Um caixão grávido de luz

“Trabalhadores chineses, só vocês são reais”, nos diz o poema “baphywave 33,3%”. O poeta decreta o fim da humanidade, e faz brilhar uma esperança – ainda que necrófila

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Por Rafael Zacca I Imagem: Lasar Segall,  “Vigília fúnebre” (1927) xilogravura 

Transtopia e iluminação na poesia de Tomaz Amorim (seu blog aqui)

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A poesia contemporânea brasileira está cheia de animais. O próprio ser humano tem figurado em sua animalidade radical. No entanto, apenas os animais de Plástico pluma parecem ter sido afetados por uma estranha radioatividade. De outra maneira, não se explica a transmutação a que estão submetidos. A história dos acidentes nucleares comanda essa estranheza no livro de Tomaz Amorim, que apresenta corpos a meio caminho da criação natural e do trabalho (ou acidente) humano. Como na série “Baphywave”, em que uma “baphyonda” “pequena mas certeira” congela o mar, encalhando uma baleia e trazendo uma hidra alucinada, que promete justiça: “vem desfazer os enganos todos / acordar os enganados / e justiçar os enganadores.” Em outros tempos, a poesia brasileira estava cheia de imagens, atravessada na garganta pelo simbolismo. No entanto, apenas as imagens de Augusto dos Anjos pareciam ter sido afetadas por uma estranha cientificidade. Anatol Rosenfeld argumentava que os termos científicos em Augusto dos Anjos tinham sobre o poeta certa atração erótica, fazendo com que vocábulos, antes separados na realidade social, se encontrassem amorosamente. Esse amor fazia com que suas imagens se levantassem contra a injustiça. O verme, o abismo, o escarro eram mobilizados pela ciência contra “os canalhas deste mundo”. A radioatividade em Plástico pluma atualiza esse procedimento em uma nova dinâmica. Dessa vez, não é que os termos científicos mobilizem as imagens. As imagens são alteradas desde dentro, modificadas atomicamente, por assim dizer. Só assim se podem conceber “um vendaval de areia photoshopado por relâmpagos”, “midis de uma banda de anjos” e “um areal espelhando pessoas novas e um céu azul”.

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Tomaz Amorim escreve “um caixão grávido de luz”. Decreta o fim da humanidade, e, pelo mesmo anúncio, e somente a partir desse fim, faz brilhar uma esperança – uma esperança necrófila, mas uma esperança. Plástico pluma se arquiteta como um “monumento à orfandade da humanidade”.

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Tomaz Amorim

Já faz algum tempo que as artes têm se ocupado com motivos e temas distópicos. Especialmente o cinema nos enche de imagens desérticas, com terras áridas, venenosas, inférteis. E a lógica da sobrevivência e do “cada um por si”. Não é de se espantar que a terra arrasada e a miséria generalizada projetadas para o futuro tenham se convertido em mercadoria. Se é verdade que uma das principais características da transformação em mercadoria – de uma coisa, de uma imagem, de uma ideia – é o apagamento das relações sociais que lhe servem de força produtiva – a essa coisa, essa imagem, essa ideia –, então não é difícil imaginar o que está por debaixo do lençol que cobre duas paisagens não futurísticas, mas bastante presentes. Por debaixo dessa roupa de cama está o colchão em que deitamos e sonhamos o fim do mundo: e ele é fabricado com a espuma da miséria e da terra arrasada contemporânea da maior massa dos despossuídos do planeta, mas é costurado com uma linha nobre, paga com os tesouros acumulados que os vencedores saqueiam dos vencidos. Da mesma forma como um filme produzirá uma terra arrasada mais realista quanto melhor for o seu orçamento, a quantidade de ficções de um outro tempo-espaço arrasados acompanha a intensidade com que o nosso aqui e agora se divide entre miseráveis e acumuladores. No “poema preto” essa dinâmica é escancarada:

ó mar salgado, quanto do teu sal

são lágrimas de guiné-bissau!

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A imaginação está mais próxima da verdade do que a ciência. Claro que isto se trata de um chiste, de uma brincadeira, com a reflexão de Aristóteles, segundo a qual a poesia é superior à história. A história narra as coisas que ocorreram de fato, e a poesia narra as coisas que poderiam ter acontecido. Se fôssemos por essa brincadeira, chegaríamos a uma constatação curiosa. A ciência estuda as coisas que existem, a imaginação, as coisas que poderiam ter existido.

Plástico pluma está em São Paulo, no ano de 2018.

A ciência do lugar descobre um topos. A imaginação pode conceber uma utopia (um lugar que não existe, geralmente um aperfeiçoamento do lugar), uma atopia (a ausência do lugar), uma distopia (a falência do lugar).

Se a ciência estuda as coisas que existem e a imaginação as coisas que poderiam ter existido, a radioatividade produz uma diferença nuclear no seio da realidade. Nesse sentido, a radioatividade, convertida em princípio, configura uma fusão do imaginário e do real em uma transrealidade.

