A família que detesta a liberdade de imprensa

Analisamos os quatro anos da memória digital da família Bolsonaro. Em meio à “cortina de fumaça”, enganar e engajar deram o tom do discurso bolsonarista em menção à imprensa em diferentes momentos, como a pandemia e as eleições

.

Os ataques e as ameaças contra a imprensa brasileira aumentaram brutalmente com a ascensão do discurso bolsonarista via sites de redes sociais, sobretudo a partir de 2019, quando o “capitão” foi empossado presidente. “Compartilhe a verdade, pois se depender da imprensa…” é um dos milhares de enunciados que circulam diariamente nas mídias sociais e, desde as eleições de 2018, acendeu o alerta entre ministros do Superior Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

A estratégia baseada em conteúdos digitais, produzidos pelo presidente Jair Bolsonaro e pelos seus apoiadores políticos, especialmente os seus três filhos envolvidos na política nacional, tem sido interpretada como uma das principais características do “bolsonarismo”, um movimento de caráter antiestrutural, conforme a antropóloga e professora Letícia Cesarino (UFSC) que estuda as novas fronteiras da cibernética.

Este discurso coeso entre políticos da família Bolsonaro carrega duas fortes marcas que, por vezes, se sobrepõem: 1) estigmatização das investigações que têm seus membros e aliados como alvo, bem como 2) estímulo à vaia virtual de críticos e adversários políticos. Em suas declarações, os políticos bolsonaristas orientam-se por crenças extremistas e opiniões do espectro político da direita – e as repercutem, a partir de haters e bots, protagonizando inúmeras notícias envolvendo ataques e atentados à jornalistas e redações.

Ameaças e ataques, portanto, têm inflamado a esfera pública brasileira, principalmente a partir dos agentes públicos da família Bolsonaro. As partes interessadas em impedir eventuais investigações – e as consequentes notícias por parte da imprensa – têm usado de meios cada vez mais violentos, conforme alertam associações de imprensa brasileiras.

A imprensa segundo as associações

De acordo com o relatório Monitoramento de ataques à imprensa no Brasil da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), no acumulado, os ataques contra a liberdade de expressão de jornalistas registraram um aumento de 248,5% desde 2019. Neste ano, as agressões graves atingiram uma marca histórica, incluindo o assassinato do jornalista britânico Dom Phillips e de Bruno Pereira, indigienista brasileiro, durante o trabalho investigativo no Vale do Javari, região amazônica, um acontecimento com grande repercussão internacional.

Frente a este autoritarismo político e ao totalitarismo tecnológico, a imprensa em meios digitais no Brasil demanda de ferramentas como Metamemo – um sistema para coletar, armazenar e visualizar as memórias digitais – e a criação de bases de dados como o Bolsodata. Além do Facebook, Instagram, Twitter e YouTube, é possível também analisar Telegram e Blogger.

Metamemo e Bolsodata são ferramentas criadas com apoio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a partir do compromisso com as defesas do direito à informação e da liberdade do jornalismo, podem ser utilizados por qualquer cidadão, ativista ou jornalista.

Em uma época marcada pela abundância de conteúdos em plataformas de mídias sociais e aplicativos de trocas de mensagens, a possibilidade de extrair, transformar e disponibilizar publicações de todos os políticos em cargos eletivos a partir de suas contas em redes sociais serve para gerar provas auxiliares para a cobertura jornalística sobre os atos, as faltas e as falas – neste caso, relacionadas à família Bolsonaro.

A imprensa segundo os Bolsonaro

Com base nos dados coletados com Metamemo/Bolsodata, realizamos uma análise de conteúdo a partir das 1.141 publicações apontadas na busca pela palavra-chave “imprensa” no período de 1º janeiro de 2019 a 20 setembro de 2022. Este contexto histórico compreende o período de 45 meses, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, até os 13 dias que antecedem 2 de outubro de 2022, o primeiro turno das eleições de 2022.

As publicações que mencionam a palavra “imprensa” foram mais notadas no Facebook (598) e Instagram (501), seguidos pelo Twitter (42) e YouTube (29), considerando a soma das publicações do presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ), do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) e do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).

Analisamos cinco momentos (9 meses cada) destes 45 meses, também entre 2019 e 2022, de modo a demonstrar frequências de publicações citando a imprensa e tendências das duas plataformas da holding Meta (Facebook e Instagram), as mais utilizadas pelo bolsonarismo neste período, de acordo com o Bolsodata

Nas menções à imprensa, Facebook e Instagram ganharam força entre os bolsonaristas durante o primeiro ano do mandato e o período marcado pelo início da pandemia, de janeiro de 2019 até junho de 2020, atingindo uma média de 150 publicações a cada 9 meses. Na mesma proporção, as menções seguiram a média de 100 publicações entre julho de 2020 e setembro de 2022, conforme mostra o gráfico acima, nos cinco períodos que correspondem ao mandato de Bolsonaro.

Ainda de acordo com o Metamemo/Bolsodata, entre junho de 2013 e dezembro de 2018, a família Bolsonaro publicou 628 vezes a palavra “imprensa” entre Facebook, YouTube, Instagram e Twitter. Todos esses dados podem ser correlacionados ao contexto de ódio à imprensa, com a maior explosão de ataques e ameaças a jornalistas já registrados na história do país. Analisamos dois momentos marcantes destes pronunciamentos amplamente midiatizados e repercutidos na esfera pública digital.

Carlos Bolsonaro, a imprensa e as eleições

Acusando de fraude a campanha de Lula, o principal adversário do “bolsonarismo” nas eleições deste ano, Carlos Bolsonaro utilizou no Facebook, em 4 de julho de 2022, uma imagem da manchete da Veja para uma insinuação sobre “os caras da ‘imprensa’”, colocando entre aspas essa expressão em seu post.

