A crise do PT vista por dentro

Só uma grande reviravolta – como a que Jeremy Corbyn liderou na Inglaterra – tornaria o partido novamente relevante. Mas haverá caminhos, em meio a vasta burocratização? Dez teses incômodas

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Por Eduardo Mancuso

1. Entre 1988 e 2016, após superar a ditadura militar, o Brasil experimenta o seu mais longo período de democracia com estabilidade política, promulga a chamada Constituição Cidadã, realiza sete eleições para a Presidência da República, conquista avanços civilizatórios com a universalização de direitos e de políticas sociais. O golpe do impeachment (sem crime de responsabilidade) contra a presidenta Dilma, cassa 54 milhões de votos e encerra o ciclo de governos do PT, conquistado em quatro vitórias eleitorais consecutivas, e joga o país em uma longa crise político-institucional. O golpe parlamentar capitaneado por PSDB/MDB, com aval do STF e cobertura da mídia, rompe o pacto democrático, manipulando hipocritamente a bandeira da corrupção contra o Partido dos Trabalhadores e derruba a experiência de governo liderada por Lula – um projeto nacional de desenvolvimento com soberania e inclusão social.

2. O interregno do governo ilegítimo e desmoralizado de Temer, seguido da eleição de Bolsonaro, o demagogo ultradireitista admirador de Trump que é motivo de espanto mundial, arrasta o Brasil para a regressiva dinâmica neocolonial da internacionalização subordinada aos EUA e para a distopia de uma sociedade neoliberal. O período é de ataque aos direitos das classes trabalhadoras, derrotas políticas e ideológicas da esquerda e reação conservadora. A própria continuidade do PT, partido reformista adaptado às regras do jogo democrático e à dinâmica eleitoral, não está garantida, tendo em vista a intenção golpista de cassar o registro da sigla. A polarização política criada pelas elites dirigentes substitui a lógica da conciliação e o respeito ao pacto democrático da Nova República, o jogo da política muda (para pior), e a esquerda está obrigada a repensar estratégias e táticas, métodos de organização e alianças, além de precisar atualizar rapidamente suas análises da realidade brasileira e mundial.

3. O golpe do impeachment, os ataques aos direitos sociais e trabalhistas, a farsa jurídica da condenação sem provas e da absurda prisão de Lula, derrotam a democracia brasileira, causam indignação nacional e perplexidade internacional. Inauguram um período politicamente traumático e abrem uma crise que será longa. O fracasso político do golpe, que não consegue destruir o PT, nem estabilizar a crise institucional e viabilizar uma alternativa para a eleição (os golpistas foram devorados pelo processo que deflagraram), foi acompanhado pelo fracasso da economia, que após anos de sabotagem empresarial e congressual (“greve de investimentos”, pautas-bomba), não volta a crescer, como profetizavam os defensores do mercado, com desemprego alto, renda dos trabalhadores em queda e agravamento da crise fiscal. A eleição sem Lula, que venceria no primeiro turno (segundo as pesquisas) e seria capaz de exorcizar o fenômeno Bolsonaro, sepulta a legitimidade do sistema político. O retorno do protagonismo dos militares, a massiva votação obtida por uma figura grotesca como a do capitão-mor (a resposta assustadora de uma sociedade assustada), que consegue capturar o eleitorado centrista e conservador (e no segundo turno, inclusive do lulismo), e os ataques reacionários aos marcos civilizatórios, são consequência da crise que está destruindo o país, marcada pela perseguição implacável de Lula e do PT.

4. Com a adesão da grande mídia e do mercado, igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, forças armadas e policiais, classes médias e elites capitalistas, a campanha digital de Bolsonaro (massiva, ilegal e clandestina), mas extremamente eficaz, também foi beneficiada pela cobertura massiva de TV após o atentado a faca. Para a burguesia brasileira era inaceitável Lula e o PT conquistarem a quinta vitória eleitoral consecutiva. Preferiram rifar a velha direita e desmoralizar o país internacionalmente, aderindo à aventura da nova direita bolsonarista, do que repactuar o regime democrático com as forças progressistas. Não foi a primeira vez que as elites brasileiras seguiram pelo caminho do golpe e do autoritarismo. Na eleição crítica e disruptiva de 2018, que explodiu o sistema político da Nova República, a vitória de um demagogo extremista só foi possível a partir da completa desmoralização da política tradicional e da cassação da candidatura de Lula. Bolsonaro foi capaz de derrotar o PT porque, além do amplo apoio social e econômico que recebeu, conseguiu esconder seu programa antipopular da sociedade e era o único candidato que representava a antipolítica (sua candidatura conseguiu canalizar parte da repulsa ao corrupto sistema político-partidário) e o antipetismo. Tragicamente, para a democracia e para a esquerda, é preciso reconhecer que a campanha de Bolsonaro apareceu no imaginário popular como a mudança.

5. A força popular de Lula e a estratégia petista levaram Haddad ao segundo turno com 30% dos votos; a adesão do eleitorado democrático e antifascista, mobilizou 47 milhões de votos no embate de 28 de outubro. Foi uma grande demonstração de resiliência do PT conseguir sobreviver ao duplo impacto do antipetismo e da antipolítica, conquistando quatro governos no Nordeste e a maior bancada eleita na Câmara de Deputados, além de posição destacada nas Assembleias estaduais. Diante da falência do centro democrático, coube às forças de esquerda sustentarem a candidatura Haddad no segundo turno, última barreira democrática à regressão civilizatória. No ato épico de São Bernardo, antes da prisão, Lula lançou as bases de uma frente de esquerda. O bloqueio jurídico do TSE e do STF à sua candidatura (afrontando a ONU), levou a chapa Haddad-Manuela a representar o campo democrático e popular contra a aliança do capital e da extrema-direita. O paradoxal sistema político brasileiro voou pelos ares: combinava concentração de poder com fragmentação partidária, em que poucas forças políticas detinham a maioria dos governos estaduais, do Congresso, das Assembleias Legislativas, das prefeituras e das Câmaras Municipais. Mesmo as sucessivas reformas eleitorais aprovadas pelo Congresso não impediram o tsunami que atingiu o sistema político (represado desde as jornadas de 2013), levando à reconfiguração partidária do centro e da direita, com a redução do MDB e do PSDB à condição de partidos médios, crescimento vertiginoso do PSL e fortalecimento das bancadas da bala, do boi e da Bíblia. Para a esquerda e o progressismo, a eleição de 2018 abre uma conjuntura difícil. No início da nova legislatura, a maioria conservadora deve alterar o regimento interno com o objetivo de reduzir os direitos da minoria parlamentar oposicionista no Congresso. PT, PCdoB, PSOL, PDT e PSB elegeram 393 mandatos de governadores, senadores, deputados federais e estaduais (em 2010, no auge do ciclo de governo lulista, haviam conquistado 527). Portanto, devem reforçar a unidade do campo progressista para enfrentar o governo autoritário e a maioria conservadora no Congresso, sem exclusões e sem subordinar a frente democrática à lógica de candidaturas presidenciais personalistas.

6. Após um longo período de defensiva política e derrotas, o PT precisa realizar um balanço autocrítico e definir, junto com as forças de esquerda, a estratégia de oposição ao governo reacionário e sua agenda entreguista e ultraliberal. Porém, partindo da compreensão de que não será possível retomar a luta pela hegemonia como nos moldes anteriores, em razão da correlação de forças negativa na sociedade, e porque os poderes de Estado e do capital interditaram o PT como alternativa de governo. Com a ultradireita na presidência e maioria conservadora no Congresso, defender os direitos civis e trabalhistas e a democracia será o horizonte institucional da esquerda e dos setores progressistas. Portanto, articular a frente ampla de oposição na sociedade e nos parlamentos será fundamental. Para o PT e a esquerda socialista, será vital buscar a unificação política – a unidade como estratégia de resistência e base para o relançamento do novo ciclo – reformulando ideias e táticas políticas, participando da reorganização do mundo do trabalho e das lutas do povo junto com os movimentos sociais. Será necessário rever a estratégia política de conciliação, estabelecendo uma pauta clara que rompa com o domínio das forças reacionárias sobre as instituições, visando aumentar a presença e a participação popular nas decisões políticas.

