A esquerda vai ao Parlamento. Vai?

Em quatro décadas, opção pelas instituições minou as forças dos movimentos sociais e abriu, nas periferias, espaço para as ideias mais retrógradas. Por que, então, eleger — em especial nos estados — bancadas críticas ao sistema?

Imagem: Eraldo Peres/CB/D.A Press
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A partir do início da década de 1990, os EUA, suas agências e representantes locais começaram a pôr em marcha na América Latina as ações planejadas de conquista da subjetividade social definidas pelos estrategistas do sistema na reunião de Santa Fé, Novo México, em 1988. [1] Enquanto isso ocorria, a esquerda, mais ou menos no mesmo período, foi abandonando gradativamente o território estratégico que ocupava na formação da consciência e organização das bases, conquistado pelos movimentos populares, sindicais e eclesiais nas décadas anteriores. A ocupação desse território subjetivo, resultante de um intenso trabalho educativo, cultural, comunicacional, teórico e organizativo realizado por grupos emancipatórios nas décadas de 70 e 80, foi a fonte de energia social que deu origem às diversas organizações fortes no plano nacional, como o PT, CUT, MST, CMP [2]. Essa fonte ético-política era o que dava coesão e identidade às suas entidades representativas e as mantinham firmes em uma luta emancipatória combativa e saudavelmente intransigente na defesa de suas causas.

A fonte de energia ético-política resultante da organização e formação das bases sociais produziu entidades fortes e a criação de uma força social e política considerável, capaz de definir a conjuntura nacional em diversos aspectos e disputar com vitórias algumas batalhas contra o capital. A eleição de Lula, um produto ímpar desse processo, quase foi realidade já em 1989.

Isso gerou reação do inimigo, que, inteligentemente, concentrou seu ataque na conquista do território subjetivo que ele estava perdendo para os movimentos emancipatórios. Era preciso, segundo os estrategistas do sistema, controlar e dominar os campos da religiosidade, das universidades e da cultura, ou seja, exatamente os campos que conformam a subjetividade social em que se desenvolviam, respectivamente, a Teologia da Libertação, a teoria crítica de inspiração marxista e a cultura crítica e reflexiva.

Coincidindo com esse deslocamento do ataque do inimigo ؘ– que reconheceu que não bastava “defender eleições, esquecendo outras questões fundamentais” (palavras Documento de Santa Fé II) – a esquerda abandonou o território estratégico que havia conquistado e lançou-se quase que totalmente à batalha eleitoral, sem, contudo, construir defesas ou deixar tropas para evitar o assalto do inimigo. Mais ou menos na segunda metade da década de 1990, a priorização da disputa eleitoral e da gestão dos espaços de poder conquistados passou a absorver todas as energias do PT e mesmo de grande parte dos movimentos sociais.

O resultado não poderia ser outro. Quando abandonamos um território estratégico sem deixar defesas sólidas construídas, é quase um convite para a invasão do inimigo. A maioria dos que lutavam pela transformação do sistema passaram a preencher todo seu tempo e canalizar todas as energias nas eleições e ocupação do poder institucional e deixaram de lado o trabalho de educação popular, organização das bases, estudo e produção teórica crítica sobre a realidade.

Hoje, como consequência, vemos esse território subjetivo dominado por ideias ultraconservadoras, protofascistas e pelo fundamentalismo religioso e totalmente suscetível aos ataques psicológicos e informacionais da mídia corporativa e dos meios digitais. A ameaça que movimentos sociais e governos de esquerda, centro-esquerda e nacionalistas podem representar para os interesses do capital pode ser facilmente debelada com a manipulação da consciência da sociedade civil. O controle desse campo pode se converter em votos ou mobilizações que favoreçam os políticos e movimentos de direita, facilitando golpes (suaves ou militares) ou eleições que mudem os rumos da política e da economia dos países para submetê-los às exigências do mercado e, “de gorjeta”, às demandas do crime organizado.

Após várias décadas dessa intervenção planejada do sistema na consciência da sociedade civil, para a qual destinou vultosos recursos e estruturas, não é de se admirar que parte significativa da população venha a apoiar alternativas eleitorais de direita ou extrema-direita, que atualmente se mesclam com o fundamentalismo religioso neopentecostal. O caso brasileiro recente mostra apenas a que ponto pode chegar à intensificação dessa estratégia. Bolsonaro e os parlamentares bolsonarista são apenas resultados visíveis (talvez não previsíveis para o sistema, mas, de qualquer forma, aceitáveis) de uma estratégia de longo prazo que a esquerda não foi capaz de percebeu e neutralizar. Ao contrário, até facilitou.

A disputa eleitoral não foi, como deveria ser em partidos de esquerda, um campo de batalha a mais em uma guerra mais ampla, que canalizasse na frente de luta institucional as conquistas e demandas da sociedade organizada. Ela acabou adquirindo autonomia e lógica própria, tornando-se um fim em si mesma e afastando-se da fonte que lhe fornecia a energia nos tempos de maior poder dos movimentos emancipatórios. Embora ainda haja aproximação dessa fonte para se nutrir de votos, a esquerda que priorizou a eleição tem, geralmente, esquecido de abastecer-se de conteúdo, princípios e utopias que continuam jorrando desse manancial.

Muitos optaram por lutar apenas no contexto de batalha político-eleitoral e do exercício do poder institucional, e isso levou, muitas vezes, em nome da sustentação dessa opção, a alianças com inimigos, aceitação de recursos impróprios e permissões exageradas para que as regras viciadas do jogo político, que conduzem à corrupção, fossem usadas sob o pretexto da justificação dos meios pelos fins [3]. Além disso, alguns mandatos de esquerda se tornaram “autopoiéticos”. A autopoiese é um conceito criado pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela para se referir ao funcionamento da célula, que eles definem como uma máquina autopoiética. Enquanto todas as máquinas produzem algo diferente de si mesmas, a célula tem todo o seu funcionamento voltado exclusivamente à produção de si mesma (autopoiese é, etimologicamente, “fazer a si mesmo”). Quando um mandato procura apenas se perpetuar nas próximas eleições, ser um campo de fortalecimento de tendências internas do partido e retribuir apoios com distribuição de cargos e assessorias para manter-se no poder, eles se tornam autopoiéticos. Tudo que fazem visa a sua própria manutenção, e não há mais projeto estratégico no qual se referenciar. Por mais pontos positivos que possam acumular para colocar naquele jornal de prestação de contas distribuído na pré-campanha de reeleição, é pouco para mandatos que tenham a emancipação como projeto de transformação radical da sociedade. Para a célula, a autopoiese é o que garante a vida. Para um partido de esquerda, é o que produz a morte.

Já foi demonstrado pela história recente do Ocidente que a disputa eleitoral na limitada democracia capitalista favorece a quem tem dinheiro e o controle da mídia. Consequentemente, o poder dos parlamentos, que deliberam por maioria, é sempre dos que possuem o poder econômico. Parlamentares de esquerda fazem a diferença, pelas denúncias, projetos apresentados, interlocução com a sociedade civil etc., mas, por serem minoria, não conseguem ter, de fato, poder de definir a ação legislativa. Sem desconhecer os avanços possíveis e realizados, a qualidade excelente da maioria dos parlamentares de esquerda e a necessidade de ampliar a representação das classes populares nesse poder, não podemos esconder o fato de que sempre perdemos nas batalhas maiores nesse campo. Resulta daí que o contexto de batalha das eleições e gestão das parcelas de poder conquistadas, sem a contrapartida da luta em outros contextos, é sempre favorável ao sistema. É uma batalha no campo em que o inimigo tem vantagem e, quando travada sem um suporte em outro plano, nos faz acumular derrotas. [4] Não podemos continuar reduzindo nossa estratégia de luta ao contexto de batalha que favorece o adversário. Isso, porém, não significa deixar de dar importância ao processo eleitoral ou à gestão de parcelas do poder em benefício da população mais vulnerável. Significa apenas que o foco das ações deve deslocar-se desse campo para outro contexto de luta e que devemos usar a conquista de parcelas do poder de forma tática para fortalecer a ação estratégica.

