ser reinventadas, reapropriadas, transformadas, escaladas, enfim, que podem sofrer todo tipo de mutação oriunda de uma libertação das suas potencialidades reprimidas”.

No entanto, o que Moysés parece ignorar com insistência, e aqui reside seu fechamento às aberturas, é que já não estamos na luta contracultural das décadas de 1960 e 1970 na Europa e nos Estados Unidos; luta em que a experimentação política cultivada nas ruas metropolitanas empequenecia a paixão classista do comunismo oficial e introduzia novos canais de comunicação entre rebeldias juvenis, feministas, negras, imigrantes, operárias, todas elas cansadas dos aparelhos parlamentares e sindicais de representação e mediação da conflitualidade social. Não sabemos onde estamos agora porque o terreno de composições está objetivamente aberto à fala e à escuta. E se a intenção é explorar essa abertura, então convém evitar a reposição de um antagonismo evanescido (luta de classes e aparelhos versus multiplicidade e “estilização” experimental dos modos de vida) sob a roupagem de um diagnóstico fiável do presente. Insistir nesse procedimento é gerar um ambiente de entretenimento com as formas que só reconhece a “ancestralidade”, os “encantados” ou a “Pachamama” ao preço de negar-lhes efetividade política situacional, isto é, a custo de não ouvir certas vozes (no sentido de fonação e palavra) como o lugar de tratamento de um dano absolutamente situado e contemporâneo. Refiro-me ao dano, perpetrado uma e outra vez pelas lideranças do Estado, que consiste em negar à palavra indígena o lugar do povo e do direito, a possibilidade da escuta, com o efeito colateral de colocar essa palavra, sua ancestralidade, seus tataravós, em ressonância com a luta de classes: a luta dos que fazem valer o que dizem e sentem. Tudo isso ao justo preço de redefinir essa luta e de redimensionar, também, a existência política do marxismo; uma existência arredia à “crítica” que o filósofo, em sua abstração radical, pretende “devolver-lhe” de modo compacto e avassalador, como se não estivesse falando, apenas, com as figuras mudas de seu próprio diagnóstico.

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