7. A tremenda derrota política da democracia e do PT, acumulada desde o golpe de 2016 até às eleições de 2018, reconfigura a realidade da luta de classes no país e delimita o arco de possibilidades para relançar um novo ciclo da esquerda. O período impõe uma dinâmica frentista, a reinvenção das formas de luta e de organização dos sindicatos e dos movimentos sociais, e uma reformulação estratégica do PT como partido de esquerda e de massas. Sobre a renovação do partido, algumas questões centrais precisam ser enfrentadas: a) o lulismo e o petismo são muito maiores que o PT, portanto, não cabem na lógica burocrática da atual estrutura partidária; b) o antipetismo, tendo como base a histérica criminalização do partido, tomou uma dimensão social e simbólica que precisa ser compreendida e enfrentada; c) sem a reorganização política do PT, será inviável a reconstrução de uma alternativa popular de esquerda capaz de organizar e hegemonizar a (nova) classe trabalhadora brasileira; d) o período aberto pela Constituinte de 1988 e pela redemocratização do país, que permitiu a vitória petista e o ciclo de governo do lulismo, está encerrado (o maior líder popular e mais prestigiado presidente da história, é um preso político); e) durante 13 anos na presidência da República, o PT pareceu ignorar o papel de classe do Estado, atuando como se fosse um instrumento neutro e a distinção básica entre governo e poder (erros que custaram muito caro).

8. O PT e as forças populares sofreram uma derrota de grandes proporções, mas continuam representando a luta pela igualdade, a justiça social, a democracia e o lado certo da história. Precisam perceber a emergência do novo (ele sempre vem, mas nem sempre é bom), reorganizar sua implantação social e as estratégias adequadas à mudança brutal da situação política. É verdade que a reorganização estratégica do PT enfrenta algum ceticismo sobre a efetiva possibilidade de desburocratizar e renovar o partido (e superar o estigma da corrupção). A respeito desse tema, recentemente, na reunião do Diretório Nacional, o chamado campo majoritário deu mais uma demonstração que vem reforçar esse ceticismo, atropelando o método democrático e pluralista de construção coletiva das resoluções partidárias, apenas um mês após a derrota mais difícil de nossa história. Por outro lado, até o centenário Partido Trabalhista britânico, após décadas de adaptação ao neoliberalismo e a aventuras imperialistas, foi resgatado para a esquerda com o ingresso em massa da militância do movimento Momentum e pela liderança de Jeremy Corbyn. Esse exemplo mostra que máquinas burocráticas podem ser transformadas por movimentos políticos vigorosos, atuando a partir de fora e de dentro da estrutura partidária institucionalizada.

9. A resistência social e a oposição política ao projeto regressivo e autoritário que saiu das urnas será ampla, diversificada e pluriclassista: moderada, por parte da mídia e do acuado centro democrático; institucional, por parte do progressismo; radical, nas ruas e nas trincheiras da sociedade civil organizada, impulsionada por uma militância social jovem e feminista, em grande parte sem referência partidária, e os movimentos populares. Cabe à esquerda socialista, principalmente ao PT, ao PCdoB, ao PSOL, impulsionar a estratégia frentista de oposição democrática à destruição do país em curso desde o golpe. O novo contexto da luta de classes demanda da esquerda brasileira a formação de uma Frente Ampla que não se reduza ao somatório das burocracias dos partidos e dos movimentos sociais tradicionais. O desafio é construir a Frente sem prejudicar a autonomia e a organização partidária da esquerda, mas também sem comprometer a dinâmica política frentista com as limitações específicas e estruturais dos partidos. É preciso deflagrar o processo constituinte da Frente Ampla, elegendo de forma legítima e democrática a modelagem mais inovadora possível e o seu centro político de direção, com lideranças partidárias e não-partidárias, reconhecidas pela militância dos partidos e dos movimentos sociais. Essa seria a forma de constituir a Frente sem desarticular os partidos existentes, mas sem atrelar a sua construção às burocracias partidárias, que seguem (como sabemos) ancoradas na institucionalidade e na lógica eleitoral. Precisamos de uma Frente com instâncias de base abertas à participação da militância política e social das mais diversas matizes políticas e ideológicas de esquerda, com um funcionamento horizontal, em rede e que tenham poder efetivo na definição das posições políticas frentistas. Somente as esquerdas podem salvar a democracia.

