Como a mineração devasta as terras dos índios

Não são apenas garimpeiros, mas grandes empresas. Poluem, desmatam, desestruturam a caça; mas ainda piores são os rastros do mercúrio. Estatuto dos Povos Indígenas seria saída. Há dez anos, Congresso o engaveta

.

Por Gerôncio Rocha

Selvas, montanhas e rios
estão transidos de pasmo
É que avançam terra a dentro,
os homens alucinados.
…….

E, atrás deles, filhos, netos,
seguindo os antepassados,
Vêm deixar a sua vida,
caindo nos mesmos laços,
perdidos na mesma sede,
teimosos, desesperados,
por minas de prata e de ouro
curtindo destino ingrato,
emaranhando seus nomes
para a glória e o desbarato,
quando, dos perigos de hoje,
outros nascerem,mais altos.
Que a sede de ouro é sem cura,
e, por ela subjugados,
os homens matam e morrem,
ficam mortos, mas não fartos.
……
Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência

Os versos de Cecília Meireles são alusivos ao ciclo do ouro que marcou o período colonial, em meados do século XVIII em Minas Gerais. Mais de duzentos anos depois, o Brasil é palco de um novo ciclo; desde 1980, com a corrida à Serra Pelada,

estamos assistindo ao crescimento da atividade garimpeira, com mais de vinte províncias de ouro, cassiterita e pedras preciosas em exploração. O novo Eldorado já não é Minas Gerais, é toda a Amazônia. Empresários, donos de garimpos, atravessadores, contrabandistas, arrivistas endinheirados e políticos oportunistas compõem a cruzada invasora. Na retaguarda, milhares de homens desfigurados, tangidos pela fome e o desemprego, expulsos da terra, induzidos à única alternativa de trabalho e de vida que lhes resta: a ilusão, a sorte e o logro, num empreendimento profundamente excludente, onde apenas algumas centenas de indivíduos são beneficiados.

Triste ironia da democracia brasileira: o destino dos povos indígenas e de suas terras está mais ameaçado agora do que nos tempos da ditadura. De um lado, as empresas de mineração tentam ganhar no papel a legalização das áreas de pesquisa e lavra como condição de segurança para seus investimentos de capital. De outro, os empresários de garimpo fomentam invasões e intrusões de garimpeiros em várias áreas indígenas, buscando por meio do fato consumado antecipar-se às empresas.

Entre os dois tipos de invasores estão os índios, acossados e desinformados, sujeitos a manobras de cooptação e forçados a negociar em condições extremamente desiguais. Em 1986, um levantamento efetuado por geólogos e antropólogos do grupo de estudos CEDI-Conage revelou que 506 autorizações e 1685 pedidos de pesquisa mineral foram ilegalmente concedidos a 69 grupos econômicos, incidindo parcial ou totalmente sobre 77 áreas indígenas na Amazônia.

A partir de 1985, durante o governo Sarney, acentuou-se a investida pela mineração em terras indígenas, atuando em diversas frentes: campanhas de opinião pública, especialmente em Roraima e no Amazonas; pressão política no Congresso Nacional; mobilização do empresariado e ação de cúpula junto ao governo federal. O alvo são as terras dos índios Yanomami em Roraima, onde há ouro e jazimentos de cassiterita (minério de estanho) na Serra de Surucucus. José Altino Machado, empresário de garimpo, é um dos líderes. Em fevereiro de 1985 ele comandou uma invasão armada a Surucucus; uma semana depois a FUNAI, junto com a ajuda da Polícia Militar e da Polícia Federal, retirou os invasores. Em 1987 houve nova invasão, José Altino à frente, chegando a 40 mil o número de garimpeiros na mineração de ouro nos rios e igarapés. A presença dos invasores alterou profundamente a vida dos índios; a garimpagem poluiu os principais rios; a floresta foi devastada, dando lugar aos garimpos e a mais de 100 pistas de pouso, afugentando a caça. A introdução de alimentos industrializados desorganizou as roças tradicionais das comunidades mais afetadas, provocando a fome e criando relações de dependência; além da desnutrição, os índios foram afetados por epidemias de malária e de outras doenças trazidas pelos invasores. “Selvas, montanhas e rios / estão transidos de pasmo.”

Agora, agosto de 2019, graças aos modernos meios de comunicação, a população tomou conhecimento da mais recente invasão. Cada um pode avaliar a extensão da tragédia.

Os efeitos mais imediatos e desastrosos da exploração descontrolada do ouro ocorrem sobre o sistema hídrico: a remoção do solo à beira dos cursos d’água modifica as várzeas e provoca o assoreamento e poluição física das águas, comprometendo, inclusive, o abastecimento público. Em certos rios, como o Madeira, as dragas operam diretamente sobre o seu leito, retirando-lhe os sedimentos de fundo.

