O desmonte e o mal-estar da produção científica

Faltam insumos à pesquisa — e as bolsas não são reajustadas desde 2013. Métricas distorcidas de produtividade, concorrência por recurso e incerteza quanto ao futuro fazem explodir a taxa de sofrimento psíquico nas universidades

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Segundo dados da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, vinculada ao MEC), os pós-graduandos estão presentes em 90% das pesquisas realizadas no país, ou seja, não há pesquisa no Brasil sem a pós-graduação. Mas as condições em que essas pesquisas são realizadas não são as melhores. 

As bolsas de mestrado e doutorado vinculadas à Capes e ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) – instituições públicas de desenvolvimento da e fomento à pesquisa no Brasil – custam, respectivamente, R$1.500 e R$2.200 e não são reajustadas desde 2013. Segundo nota recente publicada no site da Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG), nesses 8 anos de déficit, a perda de poder de compra supera 60%. Se o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) do IBGE fosse aplicado às bolsas, os valores subiriam para R$2.452 no caso de mestrandos, e R$3.596 para os doutorandos.

Com o custo de vida exorbitante que assola a classe trabalhadora neste período de recessão econômica e de inflação, o valor das bolsas não custeia os recursos mínimos necessários para a reprodução da vida – como moradia, alimentação, gás de cozinha, por exemplo. Principalmente se é preciso sustentar uma família com esse “salário”. Apesar do valor mensal recebido ser insuficiente para se manter em muitas cidades produzindo ciência, para que haja a renovação da chamada bolsa de pesquisa, o pós-graduando assina um termo de compromisso que garanta que não exercemos outra atividade laboral remunerada. Afinal, o direito à “bolsa” exige dedicação exclusiva. No entanto, a remuneração, além de baixíssima, não garante direitos trabalhistas como férias remuneradas, 13° e seguro desemprego. 

Para piorar a situação, a falta de recursos para trabalhos de campo e compra insumos que acabam atrasando o andamento da pesquisa faz com que muitos pesquisadores pós-graduandos tenham que arcar com esses custos do próprio bolso. Além disso, muitos programas de pós-graduação não custeiam a inscrição em eventos científicos – que em algumas áreas chegam a cobrar quase o valor da bolsa de mestrado (a inscrição no último Congresso Brasileiro de Geologia era de R$1152). Eventos esses que são espaços de comunicação com os pares e de apresentação das nossas pesquisas, e que, além de contribuírem para o avanço da ciência e para a criação de redes de contatos, enriquecem nosso currículo.

Somado a isso, há a incerteza pós-defesa de doutorado, visto que a taxa de desemprego de doutores no Brasil vem crescendo e os concursos públicos e as bolsas de pós-doc para absorver esses trabalhadores no mercado estão cada vez mais raros. O período mais próspero para a produção científica no Brasil aconteceu entre 2003 e 2010, época em que o investimento total em Ciência e Tecnologia saiu de 2,5 para 10 bilhões de reais. O país caminhava para um investimento de 2% do PIB em Ciência, Tecnologia e Inovação. De lá para cá, o investimento despencou, e essa queda se intensificou ainda mais depois da PEC do teto de gastos que congelou por 20 anos os investimentos em saúde e educação. Aliás, colhemos os frutos dos impactos negativos desse ajuste fiscal neoliberal durante a pandemia de covid-19, em que vimos o importante papel que a ciência desempenha no desenvolvimento da sociedade. Afinal, as vacinas são produzidas pela ciência, e – reitero –, os pós-graduandos estão presentes em 90% das pesquisas realizadas no Brasil.

Ser cientista nesse país não é fácil. Mas gostaria de apontar, ainda, um outro grande gargalo na produção de ciência, tanto nacional quanto internacional: a indústria acadêmica. Na ciência, não basta descobrir, é preciso contar aos outros o que você descobriu. É isso que permite a circulação de ideias, resultados, métodos, referências, lacunas já preenchidas e a preencher. Até os caminhos que obtiverem resultados negativos também são importantes para a construção da ciência, afinal, se um cientista refuta a hipótese da sua pesquisa, a comunidade acadêmica fica ciente de que é necessário propor um outro caminho para corroborar a mesma hipótese. Ou propor uma nova hipótese.

Atualmente, a atuação dos pesquisadores é avaliada com base nos artigos e livros publicados em periódicos e editoras de alto impacto. Para fazer essas avaliações de produtividade “qualitativa”, a CAPES e o CNPq e as agências de fomento estaduais adotam basicamente dois critérios (quantitativos): a quantidade de artigos científicos publicados em revistas e o número de vezes em que esses artigos são citados em outros artigos – o que, em teoria, é uma evidência de que o trabalho foi relevante e influente. Como a classificação de um cientista (professor-pesquisador) define quanto dinheiro ele recebe para desenvolvimento de seus projetos, e consequentemente para seu grupo de pós-graduandos que precisam financiar suas pesquisas (insumos de laboratório, trabalhos de campo, etc.), vivencia-se nas universidades a mercantilização do conhecimento. 

