Pegadas: como construir uma Universidade Popular

Em experiência de educação do MST, estudos latino-americanos com ampla participação de movimentos sociais. Entre suas aspirações, romper muros de uma ciência afastada do povo, resgatar a memória popular e construir o Sujeito Coletivo

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Uma ponte de educação popular em meio à educação formal como ponto final

Por Roberta Traspadini, na coluna Diálogos Pedagógicos

Entre 2003 e 2005, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil (MST) realizou, na vinculação orgânica entre a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) e a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Primeira Turma de Especialização em Estudos Latino-americanos: Haydée Santamaria1. Turma com a qual tive a oportunidade de conviver como docente – na disciplina de teorias do desenvolvimento na América Latina – e como orientadora de diversos trabalhos de conclusão

Apresentamos três condicionantes dialógicas vinculadas a esta experiência:

1. A Universidade Popular e Latino-americana.

A real viabilidade de uma Universidade Pública cumprir sua função social de responder as necessidades de seu tempo, a partir de demandas societárias diversas, entre elas, as dos movimentos sociais do campo e da cidade: ser uma Universidade Popular.

No compromisso político com uma educação de qualidade, cobra relevância o papel dos sujeitos na história. Assim, se por um lado, os Movimentos Sociais do campo e da cidade protagonizavam dialogicamente acerca da feitura da educação que queriam, por outro, intelectuais orgânicos/as das universidades, faziam suas escolhas como educadores/as, em meio às diversas disputas presentes em seus espaços de atuação. Abrir a Universidade aos movimentos sociais deve ser uma obrigação, mas, ao longo do tempo, passou a ser uma aposta difícil em meio às diversas disputas, dentro e fora do ambiente universitário.

Na centralidade dos Movimentos Sociais (MS) conformou-se uma conexão entre vários/as intelectuais, tanto da própria UFJF, como de diferentes partes da América Latina e Caribe. Isto dá tônica da potência do trabalho coletivo, quando inspirado e comprometido com as causas sociais.

Esta experiência também foi — e segue sendo — fundamental para latino-americanizar o sentido de história e de memória vigentes no pensamento crítico brasileiro. O reconhecimento de que são poucos os cursos vinculados ao pensamento crítico latino-americano em geral, e à luta social do continente em particular, nas universidades brasileiras, tensionava e ainda tensiona para o sentido de ciência que defendemos e, na resistência, produzimos.

No encontro latino em sala de aula, abria-se a aprendizagem para diferentes comunicações e expressões, mediadas tanto pelos idiomas como pelos sotaques próprios de cada territorialidade (espanhol, português, guarani). É notório como na prática dialógica, a cultura, a escuta real, abrem novos horizontes reflexivos: militantes de diversas partes da América Latina socializando, em seus idiomas e arriscando soltar o verbo em um novo terreno linguístico. Isto somado à curiosa vontade de aprender ao menos algumas palavras em Guarani. Este processo coloca em evidência a consigna viva de Freire: aprender a aprender! Da relação entre os Movimentos Sociais e a Universidade Pública apresentava-se a práxis intelectual militante.

2. Os Movimentos Sociais (MS) como sujeitos políticos da educação formal

O papel dos MS de trazer para a Universidade sua práxis e socializar conhecimentos, em meio à construção de um currículo formal, apresenta sentidos variados para a tentativa de um padrão único de educação institucional. Além de assumirem um currículo formal, protagonizavam seminários, roda de conversas para trocas de experiências, noites culturais dimensionando a história dos/das lutadores/as do continente, consolidação de uma organicidade na divisão das tarefas para além do estudo, articulações políticas dentro e fora da universidade, cuidado pedagógico com os/as trabalhadores/ras de diferentes áreas da Universidade, em especial os/as que cuidavam os espaços físicos. Os Movimentos Sociais somados a outros intelectuais orgânicos forjam a práxis intelectual militante engajada.

3. A transição do individual(ismo) ao Sujeito Coletivo

Em síntese, ao longo deste processo o que tivemos foi a indissociável relação entre a produção coletiva da educação formal mediada pela educação popular. Os voos que apareciam como individuais, foram reafirmados em sua essência coletiva, na produção do afeto a partir da centralidade do trabalho e da educação. Uma Universidade, momentaneamente colorida, em que os vínculos da luta social revelam o compromisso com a mística, entendida como chama que aquece os sentidos da práxis. Mais uma consigna Freiriana: fazer-se, fazendo-nos! Em uma sociedade ancorada na concorrência, na hierarquização do saber e do poder, o fazer junto apresenta-se como revanche subversiva à ordem “normal”. Brota, portanto, a práxis intelectual militante engajada da beleza.

