Inteligência Artificial, novo pesadelo?

Sinais distópicos: além de eliminar trabalho humano em massa, máquinas e programas podem, em breve, tornar infernal o controle sobre os assalariados

Por Antonio Martins | Vídeo: Gabriela Leite

Em “Vida de Galileu”, provavelmente sua peça mais notável, Bertolt Brecht imagina a fala final do grande cientista do Renascimento a seus pares. A obra foi escrita durante o tormento da II Guerra Mundial, em meio os exílios do autor – por isso, o Galileu de Brecht já não compartilha o entusiasmo automático pela Ciência presente em outras obras da tradição iluminista e mesmo marxista. Diz ele, em tom de advertência quase desesperada: “O precipício entre vocês e a humanidade pode crescer tanto que ao grito alegre de vocês, grito de quem descobriu alguma coisa nova, responda um grito universal de horror”. Há duas semanas, a revista britânica Economist publicou um longo estudo sobre os novos avanços a Inteligência Artificial – especialmente seu uso nos locais de trabalho. Diante da leitura, é impossível não sentir de novo o calafrio que assombrou o dramaturgo alemão.

Desenvolver Inteligência Artificial, explica Economist, significa dotar computadores e softwares de capacidade para processar imensos volumes de dados e – principalmente – para encontrar padrões e fazer previsões sem ter sido programados para tanto. Alguns usos podem parecer neutros, ou até benéficos. A Amazon e a Leroy Merlin (rede francesa que vende, no varejo, materiais de construção e de uso doméstico) desenvolveram sistemas que recompõem estoques com enorme precisão e economia. Podem fazê-lo porque seus computadores levam em conta, além da simples reposição do que foi comprado pelos clientes, dados como as previsões de tempo e a ocorrência de feriados (que podem alterar a frequência às lojas). Os algoritmos permitem prever a demanda por milhões de produtos, com até 18 meses de antecedência. Abstraia, por um momento, o interesse nas empresas. Pense nos enormes desperdícios – sociais, ambientais, econômicos – que poderiam ser evitados se fosse possível saber antecipadamente, por exemplo, quantos milhões de toneladas de papel, de tomates ou de alumínio será preciso produzir, num determinado período, para satisfazer às necessidades humanas.

Mas, em sociedades regidas pelo lucro, dinheiro atrai dinheiro – e a tecnologia acaba alocada para os setores em que contribuiu para concentrar riquezas. O Caesar’s, um conglomerado norte-americano de hotéis e cassinos (presente também no Brasil) usa Inteligência Artificial, por exemplo, para identificar os prováveis objetos de consumo de cada cliente e induzir à compra. Os usos mais devastadores, porém, estão no mundo do trabalho.

A Inteligência Artificial permitirá eliminar uma imensa quantidade de empregos. A substituição, nos callcenters, de humanos por sistemas crescerá cinco vezes, até 2021, em todo o mundo. O Metro, um grupo varejista alemão, planeja trocar os caixas de suas lojas por scanners que leem o código de barras dos produtos já no carrinho de compras e fazem a cobrança. A Bloomberg, uma agência global de notícias econômico-empresariais, já desenvolveu programas que, sem necessitar de qualquer auxílio humano, examinam relatórios financeiros de empresas e redigem notícias sobre eles. Convenhamos: são documentos que não requerem análises refinadas. Mas – pergunte a si mesmo – os redatores liberados de tais tarefas maçantes serão redicrecionados para outras mais nobres? Poderão, por exemplo investigar o resultado social da atuação de tais empresas? Ou terminarão ou simplesmente descartados?

Além de desempregar em massa, a Inteligência Artificial poderá estabelecer níveis inéditos de controle sobre quem mantém a ocupação. A relação de novos instrumentos é aterradora. A Amazon acaba de patentear uma pulseira que transmitirá, do pulso dos trabalhadores, informações detalhadas sobre cada passo deles nas instalações da empresa. O mesmo bracelete emitirá automaticamente pequenas vibrações, quando houver sinais de que o desempenho do funcionário não atende a todos os requisitos de produtividade.

