Entre ver estrelas e apagar pessoas

Como podemos construir o telescópio Webb, para investigar a origem do universo, e não ver as multidões miseráveis que se alastram pelas cidades? Capaz de maravilhas, a razão técnica deve submeter-se à substantiva, permeada pelos valores

.

Por Marcelo Karloni

O Telescópio Espacial James Webb, lançado em 25 de dezembro de 2021, foi desenvolvido pela Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (NASA), a Agência Espacial Europeia (ESA) e a Agência Espacial Canadense (CSA). As imagens divulgadas no último dia 12 de julho darão informações sobre a alvorada do universo.

Dentre seus objetivos está a captação da luz emitida pelas primeiras estrelas e galáxias formadas. É uma busca para tirar da invisibilidade objetos que estão no passado do universo. Uma máquina do tempo não seria uma definição forçada aplicada ao instrumento de observação. A invisibilidade é de fato um problema para a humanidade.

A realidade de centenas de famílias nos vários acampamentos de sem tetos no Brasil conta também como perfeita ilustração da discussão. Nesses acampamentos encontram-se pessoas e famílias que, sem ter onde morar, tornam-se invisíveis ao olhar comum e passam a integrar movimentos sociais que ocupam o lugar deixado pelo poder público em sua tarefa constitucional de atender a função social da terra.

São pessoas que lidam com problemas de saúde individual e coletiva sem cobertura de agentes de saúde e que são atendidas por vezes apenas a quilômetros de distância do lugar que ocupam, com sensação de esquecimento, estigmatizadas como violentas e sem a titularidade de suas casas em processos que se arrastam por anos nos tribunais. E é assim que chegando nos tribunais as demandas dessas comunidades caminham para a invisibilidade e negação do direito à cidade em países como Brasil.

Existe uma lógica subjacente nas estratégias empreendidas pelos que se beneficiam da barbárie e da não aplicação dos instrumentos urbanísticos, que invisibilizam essas pessoas. Por isso a identificação dos elementos dessa construção é uma tarefa dos setores progressistas. Tarefa essa que tem em uma discussão bastante específica as possibilidades reais à identificação desses padrões de implementação da barbárie, que é a relação entre a produção do espaço e a política.

Basta recordar que parte de nossos principais instrumentos de planejamento urbano são frutos de lutas sociais. Isolar a dimensão da política da intervenção no espaço e nas cidades seria o mesmo que destinar ao Estatuto da Cidade um lugar de retórica e não de prática. Isso porque discutir um projeto de cidade é discutir também um projeto de sociedade. Um projeto de país. Assim, a política urbana é de fato a política no sentido mais feliz do termo.

Aqueles que se propõem a pensar a produção do espaço urbano em nossas universidades – pesquisadores e alunos – e no ambiente do poder público precisam entender que, para além de uma racionalidade instrumental, existe uma que se sobrepõe: a racionalidade substantiva. Essa sim criadora de civilidade, de equilíbrio na relação com a natureza e, sobretudo, de democracia.

É assim que o projeto que deveria estar se realizando em nosso país talvez encontrasse melhor acolhida: bastaria, em lugar de privilegiar o ensino da técnica e dos marcos regulatórios e aplicação de instrumentos urbanísticos, esses se vissem subordinados ao ensino de valores substantivos, tais como a democracia.

Assim, não seria equivocada a percepção de que uma das razões que teria “jogado” o país nessa espiral de barbárie que estamos vendo desde 2013 seja a demolição paulatina e contínua da noção de que a política, a boa política, é a única saída.

O país parte de uma época de repressão entre 1964 e 1985. Passamos pelo sonho de uma Constituição cidadã em 1988. Tivemos experiências de agenda de ordem (neo)liberal e, segundo alguns, neodesenvolvimentista, entre 1990 e 2013 e, agora, estamos tendo que lidar com a tarefa de discutir um projeto de país sem cair na discussão de que cor será a bandeira.

É preciso apontar ainda que a agenda do capital nunca será civilizatória, como já dizia Chico de Oliveira. Ela é uma agenda que, se preciso for, constrói consensos sem abrir mão de seus interesses de reprodução e os desfaz facilmente caso esses se vejam ameaçados. O capital pode sim ser conciliador se lhe convier.

Um dos seus principais movimentos no campo das ideias é exatamente a vilanização da política e a destinação das técnicas ao pedestal da moralidade e da virtude. Tecnocracia sedutora que pode levar mesmo a academia a implementar políticas de ensino e de currículo que põem as ciências humanas em lugar de menor importância no espectro do senso comum. Agindo assim, habilmente as personas do capital constroem espaços de discussão e diálogo cada vez mais estreitos, posto que desses surgem as contestações e alargam a noção da supremacia da técnica.

Isso aconteceu entre nós. Por isso é tão comum por vezes encontrar defensores da técnica que apregoam sua neutralidade como virtude salvadora. Afirmam: “A política. O viés político, isso é um mal. Não temos viés”. De fato, quando assim se pronunciam, assumem por definição e prática uma ideologia. Que o digam Althusser, Paulo Freire e Gramsci.

Desse modo, basta dizer que a lógica que se vende como neutra, imparcial e “meritocrática” é um dos principais pavimentos do fascismo que se vende também como neutro, patriota e sem partido, quando em realidade é extremado e assassino de seu próprio povo, quando convém.

Teria sido esse primeiro passo dado para a criação dessa ambiência sufocante que está entre nós. Qual seja, a vulgarização das ciências humanas como domínio comum e o conferir status de infalibilidade e virtude ao saber técnico.

Nada mais sintomático de um tempo em que se celebram as imagens de galáxias a bilhões de anos a luz feitas pelo Telescópio Espacial James Webb, antes invisíveis, mas se insiste em manter centenas de famílias no espectro da invisibilidade.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *