UPPs: retrato de um impasse brasileiro

Há inovações importantes na Polícia Pacificadora. Mas perdem-se, em meio a velha cultura que vê, nos pobres, inimigos do Estado

140616-Imagem Art 01 - Gabriel Bayarri

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Por Gabriel Bayarri

O ambicioso plano da Secretaria de Segurança do Estado de Rio de Janeiro para pacificar as favelas cariocas é só a ponta do iceberg de um largo processo. Iniciado em 2008, o programa já foi levado a 36 favelas, das mais de mil comunidades existentes no Estado, segundo a Federação de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj). E o debate sobre as novas formas de polícia comunitária, aplicadas no modelo das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), está só começando. As UPPs seguem, por decreto, uma seleção dos territórios nos que se instalar. Devem ser sempre: 1) comunidades pobres 2) de alto grau de informalidade 3) com presença de grupos criminosos fortemente armados. (1)

No processo de implantação, o primeiro passo antes da inclusão da UPP será a intervenção tática, levada a cabo pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) e/ou o Batalhão de Policia de Choque, com o objetivo de recuperar o controle estatal sobre áreas ilegalmente dominadas por grupos criminosos altamente armados. Hasteia-se a bandeira do BOPE no morro dominado, e após a demonstração de dominação, procura-se enfrentar o sistema de caos preestabelecido (2). Estabilização, implantação e controle são as etapas levadas a cabo pelos próprios policiais militares que formarão a UPP.

Os policiais que formam parte das UPPs recebem uma capacitação extra em questões como direitos humanos ou polícia cidadã. Trata-se de um curso composto de seis módulos: proteção social; primeiros socorros; gestão do espaço urbano e gênero; juventude e sexualidade. Esta formação complementar pretende acabar com a perspectiva estritamente belicista e punitivo-repressiva que caracteriza a PM. Não raro, a questão da formação policial emerge como uma componente, senão central, profundamente significativa no perfil das polícias brasileiras (em particular a Polícia Militar). Os centros de formação policial são apenas parcialmente capazes de moldar representações e construir conhecimento junto aos agentes de segurança (3). Na polícia, o saber adquirido nos centros de formação, divide espaço, ou mesmo é eclipsado, com os saberes adquiridos “na prática”, no dia a dia das ruas, não raro, transmitidos por policiais mais antigos (4). A Secretaria de Segurança, ciente desta realidade, promove a construção de uma polícia pacificadora jovem, cujos policiais que a constituem possam adquirir novos saberes na prática de seu serviço.

As funções dentro da UPP dividem-se entre o “Grupo de Polícia Pacificadora” (GPP), encarregado de patrulhar a favela, reforçar sua sensação de presença; o Grupo Tático de Polícia Pacificadora (GTPP), que apoia o anterior em situações críticas; e o setor administrativo. A normatização deu-se em 2009, quando o boletim da PM anunciou formalmente a anexação do programa UPP a seu corpo, e um bônus extra de 500 reais para os policiais que tiveram que trabalhar nas favelas recém-pacificadas, sendo o Morro de Santa Marta, localizado na zona Sul do Rio de Janeiro, o primeiro no que se aplicou a política.

Não obstante, a polícia de proximidade não surgiu com as atuais Unidades de Polícia Pacificadora das favelas. A necessidade de integrar polícia e população favelada através de ações colaborativas já tinha sido trabalhadas anteriormente através de dois programas: o Grupo de Aplicação Prático Escolar (GAPE) e os Grupos de Policia em Áreas Especiais (GPAEs), completamente novos para a PM. Nenhum teve continuidade.

Foram lançados no primeiro mandato de Leonel Brizola como governador do Rio de Janeiro, em 1983. Uma de suas prioridades foi tentar romper a lógica repressiva da ditadura militar, reconhecendo novos direitos humanos, opostos à violência policial. Isto levou a uma forte polarização da política de segurança pública. De um lado, os defensores do “discurso social”; de outro, os do “discurso de repressão”. Ante esta política de segurança pública, surge um novo conceito: a Política Pública de Segurança, que entende a pressão social e as ações de integração social como abordagens compatíveis, que contempla a ideia de “processo” e constiu-se, portanto, em contraponto às lógicas do extermínio e do conflito, tão arraigadas na PM. Assim, o desenho e planificação das UPPs, terceira tentativa de pacificação das comunidades, buscava, por primeira vez, uma política interdisciplinar que integrasse as políticas públicas de segurança com outras políticas de acesso a cidadania. Uma gestão integrada do território pacificado. Trata-se de uma transição das políticas de segurança pública para as políticas públicas de segurança. (5)

As UPPs fazem parte desse processo histórico. São construídas sob forte oposição, que parte de uma Polícia Militar com um histórico brutal de violência, treinada sob uma lógica de guerra e combate ao inimigo, atuando como fonte de reprodução de uma estrutura de significados, mas num entorno no qual se debatem vivamente novas formas de polícia comunitária através do tratamento da segurança como uma política pública, integradora. Devido a esse delicado equilíbrio no que se constituem as UPPs, seus objetivos como parte de uma política integradora devem ficar claramente demarcados; seria um retrocesso que acabem se transformando em atores políticos de base, na representação absoluta do Estado dentro das comunidades, correndo o risco de que sua gestão adquira traços totalitários no processo de democratização das relações sociais. A PM ainda está sujeita a uma ordem estatal, e não a uma ordem civil. A polícia enxerga a si mesma como extirpadora de conflitos e não como produtora de soluções — o que dificulta a interação com uma polícia comunitária e a transição de uma ordem repressiva para uma ordem preventiva. Assim, as UPPs constituiriam um “fato histórico” (1) que, em certo sentido, desafia a estrutura de significados construída pela corporação Polícia Militar.

A questão que surge é: como uma pacificação realizada num enfrentamento direto vai conseguir apropriar-se dos mecanismos característicos da polícia de proximidade nas favelas? Pois se entendemos as UPPs como um evento, este estará atrelado de forma indissociável a uma estrutura de significados que lhe precede, relacionando-se com esta de forma dialética. (4)

As UPPs constituem-se, portanto, como um modelo que permite integrar presente e passado através da manipulação de signos. Os próximos passos serão os mais delicados para esta política de segurança, monitorada pelo olhar internacional durante os grandes eventos — os que determinarão se a pacificação pode ser utilizada para conferir novos significados sobre a Polícia Militar ou se, na triste oposição, servirão só para reforçar as antigas formas de definir a realidade das práticas policiais.

REFERÊNCIAS

(1) NASCIMENTO, Vânia. Mediação nas Unidades de Policia Pacificadora. Morro da formiga. Dissertação UFF/ PPGA. 2012

(2) SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Ed Zahar, 1990.

(3) KANT DE LIMA, Roberto. (2003), “Direitos Civis, Estado de Direito e “Cultura Policial”: a formação policial em questão”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 41. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, jan-mar, p. 241-256

(4) MONTEIRO, Fabiano Dias; MALANQUINI, Lidiane. Sobre Soldados e Gansos: Uma aproximação acerca da percepção policial sobre a atuação em UPPs. Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia. SP, Brasil. 2012.

(5) LUCI DE OLIVEIRA, Fabiana. UPPs, direitos e justiça. Um estudo de caso das favelas do Vidigal e do Cantagalo. Ed. FGV. 2012

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