É um entre muitos exemplos. O Workday, outro software, cruza constantemente 60 tipos de informação para prever comportamento dos empregados. O Humanyze (sim, os nomes são orwellianos) detecta cada contato dos funcionários com seus colegas e se conecta com suas agendas e e-mails. O Slack, um aplicativo de mensagens, avalia a rapidez dos trabalhadores para cumprir certas tarefas e permite identificar quem esteja divagando, ou em suposta má conduta. Slack, aliás, é acrônimo para “searchable log of all conversation and knowledge” (algo como “registro disponível de toda a conversação e conhecimento”). O Cogito escuta os diálogos telefônicos entre trabalhadores e clientes e estabelece “rankings de empatia”. O Veriato, acoplado a computadores, mede as pausas no trabalho e mesmo a velocidade dos toques no teclado…

A conjuntura favorece as empresas. Num cenário de desemprego muito elevado, lembra o estudo do Economist, os assalariados estão sendo induzidos a assinar contratos de trabalho que autorizam a invasão de sua privacidade. Este retrocesso é viabilizado por dispositivos como a “prevalência do negociado sobre a lei”, presente na contrarreforma trabalhista brasileira.

A Inteligência Artificial é necessariamente desumanizadora? Para autores como o economista norte-americano Jeremy Rifkin, a resposta é, evidentemente, não. Em Sociedade com Custo Marginal Zero: A Internet das Coisas, os Bens Comuns Colaborativos e o Eclipse do Capitalismo, Rifkin imagina um cenário completamente distinto do descrito por Economist – que hoje parece prevalecer. Ele vê, na convergência de três revoluções tecnológicas (da conectividade, das novas energias e dos transporttes), a chance de uma brutal economia de recursos. Ela estaria associada, porém, não à concentração de riquezas, mas à garantia do acesso de todos aos bens necessários para uma vida digna, com mínimo consumo dos bens naturais. Uma brevíssima síntese do pensamento do autor (que hoje presta consultoria ao governo chinês) pode ser vista neste vídeo.

Há anos, Immanuel Wallerstei não se cansa de alertar: a crise do capitalismo é profunda e provavelmente terminal. Mas isso não é, necessariamente, uma boa notícia. No lugar do sistema hoje hegemônico podem surgir tanto uma sociedade muito mais democrática e igualitária quanto outra, que aprofunde como nunca as marcas de exploração, hierarquia alienação que já vivemos. Os dilemas, esperanças e ameaças da Inteligência Artificial – algo que vale estudar em profundidade – parecem lhe dar toda razão.

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9 comentários para "Inteligência Artificial, novo pesadelo?"

  1. Manuel Lopes disse:

    Como em todas as coisas, normalmente elas não são um bem nem um mal em si mesmas, depende do uso que lhes damos.
    Foi assim com a descoberta da energia atómica, ou nuclear para ser mais preciso.
    Há 73 anos, em 1945, foi usada para matar instantaneamente milhares e milhares de pessoas em Hiroshima e Nagasaki e em diferido muitos mais nos anos subsequentes. Na década seguinte, apesar da experiência aterrorizante antes vivenciada, quase voltaria a ser usada durante a Guerra da Coreia
    Hoje, por esse mundo fora, a medicina nuclear salva muitos mais mihares através da oncologia hospitalar.
    É o uso que lhe damos que tanto pode transformar o conhecimento em instrumento de opressão, escravização e morte como de liberdade, libertação e vida!
    Está nas nossas mãos impedir que também as nossas vidas acabem privatizadas
    Basta que tomemos nas nossas mãos o futuro das nossas vidas
    Depende de ti, de mim, de nós!..
    mtl