10. O PT precisa mudar muito para ser capaz de seguir sendo a referência política de amplos setores das classes trabalhadoras a partir da derrota eleitoral de 2018, e sem contar com a liderança efetiva de Lula no dia a dia das lutas, mas também para dar início a um novo ciclo da esquerda socialista. Desde o golpe de 2016, por exemplo, a maioria do PSOL reorientou a sua linha política, se somando à luta democrática e superando (em grande medida) o seu sectarismo antipetista. A campanha de Boulos, com um posicionamento firme à esquerda e sempre solidário à Lula, foi uma demonstração de abertura dessa força partidária socialista para construir outro patamar de relação política no campo da esquerda. O PCdoB, que através da fusão com o nacionalismo de esquerda do PPL, parece ter superado a barreira eleitoral da cláusula de desempenho, mais uma vez esteve junto com Lula e com o PT na disputa nacional, indicando a companheira Manuela para compor a chapa majoritária com Haddad, uma mulher jovem e combativa que desponta como liderança nacional, com raro talento político e capacidade de comunicação, capaz de representar e defender as bandeiras feministas e da juventude com criatividade (elemento essencial numa cultura política de esquerda). Para o Partido dos Trabalhadores, entre a hegemonia perdida e a ameaça de extinção, será preciso enfrentar a travessia do deserto da resistência com a necessidade vital de repensar a própria práxis política. O Diretório Nacional deve convocar imediatamente o Sétimo Congresso do PT, que apresenta a dramaticidade dos grandes desafios: realizar um balanço profundo e autocrítico da trajetória do partido (na oposição e no governo), que sintetize as diversas visões existentes internamente; democratizar de maneira real e concreta a vida partidária, tornando-a adequada a um partido de massas, militante e popular, que seja capaz de acolher e integrar, de fato e de direito, a militância petista ampla, e orientar a ação política coletiva; reorganizar a estratégia de luta pela hegemonia na sociedade e para a conquista das maiorias nacionais, tarefa incontornável para uma esquerda democrática, humanista e transformadora, comprometida com a construção de um projeto de futuro para o país, conectado com o internacionalismo dos povos, a justiça global e a sustentabilidade ambiental.

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2 comentários para "A crise do PT vista por dentro"

  1. Laury Bueno disse:

    Falou bem

  2. Fernando Cordeiro disse:

    Há um ponto que a “esquerda universitária” sempre evita em suas proposições: a tomada violenta do poder, utilizando-se as ferramentas necessárias para tal, como o fez, e bem feito, a direita bolsonarista para recuperar o espaço político que o PT havia ocupado.
    Um segundo ponto, igualmente importante, é expurgar do PT as velhas lideranças que ao se beneficiarem da nova situação e dos degraus que alcançaram enquanto o PT esteve no governo e abandonaram os integrantes de vanguarda, aqueles que disputavam o espaço político na lei ou na marra, como sindicalistas e líderes comunitários mais audaciosos, que foram preteridos e desalojados dos seus respectivos espaços em nome da “governabilidade”.
    E, resumidamente, seguir velhas lições da guerra, como aquela ensinada por Jesus aos seus discípulos enciumados por haver um homem, num local distante, que pregava em nome de Jesus de Nazaré, pedindo ao Mestre que proibisse aquele homem de pregar. Jesus respondeu-lhes que aquele que com ele ajuntava não separava.
    Isso não factível para a “esquerda universitária”, pois a retiraria de seus apartamentos, onde refugiam-se após os acalorados debates sob a temperatura amena do ar-condicionado, para ter que retomar o patamar da construção, sobre novos e profundos alicerces, de um Partido Político que abrigasse o novo proletariado urbano, composto por varias tribos distintas e com interesses antagônicos estimulados pela capacidade de dividir da Respeitável Burguesia.
    Será preciso voz de comando, e isso não é possível àqueles que acham possível um acordo de classes.

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