O vereador carioca demonstra a generalizada desqualificação do jornalismo na suposta tentativa de “calar sem a mínima vergonha” os políticos da sua família. Ainda segundo Carlos, as pessoas acusadas de fake news são eles mesmos: os membros da família Bolsonaro. Uma declaração com marcas discursivas de xingamento e subestimação da imprensa brasileira.

Conforme quatro inquéritos (4871, 4874, 4878 e 4828) do STF sobre as milícias digitais, amplamente noticiados pela imprensa nacional, Carlos Bolsonaro figura como um dos líderes do “gabinete do ódio”, cuja estratégia consiste em operar as redes sociais, sobretudo, com ataques e ameaças em multinível da internet – comentários públicos, mensagens privadas, reações em massa etc. – para gerar pânico moral, insuflar o eleitorado contra “alvos” previamente escolhidos e abafar escândalos, principalmente através da deslegitimação do jornalismo.

Essa prática ilegal pode influenciar a opinião pública, a partir da esfera digital, com táticas que beiram a intimidação de diferentes níveis. Cidadãos, ativistas, artistas, juristas e também jornalistas têm sido os alvos principais.

A cabeça por trás dessa estratégia é Steve Bannon, estrategista-chefe da campanha que elegeu Donald Trump, em 2016, entre os estadunidenses. A própria família Bolsonaro o reconhece como um assessor informal – ou “posto de intercâmbio”, como prefere o ultraconservador estadunidense. Carlos Bolsonaro é considerado o operador da comunicação digital do bolsonarismo, mas parece evitar qualquer conexão pública com ele.

Jair Bolsonaro, a imprensa e a covid-19

Durante a pandemia, o presidente Jair Bolsonaro publicou no Twitter, no dia 3 de dezembro de 2020, a pauta de mais uma de suas lives no YouTube. O penúltimo item da lista era “Desmentindo mentiras da imprensa” e, por último, a “Covid 19”. O assunto não transparecia ser um ponto forte para a propaganda do presidente.

Novamente por meio do Twitter, em 12 de janeiro de 2021, o então presidente voltou a mencionar a imprensa, dessa vez em outro tom, de acordo com registro do Metamemo/Bolsodata. No enunciado, o então presidente se posiciona em resposta às notícias sobre suas decisões na corrida global pelas compras de imunizantes e campanhas de vacinação no Brasil.

Neste item notamos marcas discursivas de promoção com frases como “Teremos vacina de forma segura e eficiente”. Mas também uma defesa sobre a negligência na tomada de decisão junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a aprovação, de modo rápido e efetivo, da vacinas contra a covid-19; o que foi amplamente criticado pela imprensa brasileira e que motiva o presidente a iniciar o seu tweet com “boa imprensa não é a que mais critica ou elogia, mas aquela que fala a verdade”, relativizando tanto a função social do jornalismo quanto à ideia de verdade e mentira.

Diferenciando as táticas do “bolsonarismo”

Existe uma relação das plataformas digitais com a tática de misinformation – quando a circulação deseja influenciar e não necessariamente enganar. Diferente da tática de disinformation, um termo amplamente utilizado para análise das fakenews, quando a intenção é, sobretudo, enganar.

Enquanto a misinformation é um modo de informar para engajar, a disinformation é um modo de informar para enganar. De modo congruente, misinformation e disinformation fomentam a detração da credibilidade da imprensa em paralelo à promoção da informação tendenciosa. É assim que engajar e enganar se misturam e burlam regras das plataformas a respeito dos filtros de conteúdos indevidos ou ilegais em períodos como as eleições deste ano

Com isso, a verdade e a mentira, as news e as fake news, se confundem na consciência individual sobre os acontecimentos políticos no Brasil midiatizados de modo crescente via mídias sociais, onde as pessoas confiam geralmente na moderação de conteúdos irregulares.

Conforme teorizam cientistas da comunicação como Ana Carolina Westrup e Paulo Victor Melo (UFS), a estratégia do tecnopopulismo é capaz de gerar bolhas informacionais inflamáveis e casos de hipnose argumentativa em plataformas, estruturas digitais propícias para a propagação sociotécnica da informação politicamente enganosa em uma conjuntura histórica propiciadora de reivindicações ideologicamente esvaziadas.

Um compromisso pelo futuro democrático

O momento histórico que atravessamos está marcado pela velocidade da produção de conteúdos, incluindo a informação tendenciosa e a informação enganosa, ambas originadas por contas de agentes estatais e não-estatais, em diferentes plataformas digitais.

Se por um lado a democracia demanda da imprensa a construção da opinião pública, por outro lado a imprensa demanda a liberdade das plataformas para se comunicar cada vez mais com o maior número de pessoas via Facebook, Instagram, Twitter e YouTube – as quatro principais plataformas utilizadas nos últimos quatro anos pelo bolsonarismo, conforme dados do Metamemo/Bolsodata.

O Brasil vive o desafio de aliar as associações de jornalismo do Brasil com instituições científicas e organizações tecnológicas dedicadas às pesquisas e inovações cívicas, em Comunicação e Direito, que permitam negociar as regras de moderação de táticas danosas financiadas ou incentivadas por agentes públicos em cargos eletivos no contexto político brasileiro.

Jornalistas, especialmente da linha investigativa, podem juntar-se aos cientistas de dados e fortalecer a função social de vigiar os poderes democráticos (Executivo, Legislativo e Judiciário), reivindicar o direito à informação pela sociedade brasileira, combater o caos das declarações falsas e denunciar os brutais apagões de dados oficiais.

Este artigo teve o apoio de uma microbolsa oferecida pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e tem Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *