O que as cidades pequenas dizem sobre finanças públicas

Em Palmeiras (BA), retrato dos gastos públicos e da rala democracia brasileira. Em municípios com menos de 20 mil habitantes — 70% do total — há pouco espaço para participação popular, autonomia reduzida e transparência ínfima

Moradores de Palmeiras (BA) protestam contra a empresa Embasa, fornecedora de água da região. Imagem: Ricardo de Jesus
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Por Ana Paula Rocha

O município de Palmeiras está localizado na região da Chapada Diamantina, um dos principais destinos ecoturísticos da Bahia. O local alcançou status de município em 1891, algumas décadas após o início do garimpo de ouro e diamante na área. Atualmente, a principal fonte de renda dos moradores provém da atividade comercial e da prestação de serviços ligados ao turismo, principalmente em seu único distrito, o Vale de Caeté-Açu (mais conhecido como Vale do Capão).

A estimativa do IBGE para a população de Palmeiras em 2020 foi de pouco mais de 9 mil habitantes. É justamente este baixo número que dita a dinâmica eleitoral municipal em boa parte do país e que tem consequências para a administração financeira brasileira.

Novamente segundo o IBGE, o Brasil tem 5.570 municípios com cerca de 70% deles não ultrapassando os 20 mil habitantes. Na Bahia, meu estado natal, dos 417 municípios existentes, 240 fazem parte dessa maioria nacional classificada como de pequeno porte ao considerar-se o patamar populacional mencionado acima. Nesse ranking, a Bahia ocupa o quarto lugar, atrás de Minas Gerais (853), São Paulo (645) e Rio Grande do Sul (496).

A dinâmica eleitoral nos pequenos municípios

Nos pequenos municípios, particularmente nos distantes das áreas metropolitanas, as pessoas se conhecem pelo primeiro nome, têm muitos familiares em comum, sabem em detalhes a história de vida uns dos outros e, às vezes, têm informações até mesmo sobre o salário ou dívidas dos vizinhos. Por conta disso, além da compra de votos, as promessas de emprego ou ameaças de demissão por parte de candidatos a prefeito ou vereador são comuns e muito eficientes na manipulação da decisão dos eleitores. Eu mesma já ouvi e conheço um bom número de relatos deste tipo.

Para André Luís Marenco dos Santos, doutor em Ciência Política e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a pessoalização das relações político-administrativas nos pequenos centros urbanos brasileiros contribui para o que chama de patronagem política ou spoil system, “quando o preenchimento de cargos está baseado na possibilidade de indicação pelo governante, geralmente em troca de apoios, votos ou lealdade política e/ou pessoal”. Ele ressalta que a patronagem política “é mais frequente nos municípios menores”, ainda que a Constituição determine a seleção por concurso público para os “cargos administrativos abaixo dos de primeiro escalão”.

A renda das populações dessas localidades, normalmente baixa, é fator de peso na dinâmica eleitoral municipal. Pegando Palmeiras como exemplo e tendo por base os dados divulgados pelo IBGE em 2017, seu PIB per capita, que é a divisão de toda a renda do município pela sua população, era de R$ 8.083,20. No mesmo ano, o PIB per capita do brasileiro foi de R$ 31.833,50.

Também em 2017, a Federação das Indústrias do Estado do Rio (Firjan) publicou estudo tendo por base dados recolhidos em 2016, mas que excluiu 1024 municípios ou por não disponibilizarem suas informações fiscais, ou a disponibilizarem com inconsistências. Brasília e Fernando de Noronha não entraram na avaliação por não possuírem prefeituras. Um dos resultados encontrados foi que em 530 municípios do país, 80% dos trabalhos com carteira assinada estavam vinculados à prefeitura. Na minha cidade natal, são poucos os que têm essa estabilidade financeira graças ao trabalho regularizado, e boa parte dos que a possuem são empregados da máquina administrativa municipal.

Dependência do Fundo Participativo Municipal

Um dos sintomas da falta de autonomia orçamentária dos municípios é sua incapacidade de custear seus gastos com pessoal. Isso os torna dependentes de repasses federais e estaduais, sendo o maior deles o Fundo Participativo Municipal (FPM).

Descrito no Artigo 159 da Constituição Federal de 1988, o FPM corresponde a 22,5% dos 49% do total arrecadado pela União com “impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados”.

Esse fundo é, por sua vez, dividido em três, destinando-se 3,6% para a reserva, 10% às capitais e 86,4% para os municípios que não são capitais. É possível consultar quanto cada município brasileiro recebe de FPM e outras transferências constitucionais pelo site do Tesouro Nacional.

Recorrendo novamente aos dados analisados pela Firjan, desta vez tendo por base informações divulgadas pelas prefeituras no ano fiscal de 2018, no quesito “gastos com pessoal”, um dos cinco indicadores do Índice Firjan de Gestão Fiscal (IFGF), Palmeiras pontuou 0,27, resultado considerado crítico (inferior a 0,4, com a nota máxima sendo 1,0). Meruoca (CE), Arraias (TO), Brasópolis (MG) e Douradina (PR) são outros exemplos de municípios com menos de 20 mil habitantes que obtiveram resultados críticos.

Há também municípios como Candeias do Jamari (RO) e Santarém Novo (PA) que exibem como resposta a mensagem “Dados não disponíveis” para todos os indicadores pesquisados (você pode consultar sobre o seu município aqui).

Ao procurar sobre como deve ser aplicado o FPM, descobre-se a inexistência de qualquer tipo de especificação sobre isso. O que rege os gastos municipais e, por tabela, o repasse do FPM, são o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual. O primeiro propõe ações a médio prazo e as duas últimas são pensadas a curto prazo. Todos devem ser apresentados pelo prefeito à Câmara Municipal.

Além dos documentos mencionados acima, há o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, também conhecido pela sigla PDDU. Nele devem constar as medidas a serem tomadas pelos gestores públicos municipais não só a curto e médio prazo, mas também no longo prazo.

Segundo Fabiana Meurer e Guilherme Feijó Vieira em artigo, “o Estatuto das Cidades e a Constituição apontam o Plano Diretor como o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”. Sem ele, aumentam as chances de a aplicação do FPM e de todo o orçamento em mãos da prefeitura ser pouco eficaz.

E qual é a situação nos municípios pequenos? O PDDU não é obrigatório nos que registrem até 20 mil habitantes, localizam-se fora de áreas metropolitanas, não integrem área de influência de empreendimento ou de interesse turístico, estejam distantes de áreas onde realizam-se atividades de maior dano ao meio ambiente e nas quais não haja risco de graves deslizamentos, inundações e demais eventos correlacionados.

Ainda que esteja na minha cidade a sede administrativa do Parque Nacional da Chapada Diamantina, destino turístico internacional, ela não possui um Plano Diretor.

Quando gravei o documentário “Afogados” (2014), sobre alcoolismo na minha cidade, um motivo recorrente apresentado pelos entrevistados para explicar o alto número de alcoólatras em Palmeiras era a “falta do que fazer”, particularmente o desemprego e a ausência de opções de lazer no município. Se as demandas estruturais e sociais de todo o município fossem abordadas de maneira sistemática – com um PDDU participativo, por exemplo – talvez o alcoolismo fosse um problema de menor escala em Palmeiras.

A elaboração de um PDDU participativo leva em consideração as reivindicações da população, expostas em reuniões comunitárias organizadas com esse propósito. Há quase uma década, foram feitos estes encontros e começou-se a construção do PDDU de Palmeiras, mas ele nunca foi terminado. O prefeito da época avaliou como inviável financeiramente a contratação de pessoal técnico para realizar, por exemplo, avaliações geológicas do solo do município. Sei disso, porque meu pai participou diretamente do processo não concluído.

Com todo o exposto acima, surge a pergunta de como saber, afinal, para onde vai o dinheiro do FPM – mas não só ele – após chegar aos municípios.

Dificuldades na fiscalização dos gastos públicos

A Lei de Responsabilidade Fiscal, promulgada em 2000, é a que define os caminhos do dinheiro público. Ela impõe regras para as despesas no âmbito público, estipulando, por exemplo, tetos de gastos. Seu artigo 51 dá aos municípios a data limite de 30 de abril para que repassem à Secretaria do Tesouro Nacional suas contas referentes ao exercício anterior. O Tesouro Nacional tem, então, sessenta dias para colocá-las à disposição da sociedade.

Em 2009, foi promulgada a lei complementar à LRF obrigando os municípios, estados, o Distrito Federal e o Governo Federal a tornarem acessíveis, em tempo real e por “meios eletrônicos de acesso público” os dados referentes à sua arrecadação e despesas. No entanto, a Lei 12.527 de 2011, que altera e revoga leis anteriores, desobriga os municípios de até 10 mil habitantes a divulgarem online o que fazem com o dinheiro dos contribuintes. Palmeiras faz parte desse grupo.

Em 2016, o Ministério Público Federal divulgou o Ranking Nacional da Transparência após avaliar os portais de 5.567 municípios, de todos os estados e do Distrito Federal. A Bahia ocupou o penúltimo lugar, à frente apenas do estado de Roraima. Já na pontuação dos municípios, as cidades catarinenses obtiveram as notas gerais mais altas. O índice nacional ficou em 5,21 em uma escala que vai de 0 a 10.

Com a pandemia do novo coronavírus e o consequente aumento de despesas com saúde pública, os municípios precisaram – e por muito tempo ainda precisarão – do socorro financeiro estadual e federal. O estado de calamidade pública, previsto na LRF, suspende os prazos, metas fiscais e a exigência de licitações para compras por quanto tempo o cenário excepcional perdurar. Contudo a situação pode servir como brecha para o desvio de verba, como mostrou uma série de matérias do The Intercept Brasil acerca das fraudes nas compras de respiradores no estado de Santa Catarina.

Talvez alguns pensem que, em última instância, resta o jornalismo para fiscalizar as prefeituras dos pequenos municípios e informar com maior rapidez a população sobre ingerências, irresponsabilidades e crimes. Infelizmente, não é bem assim.

Há três anos a iniciativa Atlas da Notícia mapeia os veículos jornalísticos por todo o Brasil. Seu foco é justamente no que é conhecido como “jornalismo local”. O mais recente relatório constatou que 62,6% dos municípios brasileiros são “desertos de notícias”, ou seja, não possuem qualquer opção de veículo jornalístico independente. A maioria deles tem em média 7.100 habitantes. No total, cerca de 37 milhões de brasileiros não têm acesso a informações jornalísticas sobre seus próprios municípios por veículos de mídia locais.

Não bastasse o exposto acima, são essas localidades urbanas menores que concentram 83% dos casos de atentados e homicídios políticos no Brasil. Em um país onde entre 1995 e 2018 foram registrados 64 assassinatos a comunicadores por conta de seu trabalho, fazer jornalismo investigativo sobre política no interior, onde todos sabem seu endereço e quem são os seus familiares, pode se tornar sentença de morte. Resta a cada morador desses pequenos locais tentar entender o que ocorre na administração de seu município.

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