Vigiar, punir e exibir!

Novos casos de linchamento relembram: transformar violência em espetáculo é uma forma de mascarar a brutalidade oculta que permeia sociedade

 

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Novos casos de linchamento relembram: transformar violência em espetáculo é uma forma de mascarar a brutalidade oculta que permeia sociedade

Por Celso Vicenzi | Imagem: Katerina Apostolakou

As pessoas que amarram seres humanos em postes ou os imobilizam com travas de bicicleta – cenas que se repetem de diferentes maneiras pelo Brasil, assim como os linchamentos – têm as mesmas motivações daqueles que pregaram Cristo na cruz. Não há diferenças, por mais cristãos que os contemporâneos imaginem ser. Salvo a distância no tempo, são atos com um mesmo propósito, o de exibir a punição para servir de exemplo.

São os mesmos que queimaram entre 100 mil e 500 mil mulheres nas fogueiras da Inquisição Católica, na Europa, acusadas de bruxaria (há quem fale em 9 milhões).

Não diferem dos que enforcaram Tiradentes, o esquartejaram e penduraram sua cabeça em Vila Rica e pedaços de seu corpo nos lugares em que fizera seus discursos revolucionários.

Para que os exemplos não frutifiquem, é preciso sempre uma dura lição!

São os mesmos que enforcaram ou decapitaram com machados ou guilhotinas milhares de seres humanos em praças públicas. Ou os torturaram com os métodos mais cruéis já inventados pela mente humana, diante de grandes plateias. A crueldade precisa de espectadores. E não são poucos, ontem como hoje, aqueles que se regozijam com esses atos.

Na Revolução Francesa, na Europa da Idade Média, em vários lugares e épocas, o povo comparecia às execuções em praça pública com o mesmo entusiasmo de quem vai a  uma festa popular. Era um espetáculo “familiar” em que até as crianças estavam presentes. Lá como cá, a aceitação da pena aplicada pelos algozes sempre foi enorme.

Por isso, não importa o grau de violência perpetrado, em todos esses casos, mais do que punir, o objetivo sempre foi o de exibir a punição à sociedade com o intuito de desencorajar, de amedrontar pelo terror, de inibir atos semelhantes.

Não bastou condenar Jesus à pena de morte, era preciso mostrá-lo pregado à cruz, para que o exemplo pudesse intimidar quem ousasse seguir o mesmo caminho. Como podem concluir, o método tem suas falhas… Os cristãos se espalharam pelo mundo. Junto a Cristo estavam, também pregados a cruzes, dois ladrões. Não muito diferentes desses que hoje são punidos de modo violento pela sociedade, seja pela tortura, pela mutilação ou pela prisão em cadeias superlotadas, piores que as masmorras medievais.

A moderna sociedade brasileira pouco se difere das de épocas tenebrosas ao permitir castigos cruéis aos apenados. A única diferença é que, atualmente, não há no aparato político-jurídico quem os justifique, mas é certo que pouco se faz para impedir que a tortura seja método usual e corriqueiro em delegacias do país, para obtenção de informações e como instrumento de poder. Para os “homens e mulheres de bem”, como boa parte se autoidentifica, não basta privar o sentenciado da liberdade, é preciso infligir castigos cruéis. E, se possível, a pena capital: “bandido bom é bandido morto”.  (E depois vão à missa, ao culto, às orações, para pedir paz e um lugar reservado no céu…).

Cerca de 55 mil pessoas são assassinadas anualmente no Brasil. A maioria, 39 mil, são negros. Para os pesquisadores, o racismo e as condições econômicas e sociais são as principais causas.

A pena de morte, na cruz, na fogueira, na cadeira elétrica, na forca, na guilhotina, por injeção ou pelas balas da PM – não importa o método – nunca funcionou para deter nenhum tipo de violência. E muito menos para calar ideias e ideais. Mas serve para o júbilo dos que assistem e para aqueles que assumem, por alguns momentos, o papel de carrasco.

Segundo Priscila Lessa (“A tortura no Ocidente: atrocidade cultural ou exercício do poder”, disponível aqui), o carrasco tinha uma posição de status no Antigo Regime, na França, entre os séculos XVI e XVIII, e era uma profissão bem remunerada e hereditária. “A arte do ofício da tortura e da execução passava, por tradição, de pai para filho. O jovem carrasco tinha sua iniciação desde muito pequeno, aos cinco ou seis anos, quando já estava apto a ajudar o pai em pequenos castigos, como banhar o acusado em óleo quente ou queimar-lhe a sola dos pés.”

Os filhos desses jovens e adultos que atualmente se deliciam em fazer justiça com as próprias mãos também já estão aptos a aprender o ofício? Aprenderão, desde cedo, como tratar adolescentes e jovens envolvidos em furtos e assaltos? Afinal, quem aprende mais com quem? Quem pratica eventual ato ilegal ou violento aprende a não fazê-lo mais depois de espancamento, tortura e prisão num poste, ou o aprendizado é maior para aqueles dispostos a ingressar nessa cruzada por justiçamento, que, sem  demora, corre o risco de “sentenciar” pequenos “marginais” à morte, amarrados em postes?

Indivíduos são estimulados desde cedo pela ideologia autoritária, pelos telejornais e programas de TV especializados em exibir violências de todos os tipos, menos aquelas cometidas pelos donos do poder. Afinal, também não é violência o modelo de sociedade onde 0,7% de seus habitantes detêm 41% de toda a riqueza mundial? E que leva milhões à morte? E empurra milhares ao crime? No caso brasileiro, não é uma violência a mesma sociedade ostentar o sexto maior PIB e a quarta maior desigualdade social do planeta? Por que não ocorre aos “justiceiros” amarrar aos postes os responsáveis por tamanha crueldade contra toda a população – ela, classe média, incluída? Tão próxima de um dia se juntar aos que estão mais abaixo?

O aparato de controle da escola, dos meios de comunicação, das igrejas, das tradições familiares, do Estado, ou seja, toda uma ideologia que se aprende desde o nascimento, tem justamente essa função de manter a maioria da população na ignorância sobre quem, de fato, são os seus principais verdugos. Quem são os maiores responsáveis pela inexistência de políticas públicas que poderiam evitar a maior parte das brutalidades cotidianas? Boa parte dos cidadãos, sem acesso à informação de qualidade, a uma boa formação humanística, só consegue enxergar como inimigo direto, o “marginal” que  pratica vários delitos.

E contra ele descarrega toda a sua torta ideia de justiça, deixa-se assombrar por vontades arcaicas que o colocam a um passo da barbárie. Séculos, milênios de civilização permitiram ao ser humano construir obras monumentais e desenvolver tecnologias próximas da ficção, mas não o afastaram muito das emoções mais primitivas, de raiva, ódio, vingança, egoísmo, medo e crueldade.

Da cruz ao poste, Estado e cidadãos, numa relação dialética que se retroalimenta, mantêm o modelo ineficaz para conter a violência: vigiar, punir e exibir.

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8 comentários para "Vigiar, punir e exibir!"

  1. Belo texto realmente. Conseguiu traçar um estudo histórico em poucas linhas mas sem perder a consistência.
    Propositadamente no entanto não deu uma conclusão para o problema depois de apontá-lo: o linchamento que, diga-se de passagem, pode ser tanto físico quanto moral.
    Enquanto nossa sociedade aceitar que o Estado seja roubado não sobrará recursos para educação e segurança, e esse é o fator que a meu ver gera a falta de uma ação pública efetiva que abre espaço a ação privada.
    A justiça hoje se faz, mesmo nos tribunais criminais, baseados em conceitos e preconceitos, basta assistir à algumas sessões do júri popular para ver que os réus são condenados apenas pelas argumentações dos promotores de justiça pois não existe de fato um trabalho de investigação científica.
    http://aconteceuemitu.blogspot.com.br/2012/01/o-tribunal-de-juri-de-itu-e-seu.html
    A Polícia Civil não faz seu trabalho, não por falta de vontade ou de capacidade, mas por falta de estrutura, e se bobear custa ao Estado brasileiro mais que o CSI americano.
    Ontem tivemos mais uma sessão histórica do Tribunal do Júri aqui em Itu, onde foi novamente condenado um réu cujo julgamento anterior foi anulado por falta de provas.
    http://aconteceuemitu.blogspot.com.br/2014/05/a-revolta-do-promotor-de-justica-e-o.html
    Nós, cidadãos, nem percebemos que a sociedade para poder sobreviver já mantem um sistema de controle criminal informal. Muitos fazem que não enxergam isso, mas é impossível de que alguma pessoa possa dizer que as condenações dos crimes de homicídio no Brasil são calcados em provas. E apenas cito esse exemplo por ser o mais escandaloso.
    Exigir provas… com esse nosso aparato científico seria liberar o crime em nosso país.
    Visto que o Estado não cumpre sua função, alguém tem que fazer esse papel. A Justiça e as forças policiais em nosso país tem feito desde seus primórdios esse papel, mas como trabalha a margem da lei acabam ambos, criando suas próprias regras informais.
    Bem, acabo como Vicenzi, sem apontar uma solução.