Todavia, o perigo maior para as populações e para o ecossistema reside no intensivo uso de mercúrio na extração do ouro. O processo se inicia com uma pré-concentração por meios gravimétrico. O material pré-concentrado é misturado com mercúrio, ocorrendo amalgamação com as partículas de ouro.Este amálgama é então aquecido com tochas de gás propano, liberando vapor de mercúrio diretamente na atmosfera; o excesso, na forma de mercúrio metálico, é lançado nos cursos d’água, indo se depositar nos sedimentos de fundo.

A produção de ouro com a utilização de mercúrio engendra, dessa maneira, três vetores que podem afetar a saúde pública: a) a contaminação com mercúrio vapor, diretamente sobre os trabalhadores do garimpo, durante a fase de amalgamação e queima; b) a poluição das águas e sedimentos, com a possibilidade de metilação do mercúrio e sua absorção pelos peixes, afetando a cadeia alimentar da população local; c) a contaminação com mercúrio vapor nos numerosos pontos de comercialização do ouro, onde, mais uma vez, ele é queimado. Esses efeitos maléficos ocorrem de forma generalizada em todos os cursos d’água onde é praticada a garimpagem na Amazônia.

A Constituição de 1988 estabelece que a exploração mineral em terras indígenas será submetida, caso a caso, à decisão do Congresso. Todavia, decorridos trinta anos, ainda não foram definidas, em legislação ordinária, as condições específicas em que essa exploração possa ocorrer. É nesse vazio legislativo que se intensifica o clima de faroeste na Amazônia.

Melissa Curi1, geóloga e antropóloga, fez em 2007 um competente estudo dos aspectos legais da questão, iniciando com a seguinte abertura: “A regulamentação da mineração e do potencial energético em terras indígenas, o processo demarcatório, bem como as inúmeras ocupações ilegais de madeireiros, garimpeiros, agricultores etc., compõem os capítulos atuais e contínuos da história do contato desrespeitoso entre sociedade envolvente e os povos indígenas”. A partir daí, lista e descreve os principais requisitos necessários à aprovação do Congresso: a) consulta às comunidades indígenas afetadas; b) participação da comunidade nos resultados da lavra; c) obrigatoriedade de estudo de impacto ambiental; d) necessidade de laudo antropológico; e) necessidade de licitação para exploração mineral; f) garantia de recuperação de área degradada.

Existem na Câmara Federal vários projetos de lei específica versando sobre a mineração em terras indígenas, todos eles discutidos em diferentes legislaturas, sem lograr aprovação. Ao lado deles, existe uma proposta mais ampla – o Estatuto dos Povos Indígenas , de 2009, da Comissão Nacional de Política Indigenista2, que abriga no seu título VI – Do aproveitamento dos recursos minerais e hídricos – os citados requisitos.

Considerando que essa nova versão do Estatuto trata de uma ampla e atualizada base jurídica de convivência do Estado com as sociedades indígenas; que o texto resultou de reuniões regionais de consulta e consenso , parece-nos mais lógico e producente pautar no Congresso a discussão deste documento. Naturalmente, teria de haver consulta prévia às entidades indigenistas. Se esse encaminhamento prevalecer, será um passo histórico do Congresso Nacional.

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  1. Melissa Curi: aspectos legais da mineração em terras indígenas. Revista de estudos e pesquisas, Funai, 2007.
  2. Ministério da Justiça / Comissão Nacional de Política Indigenista: proposta de estatuto dos povos indígenas, 2009.
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4 comentários para "Como a mineração devasta as terras dos índios"

  1. Renato Silva disse:

    Barbara, acho incrível, a defesa ideológica da miséria, sobre tudo na região Amazônica. Viva uma semana como Amazônida! De que vale viver sobre a fartura e morrer à míngua?
    Ideias como a sua, são doentias!

  2. Marcos Mahon disse:

    Você só destila ódio, pense em ajudar e não em destruir, para tudo existe solução.

  3. Barbara Arisi disse:

    A mineração responsável não existe no Brasil, é um desastre socioambiental imenso. Caro Elias Victori Soares, que comenta acima, indique onde o sr encontra alguma forma de mineração feita de forma cuidadosa e não tóxica e desastrosa para as plantas e os animais que vivem naquele ambiente e para as pessoas que ali trabalham? Venha com dados apra tratar do tema, do contrário, pode cair no conto do vigário ou no canto da sereia que vende mineração como algo possível de ser feito sem deixar uma área de “sacrifício”/ pegada ou morte ecológica para trás. abs

  4. Elias Victor Soares disse:

    Devia também mostrar o lado positivo da mineração, com fotos não se limitando a apresentada. Existem mineradoras sérias e que prezam pelo legado.
    Jornalismo parcial.

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