A quantidade bruta de artigos passa a valer mais do que a criatividade e a originalidade de cada um. Os pesquisadores, sob pressão, se preocupam mais em bater metas do que em produzir boa ciência. E a mesma regra de classificação se dá para o pleiteamento das bolsas-salário. Devido à falta de verbas, há quem desenvolva mestrado e doutorado sem remuneração, e isso pode representar um privilégio socioeconômico e racial. Afinal, quem consegue se dedicar à pesquisa sem uma fonte de renda?! Isso tudo cria um círculo vicioso: só recebem investimentos os programas de pós-graduação e os professores-pesquisadores que produzem mais e, sem financiamento, não é possível desenvolver de maneira equitativa todos os pesquisadores (professores ou pós-graduandos) e todas as áreas de pesquisa. Há quem publique por interesse quantitativo, e há quem publique por interesse qualitativo. Essa escolha cobra um preço, que pode ser material ou simbólico. 

Em 2018, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) realizou uma pesquisa (que já havia sido realizada em 2014) sobre o perfil socioeconômico dos estudantes de graduação das universidades federais. Os resultados, baseados em 424 mil entrevistas, explicitam a dimensão das dificuldades psicológicas enfrentadas nas universidades. Nota-se de maneira clara um agravamento em relação à pesquisa de 2014. 

Fonte do gráfico: aqui

De acordo com o estudo da Andifes, 7 em cada 10 alunos de instituições federais no Brasil sofrem de algum tipo de sofrimento psíquico – como ansiedade ou depressão. Segundo a OMS, a depressão é a principal causa de mortes por suicídio no mundo, com cerca de 800 mil casos por ano. O Brasil é um dos países com a maior taxa de depressão, 5,8% – ficando atrás da Ucrânia (6,3%), da Austrália (5,9%), da Estônia (5,9%) e dos Estados Unidos (5,9%). Ainda assim, é assustador que, nas universidades, esse índice seja mais alto do que a média geral da população.

O agravamento do sofrimento psíquico se relaciona com a piora das condições materiais – pois ninguém estuda e nem produz ciência preocupado se vai conseguir sustentar um teto ou ter dinheiro para se alimentar durante o mês. O intervalo entre 2014 e 2018 demonstrado no gráfico acima compreende o período do ajuste fiscal que impôs um teto de gastos em setores como a educação. Compreende, também, o período do golpe de 2016 e do aprofundamento do neoliberalismo com a ascensão do governo Temer – e que hoje, com o governo Bolsonaro, toma proporções ainda mais catastróficas e estarrecedoras. 

Segundo o historiador Heribaldo Maia, em seu mais recente livro Neoliberalismo e sofrimento psíquico: o mal-estar nas universidades, o neoliberalismo, como forma de gestão do sofrimento, depende de certos níveis de tensão psíquica nos sujeitos para manutenção da produtividade. Com o aumento na concorrência – pelas parcas verbas de financiamento – entre pesquisadores, professores e pós-graduandos, frente ao desmantelamento da ciência e da educação no Brasil, com o aumento exponencial do exército de trabalhadores reserva, e com um tecido social onde qualquer exclusão do trabalho representa falta de proteção social, há um ambiente de constante ansiedade diante do medo da miséria. Ou seja, a ansiedade e o medo são afetos centrais no neoliberalismo e eles impelem as pessoas a não questionarem o sistema e a aceitarem quaisquer condições, por mais precarizadas que sejam. Para Heribaldo, esse cenário se reproduz dentro das universidades. Segundo pesquisa com 2 mil estudantes de 26 países, publicada na revista Nature Biotechnology em março de 2018, mestrandos e doutorandos têm 6 vezes mais chance de sofrer ansiedade e depressão do que a população em geral. 

Por fim, ficam aqui alguns questionamentos: quem atravanca o desenvolvimento equitativo da ciência ao estabelecer métricas distorcidas de produtividade? Poderíamos afirmar que o modo de produção e a ideologia capitalistas, na sua forma de gestão neoliberal, atrelados ao desenvolvimento científico, têm mercantilizado o saber?

Ciência é política, conhecimento é político; mas, mais que isso, a reprodução da vida é política. Manter as condições para que se reproduza a capacidade de trabalho – ou seja, acesso à moradia, saúde, alimentação, lazer, mobilidade, etc., de qualidades –, apesar de na lógica do capitalismo ser responsabilidade do próprio trabalhador, faz parte das demandas mais urgentes levantadas pela luta de classes. Trata-se, portanto, de uma disputa coletiva, não individual. Por isso, é de suma importância para o nosso país lutarmos por melhores condições de trabalho e de remuneração para os pós-graduandos que, mesmo sob condições precárias, ainda produzem ciência de qualidade no Brasil. Por isso a luta encabeçada pela Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG) pelo reajuste do valor das bolsas financiadas pela CAPES e pelo CNPq é uma luta da população brasileira como um todo, é uma luta contra o aprofundamento da crise do capitalismo neoliberal e contra a mercantilização do conhecimento científico.

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