Pensar a China, uma heresia no Brasil

Dois pesquisadores analisam entraves para a divulgação científica sobre o gigante asiático. À esquerda e à direita do espectro político, imperam desinformação e eurocentrismo. E país desperdiça diálogos e trocas cruciais para seu futuro

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No início de 2022, decidimos utilizar o Twitter para ampliar a comunicação científica, por diversas razões. Primeiro, um compromisso de socializar conhecimento, ampliar o acesso das pessoas às pesquisas acadêmicas – dado que a maior parte não lê papers especializados – e, ao mesmo tempo, romper bolhas acadêmicas. Segundo, contribuir para qualificar as reflexões, em parte devido ao baixo nível das informações e análises da grande mídia brasileira combinado com o assombroso domínio das redes sociais por parte de influencers sem qualquer qualificação científica. E, por fim, exercer a condição de intelectual orgânico, o que implica, no século XXI, lidar com este espaço das redes – novo lócus de atuação das forças vivas da sociedade (movimentos, sindicatos, partidos, etc.).

Nesse contexto, tem se assistido uma escalada do negacionismo tão preocupante quanto complexa; e os terrapanistas ou antivacinas são apenas sua face mais esdrúxula. Para quem acha que se trata de um fenômeno da extrema direita, está profundamente equivocado, pois perpassa todas as colorações políticas e campos de atuação profissional. Inclusive assume formas mais sofisticadas no âmbito da própria ciência, com o relativismo e irracionalismo pós-moderno; ou em áreas como saúde, com práticas que vão do cloroquinismo às terapias quânticas. Pior: é expresso rotineiramente ao se repudiar um trabalho científico sem leitura, dados ou fontes para subsidiar o argumento – e, por isso, baseado apenas em opinião pessoal.

Embora se considerem céticos, os negacionistas refutam qualquer evidência que contradiga suas crenças e sentimentos. Nesse sentido, como as convicções antecedem as evidências, a Internet fornece elementos para legitimar quaisquer crendices. Assim, o que vemos é uma mescla de dogmatismo e má-fé, dando suporte a teorias da conspiração, fake news e pós-verdade. É o que chamamos de Tudólogos em suas práticas de Botecologia.

A Internet faz também com que, ao tomar contato com muitas informações e notícias, as pessoas se sintam habilitadas a expressar opiniões sobre todos os assuntos. Com isso, o espaço das redes sociais potencializou sentimentos, encorajando leigos a expressar – sem qualquer pudor ou vergonha – suas opiniões, antes restrita ao círculo de amigos. A velocidade da comunicação e a exposição pública são ingredientes perfeitos para o irracionalismo e a virulência. O desdobramento é um comportamento impulsivo e passional, assentado numa lógica polarizadora do “nós contra eles” e punitivista, cujo desdobramento é a lacração ou o cancelamento – que, por sua vez, diverge de qualquer noção de espaço científico e democrático.

A bem da verdade, a formação e o letramento científico médio da população brasileira é geralmente muito precário. Teoria, métodos, empiria, entre outros, não são noções minimamente conhecidas. A hierarquia de evidência e fontes não costuma fazer parte da formação do pensamento e da parametrização dos debates. Não raro, se vê argumentos absolutamente distantes de qualquer lógica científica: “me disseram”, “eu vi”, “comigo aconteceu assim”, etc. ou, o que é pior, a inversão do ônus da prova.

No caso da comunicação científica em assuntos relacionados à China, os desafios são ainda maiores, pois se entrelaçam sentimentos anticomunistas e etnocêntricos – até porque o frenesi a la Guerra Fria ecoa ainda nos dias de hoje, conscientes ou não. Destilar chavões e clichês para invalidar explicações complexas são recorrentes: “ah, mas a China é uma ditadura”, “lá não se pode isso ou aquilo”. Aliás, para a problematização do conceito de democracia, fizemos este pequeno ensaio: Será herético falar em democracia chinesa?1

Deve-se dizer, ademais, que o anticomunismo não é apenas conservador, mas de muitos esquerdistas ou marxistas de cátedra. Este último, chamado por Losurdo de marxismo ocidental, caracteriza-se por abordagens messiânicas avessas a compreender as circunstâncias históricas ligadas ao imperativo do desenvolvimento e das lutas anticoloniais. Preferem a “desconstrução”, a autenticidade teórica e a denúncia do poder enquanto tal, ao invés da construção de alternativas concretas à ordem dominante, revelando autofobia com relação às experiências socialistas. Resta dizer que só se desilude quem se ilude; ou, em outras palavras, quem inventa um marxismo sem materialismo e dialética.

Nos temas relacionados à China, o negacionismo atua desacreditando pesquisas mesmo que baseadas nos melhores artigos, dados oficiais do governo chinês ou documentos e informações de entidades internacionais. O mais comum é afirmar que os dados chineses seriam ruins ou manipulados – deixando subentendido que os do resto do mundo liberal estaria isento de problemas. O pior, quase cômico, as fontes são questionadas… só que sem apresentar fonte alguma!

Tão importante quanto o negacionismo, tem sido as múltiplas facetas do etnocentrismo. A primeira é consequência direta de uma socialização a que fomos submetidos, responsável por total desconhecimento das sociedades fora do eixo euro-atlântico (EUA e Europa Ocidental). Os currículos das áreas de Humanidades do ensino básico às universidades, inclusive em cursos de Geografia, História, Ciência Política, Relações Internacionais, Economia, entre outras, não dão a importância compatível com a relevância da Ásia – e da China em particular. Definitivamente quase nada se conhece sobre sua história milenar, complexidade civilizacional e acelerado desenvolvimento. Daí a transformar tudo em caricatura ou a revelar a soberba de quem está sempre pronto a dar lições, é um sopro.

Somado a isso, há um grande oligopólio na geração de notícias globais, replicados mundo afora, a partir da AFP (Agence France-Presse), AP (Associated Press) e Reuters. Em temas internacionais, tanto o assunto quanto o enfoque revelam uma profunda supremacia comunicacional do Ocidente. Isso concorre para que o léxico e a gramática ocidental seja a métrica determinante para a leitura da conjuntura internacional. Ou seja, nos EUA e em seus aliados, questionadores da ordem viram insurgentes e baderneiros, no lado de lá viram manifestantes pela democracia; aqui, reivindicação contra o poder central vira terrorismo separatista (Catalunha ou Irlanda), lá são defensores da liberdade e autoderminação (Xinjiang ou Chechênia); aqui, uma guerra é intervenção humanitária, ataque preventivo ou responsabilidade de proteger (Iugoslávia, Iraque ou Líbia), lá invasão é imperialismo puro e simples; aqui, prisões com trabalho são exemplos de ressocialização, lá, campos de trabalho forçado; aqui, a continuidade no poder revela o sucesso de um projeto (Mekel, PRI no México ou PLD no Japão), lá o aparelhamento e as disfunções políticas autoritárias (chavismo); aqui, bilionários são CEOs empreendedores, lá, oligarcas mafiosos; aqui, contestadores são traidores da pátria sujeitos à prisão perpétua (Assange ou Snowden), os de outros países são campeões da democracia e candidatos a Nobel da Paz (Iohane Sanches ou Dalai Lama).

Vejamos alguns exemplos. O primeiro foi o anúncio, em 2020, pelo governo chinês da erradicação da pobreza extrema, retirando cerca de 850 milhões de pessoas desta condição em pouco mais de quatro décadas, fato reconhecido por Banco Mundial, Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo, o caso do combate à pandemia de covid-19, no qual o número de mortes na China foi de pouco mais de 5 mil, segundo a Organização Mundial de Saúde2 ou a base de dados da John Hopkins University3. Por fim, o caso dos “massacres no Xinjiang” também foi objeto de um artigo no qual expusemos sua genealogia fantasiosa num artigo chamado A Nova Rota da Seda e o dilema de Xinjiang4. Em comum, a adesão acrítica a narrativas emanadas do Ocidente e o ceticismo a-científico.

O caldo de cultura que vivemos impõe a necessidade de comunicar ciência, fazendo o diálogo entre Universidade e sociedade mais fluido. É preciso, portanto, ocupar o espaço das redes, criando sinergias em torno da produção e trocas de conhecimentos. Deve-se dizer que a experiência tem sido muito válida e gratificante, afinal, cada dia fica mais evidente o imperativo de resgatar o diálogo construtivo e a formulação de ideias para o futuro do país. Sigamos!


1 Ver íntegra do texto https://outraspalavras.net/descolonizacoes/polemica-sera-heretico-falar-em-democracia-chinesa/. Em breve sairá uma versão acadêmica (expandida) deste ensaio.

2 Ver o site da OMS: https://covid19.who.int/ .

3 Ver a excelente base de dados desta Universidade: https://coronavirus.jhu.edu/map.html.

4 Aqui o link para acesso do artigo: http://periodicos.pucminas.br/index.php/estudosinternacionais/article/view/24535.

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