Da fusão entre as três práxis (intelectual militante; intelectual militante engajada; intelectual militante engajada da beleza), esta Especialização – coordenada na exemplar pedagogia militante, docente do Serviço Social, Dra Cristina Bezerra e da Coordenação Político-Pedagógica da ENFF – definiu-se, em muitas vidas, como um divisor de águas sobre o caminhar e o produzir seus particulares processos como sujeitos sociais. Vidas que se cruzaram, se abraçaram e se reconheceram na construção coletiva pelas trilhas de Nuestra América.

A turma especializou a beleza, redimensionou o conhecimento científico a partir da centralidade do popular e coloriu a Universidade com as bandeiras e presenças dos sujeitos e organizações que o compunham. Aproveitou as portas abertas pelas experiências anteriores dos Cursos de Realidade Brasileira (CRBs) para materializar-se, como uma ponte conectora de processos futuros. Quase 20 anos após a primeira turma, lá se vão, cinco turmas formadas de latino-americanistas2. Especializou tanto pelo que apresentou na forma do riso-dor oriundos de uma memória e história em que o memoricídio, genocídio e etnocídio são muito presentes na luta social latino-americana desde a invasão colonial, tanto pelo que abriu de brechas na potência criativa de entender-se, entender-nos como povos latino-americanos em processo contínuo de luta.

Os relatos — presentes no vídeo que acompanha este texto — expressam o sentido da educação popular que pode e deve permear a educação formal. Rompe os muros de uma concepção de ciência sem povo.

É revigorante vivenciarmos quase 17 anos após o encontro com a 1a turma, que parte expressiva de seus integrantes segue, em diferentes áreas de atuação, na construção de uma sociedade verdadeiramente justa.

Reflexivas-ações:

Os Movimentos Sociais quando ocupam a educação formal, cumprem um duplo objetivo: tensionar a ciência para a democratização do conhecimento; e, ensinar que o conhecimento científico é apenas uma expressão substantiva, entre tantas, do aprender a aprender. Por isso, a arte, as jornadas de luta, o embelezamento das salas de aulas, tornam-se mediações fundantes dos conteúdos formais. Com esta forma-conteúdo diferente da usual, a educação popular movimenta a educação formal, mexe e remexe com as estruturas institucionais excludentes. Dita experiência ressignifica, em todos e todas que tiveram/têm a oportunidade de vivenciar essa aprendizagem, a construção da educação como prática de liberdade.3

O que deixamos como docentes — conteúdos, diálogos, estudos dirigidos, entrevistas, debates e orientações gerados a partir da socialização da Teoria Marxista da Dependência – é muito pequeno frente ao que a turma nos deixa como legado: a pedagogia do exemplo, a solidariedade, o internacionalismo, o latino-americanismo e, sem dúvida alguma, a dimensão estética da beleza como mediadora principal. A educação que tem e faz sentido está vinculada à estética da beleza, à centralidade do estudo-trabalho e à digna e humana solidariedade (internacionalista) entre os povos. Disto derivam as memórias e histórias das lutas como revanche subversiva em Abya Yala.

Palavra de ordem: Gratidão!

Esta experiência tem sido uma ponte popular, em meio ao suposto denominador comum da educação formal como ponto final.


1 Sobre a história desta experiência, sugerimos o texto escrito em 6 mãos por Cristina Bezerra, Adelar Pizetta e Mônica Grossi, A parceria UFJF/ENFF-MST: a experiência e a produção de conhecimentos do curso de Especializaçaõ em Estudos Latino-americanos. UFJF: Revista Online Libertas (2007). Disponível em: htps://periodicos.ufjf.br/index.php/libertas/article/view/18214/9465

2 Sobre a V Turma ver: https://www2.ufjf.br/noticias/2017/07/14/especializacao-em-estudos-latino-americanos-tem-alunos-de-quatro-paises-estrangeiros/

3 Ver Paulo Freire: Educação como prática de liberdade. 23ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

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