  2. Interessante mas unilateral. Esquece que a solução ao desemprego tecnológico, como historicamente tem sido sob o regime do capital, é a redução da jornada de trabalho. Povos ditos “primitivos” trabalham bem menos para se manterem; no século XX reduzimos a jornada para 8 horas, quando antes se trabalhava 12 a 14 horas durante 7 dias por semana; no século XXI a jornada de trabalho, apesar da lei, está aumentando, inclusive graças às tecnologias de informação e trabalho a distância…
    Portanto, ou usamos nossa inteligência social para lutar pela redução da jornada de trabalho (hoje sendo possível assegurar a reprodução social com uma jornada de 4 horas eliminado subempregos e desemprego, conforme propõe André Gorz em Metamorfoses do Trabalho), e poderemos, então, com o tempo livre desenvolver nossa inteligência a sensibilidade humanas, ou o capital usa a inteligência artificial para nos engulir.
    Mais uma vez nos encontramos diante do dilema entre civilização e barbárie!

  3. Heleno Cruz disse:

    Muito interessante a matemat, porep não muito inteligente, a menos que , por motivo de segurança alguns aspectos foram negligenciados.
    Uma coisa que foi me chamando a atenção na medida em que ia avançando na leitura e o fato de intencionalmente o redator ignorar o efeito devastador do desemprego e como deram assistidos os imensos contingentes de desempregados. Serão deixados para trás? Quais serão as consequências disso? Epidemias, revoltas, mortalidade em massa? E quem vai mediar essa situação? De mais a mais,quem vai comprar em massa para sustentar tudo isso? É certo que máquinas não são assalariadas, mas têm prazo de validade e terão que ser substituídas temporariamente por preços provavelmente estratosféricos além de necessitar de manutenção constante.
    O custo benefício nos dias que chegarem essas tecnologias, terá que ser muito maior em favor dos conglomerados em detrimento das pessoas. Esse iato não preenchido entre uma casta de super Humanos que se extrategicamente no controle cibernético e a Humanidade provavelmente levará o Planeta a consequências imprevisíveis, até, porque não, ao descsrte em massa do excesso populacional.

  4. Carlos disse:

    Creio que isto vai funcionar se o sistema de computadores e maquinas inteligentes consumir produtos que o ser humano consome.
    Sem em emprego não há consumo, sem consumo, que para quem será vendidos os produtos gerado pela inteligência artificial.
    Acho que vão vender óleo lubrificante em caixinha de leite para robos.

  5. LUAN MOROSINI disse:

    É muito interessante imaginar as consequências que novas tecnologias trarão para a organização socioeconômica da população. É incerto o que uma expansão maciça da tecnologia robótica trará de bom ou de ruim, sobretudo pensando naquele pequeno grupo de seres humanos que serão os donos de tais recursos e possibilidades. Vou ler o livro do Rifkin.

  6. Edson disse:

    Então todo mundo desempregado, sem dinheiro quem vai consumir o que a máquina é a inteligente artificial produzir, o Gasparzinho?

  7. Edna Guidini disse:

    Triste futuro da humanidade está as portas. Vale lembrar que só depende de nós não deixar chegar ao ponto de se deixar dominar por inteligências artificiais. Essas grandes empresas e conglomerados não existiriam sem nós trabalhadores. E a união faz a força, se deixarmos de consumir produtos destas empresas, não aceitar trabalhar nestes tipos de ambientes controladores até da vida privada logo elas deixam de existir. Mesmo com toda a tecnologia, nenhuma empresa sobrevive sem o trabalho humano. Ee

  8. Almi disse:

    Ótimo artigo parabéns … coincide com um livro que acabei de ler do Ricardo Antunes Adeus ao trabalho?

  9. Vcs acham q os atuais 13% da população BR desempregados é mto? Esperem até 2030,.. e façam bastante filhos, vai ter emprego pra eles sim,. (Fui irônico,.. não façam).. uma dica pra vc que está lendo isso, estude uma linguagem de programação independente da sua área/ função (python),.. qria escrever mais, mas deu preguiça (celular)… Abs .

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