Como as polícias sabotaram a democracia

Exame em profundidade dos atos golpistas nas estradas indica: PRF não foi apenas conivente – ela os liderou. E teve, em muitos casos, apoio das PMs. Episódio revela: ou o país reforma a Segurança Pública, ou a política sucumbirá à violência

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No dia 20 de outubro, já tendo mastigado um pouco melhor os péssimos resultados das eleições legislativas, publiquei aqui o artigo “Corra que a polícia vem aí”, analisando os significados do crescimento das fileiras policiais na política brasileira desde 2018. Nele, repetia a mesma conclusão que venho apontando há alguns anos: a polícia está assumindo um papel cada vez mais protagonista na política brasileira.

Agora, tendo já mastigado o bom resultado eleitoral do fim de outubro e digerido a semana tenebrosa de protestos fascistas que o sucedeu, penso que já se pode dizer: esta polícia politizada que vinha se anunciando nos últimos anos, definitivamente, já está entre nós.

E não estou falando apenas do óbvio golpismo da PRF. É claro que a Polícia Rodoviária comandada por Bolsonaro foi quem mais chutou o balde. Já no dia da votação do 2º turno, ela foi responsável por realizar vários bloqueios em estradas, principalmente no Nordeste, a fim de atrasar eleitores em regiões onde Lula era favorito. No dia seguinte, com sua inteligência já sabendo dos protestos fascistas que ocorreriam em rodovias, a PRF cortou um terço de seu efetivo para facilitá-los.

A partir daí, tivemos um show de imagens golpistas que falam por si mesmas. Tivemos vídeos de policiais dizendo que se recusavam a multar os caminhoneiros; de outros sendo recebidos com comemorações ao avisar aos manifestantes que a única ordem recebida era continuar ali com eles. Tivemos até mesmo a absurda imagem de um PRF cortando uma cerca para facilitar a invasão de protestantes (ou terroristas) ao bloqueio do aeroporto de Guarulhos.

Mas as atitudes passaram longe de serem casos isolados. Enquanto, na ponta, agentes protagonizavam estas cenas, a diretoria da PRF empurrava a situação com a barriga.

Na manhã do dia seguinte às eleições, quando 11 estados já contavam com bloqueios nas rodovias, a PRF acionou a Advocacia Geral da União (AGU) para, supostamente, conseguir liberar as estradas. Como se realmente fosse preciso alguma ordem judicial para desfazer bloqueios ilegais feitos por pessoas cujo objetivo era abertamente criminoso e flagrante: pedir uma intervenção militar contra as eleições democráticas do país.

Na mesma noite, o STF reconheceria a omissão da PRF e ordenaria que todas as polícias do país atuassem para liberar as rodovias. Com pouco efeito. O grosso dos bloqueios se estenderia até o fim da semana e a decisão da Suprema Corte esbarraria no corpo mole de outras instituições: as polícias estaduais.

Em São Paulo, a Tropa de Choque da PM, acostumada a chegar aos locais de protesto antes mesmo dos manifestantes quando a organização é de esquerda, demoraria quase 2 longos dias até dar as caras. As comparações com a atuação da PM em outros tempos se tornaram inevitáveis.

Para piorar, a rodada do campeonato brasileiro de futebol deixaria a situação ainda mais escrachada. Torcidas organizadas como a Gaviões e a Galoucura, que atravessavam seus estados para assistir aos jogos, conseguiam com facilidade furar os bloqueios, que eram realizados por pouquíssimos bolsonaristas. A situação escancarou ainda mais o corpo mole das polícias diante da situação.

Algumas imagens mostradas na TV beiravam o escárnio. Na Marginal Tietê, um grupo que não superava 15 bolsonaristas fechava a via expressa acompanhado de 8 viaturas da PM. A situação se repetia Brasil afora. As polícias com suas viaturas causavam mais volume de bloqueio em certas vias do que os próprios manifestantes, que sempre estavam em baixíssimo número, mas não eram incomodados pela presença policial.

Ora, numa situação como essa, em que a adesão aos protestos era tão baixa e o poder dos manifestantes tão reduzido, não eram os caminhoneiros que faziam o país inteiro de refém. Eram as as polícias, com sua omissão e corpo mole, que realmente paravam o Brasil.

De outro lado, a postura dos governadores causava outras dúvidas. Eles propositalmente não queriam dar a ordem para suas polícias agirem? Estavam com medo de dar a ordem? Ou deram a ordem e não foram obedecidos? O silêncio e o comedimento da maior parte deles deixaram essas perguntas ainda sem respostas.