É nesse sentido que devemos planejar estrategicamente os mandatos parlamentares. De que forma a ocupação das câmaras legislativas, nos três níveis de organização federativa, pode ter um papel para a transformação do contexto sociopolítico e econômico em que vivemos? Como os mandatos podem se conectar aos diversos campos temáticos das lutas (sindical, popular, agrária, ecológica, de mulheres, negros, juventude, economia solidária, população de rua, grupos LGBTQIAP+, etc.), para ser a expressão das demandas e conquistas desses grupos no parlamento? Caso não pensemos isso, os mandatos de esquerda se diferenciarão dos tradicionais apenas pelo conteúdo dos discursos, votos contrários ou, eventualmente, pela aprovação de alguns projetos de interesse popular – o que não é pouco, reconhecemos, mas não pode ser suficiente.

Embora o foco da nossa estratégia não deva estar na conquista e gestão de parcelas do poder institucional, sua ocupação não deixa de ter uma grande importância na concretização dos objetivos estratégicos. Porém, essa ação deve ser compreendida como tática, ou seja, como instrumento, meio para se chegar aos objetivos estratégicos, que devem estar relacionados a uma utopia emancipatória radical, que se torna concreta na ação dos movimentos sociais. Como tal, os mandatos parlamentares e as administrações progressistas que compartilham os objetivos gerais do processo emancipatório podem e devem se colocar a serviço dos movimentos sociais. Podem e devem, inclusive, contribuir com a reconquista da subjetividade social em uma perspectiva emancipatória e crítica.

As possibilidades são muitas, algumas já executadas ou em execução. Há mandatos parlamentares que aglutinam movimentos, associações, grupos de economia solidária, de produtores agroecológicos, de ambientalistas, ativistas de direitos humanos etc. e oferecem-lhes oportunidades para o fortalecimento de suas lutas – por meio da apresentação de leis, apoio institucional para seus eventos, sendo canais de interlocução com o Executivo etc. – e para a formação da consciência de seus integrantes.

Por isso, repensar a ocupação do poder institucional é elemento fundamental para a consecução do objetivo estratégico de retomar e avançar sobre o território subjetivo. O PT e a esquerda devem começar a pensar a conquista e o exercício de mandatos de forma a reforçar as lutas populares, sendo uma ponte entre o povo organizado e o poder estatal e espaços de fortalecimento da formação e organização de bases. Os mandatos parlamentares em nível estadual são espaços privilegiados para a concretização dessas ações, por estarem mais próximos das organizações locais.

Precisamos ousar e retomar a fonte de energia que um dia fez do PT um partido diferente. Caso contrário, faltará pouco para nos tornamos um partido como outros, apenas com um discurso diferente.


1 Essas ações estão apresentadas no Documento de Santa Fé II. Uma versão em português do documento pode ser encontrada aqui, e uma em espanhol pode ser lida aqui.

2 A CMP não chegou a conquistar uma força maior justamente por ter nascido e dado os passos iniciais no mesmo período do processo que comentarei aqui.

3 Basta ver quantas ações dos governos de esquerda, rejeitadas historicamente por movimentos sociais, foram justificadas sob argumento da “governabilidade” e quantas alianças inimagináveis tiveram que ser feitas e quantas práticas eleitorais ilícitas foram praticadas em nome das “regras do jogo eleitoral” e da necessidade de se ganhar as eleições.

4 Há diversas experiências locais bem-sucedidas (principalmente em municípios menores do Brasil) em que a tomada do Poder Executivo é resultado da mobilização de movimentos sociais e união de práticas alternativas de produção. Há também mandatos parlamentares que conseguiram aglutinar um campo de poder alternativo e desenvolver um trabalho de fortalecimento das organizações da sociedade civil. Porém, essa não tem sido a regra e nem é a realidade dos grandes centros da maioria dos Estados e da Federação.

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