Plástico pluma opera pelo princípio da transtopia.

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O leitor pode ler o poema “uma galáxia tecida em crochê” como uma espécie de manifesto da transtopia. Porque traz um crochê impossível como “tapeçaria real do microondas”. Nele, o real se apresenta como um fundo vazio, sobre o qual se projeta uma simbologia pura, que não funciona como símbolo. Comparecem as imagens sem fundo: “auréola sobre a geladeira / santo-sudário apócrifo, panos de prato / dentes tortos e cariados / de um ou outro garfo / ossários arquivando galáxias e sudários e garfos / copos de plástico coloridos e engordurados”… coisas assim compõem a paisagem de Plástico pluma, e se apresentam, no poema, como “natureza morta”. A transtopia tem uma relação forte com a degradação da matéria. Mas é também condição de possibilidade de iluminação, como acusa a expressão “caixão grávido de luz”. A radioatividade brilha. Sem se dar conta, o leitor se verá em uma paisagem muito ensolarada, apesar de toda desolação. Principalmente quando os poemas, na segunda metade de Plástico pluma (o título do livro, inclusive, apresenta esse encontro entre o artifício poluente do plástico com a memória de asa da pluma), se convergem para os temas erótico-amorosos e para as entregas orgiásticas. Assim, não são contraditórios os versos de “shithole”, câmbio, “aqui é do fim do mundo / rádio pirata bioeletrônica / é aqui que se erguem topetes e pirâmides”, ao lado dos de “bacantes”, que dizem “ontem atuando numa orgia / entendi porque proíbe platão / que os lábios se movam / em demasia / lambuzando-se entre pessoas e jargão”.

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“Trabalhadores chineses”, nos diz o poema “baphywave 33,3%”, “só vocês são reais.” O procedimento transtópico não foge da realidade (como na utopia), nem se caracteriza como um desvio dela (como na distopia). Trata-se de um agenciamento nuclear, gerando hiper-realidades. Por isso, os momentos em que Tomaz consegue focalizar a sua atenção em elementos radicalmente singulares são aqueles em que a sua poesia se torna mais radicalmente transtópica. A grande vantagem disso. Não é à toa que nesses casos as duas energias do livro – a degradação da matéria e a iluminação pela entrega erótica – coincidam em um único elemento da realidade. No caso de “baphywave 33,3%”, esse elemento atende por “trabalhadores chineses”. Não parece haver contradição na sentença:“vocês são os surfistas da baphywave. a baphywave é onde se encontram o bafo dos amantes e o vapor do coração das máquinas.”

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Tomaz Amorim conhece duas paixões. O ódio contra a dominação e o amor aos corpos. Essa simplicidade de caráter define dois tipos sociais em sua poesia: canalhas, a quem o poeta reserva toda a sua ironia, e camaradas, a quem o seu corpo se abre.

Para compreender esse caráter, basta que o leitor leia Plástico pluma tendo em mente trechos de “teomaquia” (“toda semente bem arada germinará, / sem juízo de valor ou moral, / eis o fato. / que o canalha possa ser um bom pastor, / eis a questão”) e “borra de café” e de “borra de café”:

não nos falamos há muitos anos, meus amigos,

desde as jaquetas de couro sintético da adolescência

voávamos em círculos acorrentados na cruz da igreja matriz

falávamos em línguas e nos lambíamos com fluência

cabos grossos enterrados no fundo dos rios

há hieróglifos elétricos pintados nas marquises

sempre fomos felizes, nós, vira-latas magros

Contra o bom pastor canalha, a matilha de “vira-latas magros” dos camaradas bárbaros.

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Como amparar-se no cenho

de carvalho do inimigo que

te olha com pupila que dilata-se

e te diz: não para hoje, não

para ti.

A quem se destina um livro de poesias? Quando Odisseu retornou à casa depois de tanto sofrer (e gozar) em Troia e nos mares e ilhas no caminho do regresso, mal pôde ser reconhecido por Penélope. Rimbaud fabulava uma viagem da qual retornaria brutal e com outros traços. As mitologias estão cheias de personagens que se transformaram permanentemente após uma viagem iniciática – como é o caso da marca de Hefesto. Depois de abandonar a vida miserável nos sertões, a população de Canudos parece ter perdido as feições “brasileiras” da nova nação – senão, de que outro modo se explica que a própria nação tenha destinado quatro expedições, entre elas a maior das já realizadas em território nacional, para massacrar adultos, velhos e crianças? Plástico Pluma traz imagens de uma geração que se tornou irreconhecível na Terra, frequentemente irreconhecível entre seus próprios membros. A quem se destina esse livro de poemas?