Em São Paulo, a situação foi emblemática de que algo de podre parecia manifestar-se nas fileiras policiais. O governador Rodrigo Garcia só se pronunciou publicamente no 1º de novembro, de forma branda, justificando que precisou aguardar a ordem judicial para agir melhor. Mentira. Não era necessária nenhuma ordem judicial contra atos claramente ilegais e flagrantes. Além disso, mais de dez horas já tinham se passado após a decisão do STF determinando o desbloqueio das estradas.

Após sua breve coletiva, ele passou o microfone para o Procurador Geral de Justiça (PGJ) de São Paulo e, aí sim, finalmente, tivemos as primeiras palavras mais duras de uma autoridade contra o caos que se instalava no país. Mário Sarrubo foi enfático ao dizer que os bloqueios eram feitos por uma organização criminosa financiada por empresários e que, por isso mesmo, já estava acionando o GAECO do MP paulista para investigar.

A afirmação do PGJ não teve pouco significado. No Brasil, além do comando dos governadores, as polícias estaduais estão sujeitas a dois controles: o interno, realizado pelas corregedorias formadas pelos próprios policiais, e o externo, que é feito justamente pelo Ministério Público. Por isso, a afirmação do chefe do MP paulista, apesar de enérgica, também preocupou um pouco mais. Na posição de controlador da polícia, sua postura contrastava demais com a postura de seus “controlados”.

No dia seguinte, em clima completamente diferente, o Coronel Álvaro Camilo, secretário-executivo da PM de São Paulo, deu uma entrevista à Jovem Pan contradizendo o PGJ. Até reconheceu a ilegalidade das manifestações, mas frisou que os manifestantes não eram criminosos, e que passaria o dia negociando na esperança de que as coisas “melhorassem um pouco” naquela quarta-feira, quem sabe sendo resolvidas no dia seguinte.

Nesse mesmo dia, cenas do corpo mole policial seguiam acontecendo. No Pará, um PM foi afastado por se recusar a cumprir ordem de desbloqueio. No interior de SP, vídeos de bolsonaristas fazendo churrasco em rodovias com PMs tranquilos ao fundo viralizaram. No Paraná, o comandante-geral da PM apareceu em vídeo com manifestantes admitindo que prevaricou ao não desfazer os bloqueios.

Na Record, um oficial da PM Rodoviária deu entrevista dizendo que quem negociava para desobstruir a Regis Bittencourt era ele. Pouco tempo depois, era um oficial do Choque quem dava entrevista dizendo que tratava das negociações. Nesse empurra-empurra, a Régis foi liberada e fechada de novo umas três vezes em 24 horas, como tantas outras rodovias no país.

Ao mesmo tempo, a PRF atravessava os governadores para enviar ofício à justiça pedindo o auxílio da Força Nacional. Aparentemente, os quase 400 mil policiais militares do país não eram suficientes para resolver uma situação causada por tão pouca gente, e a PRF julgou essencial que fossem acionados os cerca de 10 mil policiais da força comandada pelo marido de Carla Zambelli.

E foi assim que bolsonaristas e policiais ficaram dias encenando um jogo de gato e rato que parecia fazer o Brasil inteiro de bobo.

Resumindo este raio-X da atuação policial na semana de protestos bolsonaristas: vimos o Brasil inteiro ser paralisado e correr o risco de desabastecimento em um protesto golpista claramente puxado por empresas ligadas ao agronegócio que, mesmo com pouquíssima adesão popular, conseguiu desestabilizar o país graças aos braços cruzados e ao corpo mole das polícias federais e estaduais, cada vez mais tomadas pelas ideias de extrema-direita que assombram o Brasil.

Foi uma semana para nos colocar diante do tamanho do desafio que teremos pela frente com a reconstrução do país a partir do governo Lula. Para nos avisar que mudar nossa matriz de transportes e reformar nossas polícias não são políticas apenas de infraestrutura e segurança pública, mas dizem respeito a defesa da nossa própria soberania.

Mexer neste espinhoso campo do controle sobre as polícias é tarefa primordial para os novos tempos que queremos viver no Brasil. E é bom já termos em mente, com clareza, que isso não será feito sem conflitos e desavenças com as próprias fileiras policiais. Punir o golpismo policial, recuperar o controle do MP e de governadores sobre as polícias e criar mecanismos de participação popular na segurança pública devem ser colocados na ordem do dia, sob o risco de perdermos de vez nossa soberania.

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