A politização do mundo e a despolitização da política

Alguns pensam derrubar Bolsonaro apontando seu suposto transtorno mental. É equívoco: desvia o foco da crítica a seu governo e relega a política ao escrutínio de especialistas. Psicopatologizar divergências abre precedente perigoso…

Imagem: Enrico Robusti
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Desde as eleições de 2018, quando fomos testemunhas da vitória de um candidato improvável, têm circulado nas redes sociais e nas rodas de conversa uma frase que foi elevada à condição de máxima de conduta: “Tudo é política!” Esse mandamento tem servido não somente para incentivar os resistentes a participarem de manifestações públicas e protestos sociais contra o avanço do bolsonarismo, mas principalmente para orientar seu comportamento nos círculos privados da amizade e da família, que pareciam se manter imunes às discussões políticas. Dessa maneira, os almoços de família, as festas de aniversário, o churrasco com as amigas, os grupos de WhatsApp com os “brothers” ou mesmo as redes sociais não são apenas oportunidades, mas se tornaram ambientes verdadeiramente políticos, visto que, de acordo com aquele mandamento, a política foi estendida à totalidade das relações sociais.

Ultimamente, podemos considerar que houve um verdadeiro avanço na experiência democrática brasileira com a extensão dos debates políticos a toda e qualquer situação ou laço social. Essa extensão foi fundamental para incentivar diversas pessoas a denunciarem práticas como a homofobia, a violência de gênero, o racismo ou as tendências fascistas que circulavam livremente e sem questionamento no âmbito da vida privada por meio de piadas, memes ou comentários inoportunos. E mesmo nas situações em que a denúncia é desnecessária, tem surgido espaço para a reflexão sobre os próprios comportamentos e valores políticos.

Paralelamente à extensão da política aos círculos tradicionalmente impermeáveis à política, identificamos um fenômeno que parece contrariar o mandamento “tudo é política”. Principalmente desde o início da pandemia de covid-19, temos verificado o uso frequente de um termo para qualificar o atual presidente: perverso. Esse termo não é utilizado para avaliar as políticas públicas ou as medidas econômicas do governo, mas se dirige exclusivamente à pessoa do governante, ou melhor, por meio de seu governo, pretende-se inferir o caráter ou a personalidade do governante. Esse uso do termo perverso para qualificar o atual presidente, no entanto, não possui nenhum respaldo científico, mas possui um sentido exclusivamente político. Ao atribuir um suposto transtorno mental ao atual presidente, pretende-se justificar a interrupção da continuidade do exercício de sua função pública, ou seja, se for perverso, deve ser afastado do cargo por meio de impeachment.

Pessoas bem-intencionadas se apoiaram nessa abordagem para criticar o atual presidente. No entanto, o tiro saiu pela culatra. Ao sustentar uma crítica política em um suposto diagnóstico psiquiátrico, comete-se um duplo equívoco. Em primeiro lugar, a crítica não visa o governo, e sim o governante. Com esse alvo, ainda que o ocupante do cargo de presidente da República seja substituído, as políticas públicas realizadas até o momento permanecem inatacáveis, podendo ser conduzidas por outro governante qualquer. Dito de outro modo: o atual presidente não deve ser criticado pelo crescimento do número de desempregados e famélicos, pela aceleração do desmatamento da Floresta Amazônica, pelos ataques dirigidos à credibilidade do sistema eleitoral, pelo aparelhamento ideológico e religioso do Estado e pelo sucateamento da educação, da pesquisa e da cultura, e sim por sua suposta condição mental, abrindo um precedente perigoso na política brasileira.

Em segundo lugar, ao invés de ser coerente com o lema “tudo é política”, essa crítica despolitiza a política. Com a substituição da análise do sentido das políticas públicas e de seus impactos na população pelo diagnóstico psiquiátrico, a política deixa de ser o terreno da divergência, do dissenso e do convencimento, podendo ser ocupado por todo e qualquer cidadão, para se tornar objeto de um escrutínio reservado aos especialistas.

A política seria um cobertor curto que, ao cobrir a cabeça, politizando os círculos familiares e de amizade, descobre os pés, despolitizando a própria política? Parece que é exatamente isso que vem ocorrendo. Provavelmente, esse “cobertor curto” seja o efeito de um mal-entendido a respeito do mandamento “tudo é política”: existe uma diferença entre “tudo é Política” e “tudo é política”. A primeira alternativa determina que existe uma única maneira de discutir e fazer política, condenando ao exílio da psicopatologização tudo aquilo que não se enquadra naquilo que se entende o modo certo de se fazer política.

Já a segunda alternativa abre mão da crença de haver um único modo de se fazer política, ou seja, de uma Política. Nesse sentido, tudo seria política não porque tudo estaria politizado, e sim porque tudo poderia se tornar objeto de divergência, de convencimento, de debate político. Assim, declamar os princípios de uma cartilha ou de um panfleto nos grupos de Whatsapp da família pode ter efeitos políticos, mas até mesmo esse modo de se fazer política pode se tornar objeto de discussão política. O que nos leva a afirmar que psicopatologizar as posições políticas divergentes, mesmo aquelas que assumem traços declaradamente fascistas, pode trazer graves danos ao próprio fazer da política. Podemos concluir, portanto, que o fascismo deve ser criticado menos por sua aliança com um suposto transtorno mental e mais pela sua natureza no amplo terreno do fazer político, ou seja, o fascismo é justamente aquilo que abole a política.

Talvez, não seja o caso de recuar e dizer que nem tudo é política, e sim de radicalizar esse mandamento. Tudo pode se tornar objeto da política, inclusive o mandamento “tudo é política”, inclusive este artigo que acabo de escrever.

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