  2. Kátia Ribeiro disse:

    O texto é bom e faz a reflexão que sentia ausênte nas redes sociais, principalmente no facebook, durante essa semana. O fato ocorrido em Recife, minha cidade natal, quando a Polícia Militar entrou em greve. Várias pessoas fizeram parte de movimentos tidos “arrastões”, quebrando tudo e roubando o que podia. Na quinta-feira á noite, com a greve acabando, as buscas das PMs e das tropas do Exercito foram atrás dos ladrões. Imagino o tamanho da violência… Muitas mães resolveram entregar os bens roubados por seus filhos. Para mim, orgulho de ser pernambucana. Mas para a maioria dos amigos do face, esse ato não tinha nenhum valor, nenhum conteúdo pois os ladrões deveriam ter “pensado antes”. Grande desapontamento conviver com essas argumentações. E como disse o colega acima, fazem orações e vão ás igrejas, dormem como bons cidadãos!

  3. Só um reparo: Tiradentes não morreu coisa nenhuma. Foi flagrado vivo em Paris. Em seu lugar, colocaram um ladrão dito “comum”.

  4. Cesar Ferreira disse:

    O texto se resume a seguinte argumentação:
    -O linchamento é uma reprodução do instrumento “vigiar, punir e exibir” promovido pelo Estado ou sociedade.
    -Esse instrumento é ineficaz.
    -Logo, se esse instrumento for retirado, a idéia será suprimida e por consequência o linchamento deixaria de existir.
    Primeiro, não é demonstrável que a supressão do instrumento faria por si só desaparecer o fenômeno dos linchamentos.
    Segundo, não se demonstra que esse instrumento é ineficaz. Apesar de que pode-se admitir a hipótese de poder existir instrumento melhor.
    Terceiro, quem disse que um linchador pensa, consciente ou inconscientemente, reproduzir o instrumento “vigiar, punir e exibir”?…
    …Quando o Estado “vigia, pune e exibe” ele está, digamos, civilizando um processo de vingança. E claro, um linchamento pode ser um processo de vingança, logo seria uma reprodução do instrumento. Só que nem todos que participam do linchamento estão necessariamente cometendo uma vingança.
    Isto é, se um camarada me rouba e eu o agrido, eu estou me vingando.
    Se um segundo toma as minhas dores e me ajuda, estamos linchando.
    Se um terceiro sem nenhuma empatia por mim, vendo a confusão aproveita pra bater também, o faz para extravasar alguma raiva (acumulada de outras fontes) ou porque é um psicopata. Mas em ambos os casos, sabe que sua violência não será recriminada e, principalmente, porque é seguro fazê-lo. Ou seja, é um covarde da pior espécie e um criminoso oportunista.

  5. Alex disse:

    não existe qualquer registro sobre algum discurso de tira-dentes.
    abss

  6. RUI SOUTO disse:

    O Brasil vai pagar a desqualificação das instituições policiais e a inércia da justiça. O cidadão longe das formalidades legais não acredita na Justiça, que sem nenhum crivo do poder do povo, do qual emana todo Poder, continua mantendo Juízes, Promotores e funcionários dos tribunais ricos e sem compromisso com a justiça. De maneira, que resta ao cidadão agir na barbárie, ao contrario do que se propaga, cadeia é lugar de quem comete crime, o processo deve ser rápido para garantir o aspecto educacional e correcional, e o condenado deve permanecer na cadeia que é lugar de punição não de regalia.

  7. Cidadão do mal disse:

    Resumindo em boas palavras uma conversa que tive nesta semana com duas pessoas que esbravejam a quatro cantos que “bandido bom é bandido morto”. E com tanta violência nos pensamentos, dormem como “cidadãos de bem”.

  8. Estava comentando hoje com um amigo sobre a falta que faz o velho Jornal do Brasil que, apesar de ter mantido o padrão em sua versão digital exclusiva, deixou saudades nas bancas. O texto acima é de rara qualidade e poderia ter sido assinado por qualquer um dos grandes da velha guarda do JB…

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