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Plástico pluma não foi escrito em Fukushima, nem em nenhum contexto de radiação. Não se insere nas imagens distópicas do presente nem produz narrativas como as dos filmes de terra arrasada. O poema “são paulo” esclarece a um só tempo tanto o aqui e agora da obra quanto o aqui e agora do fim do mundo:

mas há uma boa nova, são paulo,

que não está no seu nome romano

nem na catedral dos mendigos da sé

são paulo dos imigrantes e de suas pontes,

a boa nova é que são paulo já acabou

Tomaz nasceu e foi criado em Poá. Mas a posição estratégica da cidade de São Paulo – cidade em que vive o poeta hoje – é a da condensação de todas as contradições que principalmente as megalópoles que possuem uma bolsa de valores têm. É um movimento interessante. A transtopia proposta por Tomaz encontra em São Paulo um solo mais fértil. Isso explica também a razão de esta poesia não ser memorialística.

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Tomaz e seus precursores? Em um conhecido texto sobre Kafka, Borges nos apresenta um procedimento crítico transtópico: é possível ler uma obra pelos efeitos que ela provoca na tradição. Uma obra inventa os seus precursores. Arrisco três nomes como precursores da poesia de Plástico pluma: Ferreira Gullar (aquele dos anos 1970), e a coincidência entre lixo histórico e aqui e agora da experimentação de um corpo; Franz Kafka, e o conúbio entre desesperança e transmutação; e Maiakóvski, pela concomitância entre o perigo de uma geração e a potência de uma geração.

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Tomaz e seus contemporâneos? Guilherme Gontijo Flores, pela coincidência entre lixo histórico e aqui e agora da experimentação das línguas; Laura Erber, pelo conúbio entre mortificação da matéria e transmutação; e Guilherme Zarvos, pelo copertencimento do perigo de um corpo e da potência de um corpo.

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O poema “panapaná” também poderia ser o título de Plastico pluma. É o primeiro poema do livro, e também o mais impressionante. Não apenas pela exuberância da imagem do coletivo de borboletas, mas pela espécie de radiografia que realiza da transtopia. Pois nesse poema, degradação da matéria e iluminação pelo corpo – uma das causas e uma das consequências transtópicas – não comparecem. Somente os efeitos trans se dão a ver. Das “revoadas de enxames de manadas aladas”, um fenômeno visual, saltamos para a imagem tátil de “manteiga borbulhando caramelizada”, e depois para a imagem palatável de “creme açucarado, e suave, amarelo dourado”, voltando ao registro ótico com “bolinhas vermelhas no nascer do sol”, e novamente o tátil em “do seu vestido branco de pregas”. E quando comparece a fotografia do “rosto da matriarca desaparecendo em borboletas e covinhas”, o coletivo de borboletas se transmuta em glossário-traço: “panapaná, jeito doido de sorrir”. Não deixa de ser desolador, mas igualmente instrutivo, ler este poema junto com o kafkiano “dança da cadeira”. Nele, essa brincadeira de festas infantis é cruelmente exposta como uma luta a qualquer custo pela sobrevivência. Os dois primeiros versos enganam o leitor: “é muito bonito quando / dançamos em volta das cadeiras”. Aqui também, nesse engano, a transtopia comparece em sua pureza: vamos da graça do jogo à sua desgraça sem que compreendamos quando foi que paramos aí.

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Plástico pluma é um livro estranhamente solar. É difícil decidir de onde vem a sua potência – ela existe, mas comparece travestida de angústia sem nome. Claro, essa é a potência de uma geração latino-americana que cresceu na apatia sangrenta dos anos 1990, o engajamento dos anos 2000 e 2010, e que agora vê diversas de suas conquistas sendo despejadas no ralo pelos canalhas. Ainda assim, podemos ler versos como “o sol quica nuclear de espaço em espaço / ouvimos daqui de baixo”. De onde essa potência, então? Na década de 1930, diante da humilhação que sua geração também sofreu, Walter Benjamin tipificou um elemento que surgia na realidade europeia, um cenário de terra devastada pelas guerras, pela inflação e pelo nazi-fascismo: era o tipo dos novos bárbaros, que diante da pobreza de experiência de sua época se contentavam com pouco, e construíam com pouco. Tomaz se coloca, com seu livro, na posição de um bárbaro. Literalmente, pois recusa-se a ficar de pé. O poema “de quatro” afirma a sua posição:

meus vinte dedos pisando o chão

as articulações arcadas

as costas da mão, uma planície

onde correm veias esverdeadas

de quatro, de quatro

meu quadril, antigravitacional

a bunda branca beija a lua

de quatro

Plástico pluma é para uma geração que defende a sua dignidade de quatro. Em orgias, em biroscas simples, em quartos baratos de motel. Contenta-se com pouco. Não, não se contenta com pouco: constrói com pouco, e quer, com todas as forças, fazer frente aos canalhas deste mundo. O poema “sinos” se anuncia em três badaladas a essa geração: “a nossa coragem como sinos / avisando à onça e à noite / que seguimos vivos”. Parecem ressoar aqueles versos de Drummond, que relembravam aos seus: “nossos donos temporais ainda não devassaram / o claro estoque de manhãs / que cada um traz no sangue no vento”. São versos como esse que a geração sem-lugar ainda pode habitar. Tomaz escreve seus versos transtópicos como um lugar em que uma geração pode estar.

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