São Paulo: as cosméticas urbanas de Dória

Ação do prefeito contra pixos e grafites não é apenas estética, mas política. Visa calar a dissidência e apagar a diferença, a fim de criar o simulacro de cidade una e harmônica

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Ação do prefeito contra pixos e grafites não é apenas estética, mas política. Visa calar a dissidência e apagar a diferença, a fim de criar o simulacro de cidade una e harmônica — artificial, de beleza apenas aparente

Por Fran Alavina | Imagem: Nina Pandolfo, Nunca e Osgemeos

As primeiras ações do plutocrata prefeito de São Paulo são profícuas para se pensar as várias dimensões da intercessão entre o urbano e o político. Suas ações publicitárias fazem do governo municipal um primoroso gestor de imagens, mais do que de ações governamentais. Não se trata tanto do que é feito, mas de mostrar o que se “faz”, remetendo à diferença secular entre a coisa e a sua imagem. É difícil separar o que é publicidade e o que é governo. Remetidos ao campo da imagem, estaremos sempre lidando com simulacros, pois o próprio prefeito é um simulacro: simulacro de trabalhador. A imaginação coletiva é astutamente atraída e cooptada para não poder divisar com clareza a diferença entre ilusão e realidade, entre o feito e o visto. Por isso, as críticas à nova gestão terão que ser dirigidas tanto às imagens, quanto às ações, pois do contrário serão inócuas.

Se em um primeiro momento, a estratégia da gestão de imagens se voltou para a própria figura do prefeito (conforme assinalamos no artigo: Doria: a política sob a forma do ridículo) agora, seguindo a mesma via, não se trata mais da imagem do prefeito, porém da imagem da cidade. E para tanto, Doria apela para uma questão que põe no centro da arena da discussão pública a relação entre estético e político, por meio do tratamento que o novo prefeito tem dado aos pixos e grafites da cidade.

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Aqui, se faz necessário ter claro os dois sentidos da palavra estética (o). O primeiro é aquele que remete ao estético como lugar do belo e da arte. Nesse sentido, estético é tudo àquilo que se relaciona à nossa sensibilidade, à criação artística e à beleza como efeito dessa criação. O segundo sentido, mais usual em nosso cotidiano, é apenas sinônimo de cosmética. Éuma vulgarização do primeiro. Fundamenta-se sobre a ditadura dos padrões pré-determinados de beleza, pautando-se por uma alienação dos afetos e um roubo simbólico de nossa sensibilidade. Em um dos sentidos, a beleza e a arte são livres; em outro, a beleza é imposta. Porém, recorde-se que não pode haver beleza nas coisas impostas.

É no âmbito desse segundo sentido que opera o Programa Cidade Linda”, do prefeito Doria. Seu apelo cosmético é inequívoco. “Cidade Linda” nos remete a um tipo de cosmética peculiar: a cosmética urbana. Mas a função da indústria cosmética é fazer crer que o natural enquanto tal não é plenamente belo: é preciso interferir, como se o nosso corpo fosse um tipo de “borrão” que algumas vezes deve ser apagado; outras, corrigido. Há necessidade dos produtos, das cirurgias e outros acessórios que simulam a ilusão de que a jovialidade é um produto de mercado, como se fosse possível comprá-la. Ademais — por fazer do natural algo incompleto, operando com imposições — trata-se de um tipo de violência: tanto física, quanto simbólica. A cosmética urbana altera o corpo da cidade para tentar forjar um rosto artificial.

É justamente isso que tenta fazer Doria: apagar o autêntico da cidade para dar lugar aos simulacros de sua gestão, operando um tipo de violência material e simbólica. Material, uma vez que é feita nas ruas; simbólica, posto que se trata de alterar nossa relação afetiva com a cidade. Neste programa, o “Cidade Linda”, o prefeito não precisa se fantasiar, mas fantasiar a cidade, manuseando uma imagem que nos é dada como uma coisa óbvia em nossa relação imediata com o urbano: a existência dos pixos e grafites. Nesse caso, Doria explora o máximo possível a manipulação do visível. Sua máquina de criar simulacros nos quer fazer crer que os pixos e os grafites são os reais culpados por uma cidade feia. Sua retórica demagógica joga com o senso comum, empobrecendo o debate sobre a relação entre o artístico e o urbano.

Por um lado, com a desculpa senso-comum de que os pixos e os grafites enfeiam a cidade, o prefeito os reduz a simples elementos estéticos, como se essas expressões artísticas fossem desprovidas de um sentido político. Elas são elementos constitutivos de uma poética do espaço urbano, revelando a cidade como algo não apenas funcional e lugar da homologação. Ao esvaziá-las do sentido político que lhes é inerente, Doria tenta calar as críticas, anulando a expressão do caráter desigual de uma metrópole cada vez mais unidimensional e rancorosa, incapaz de se abrir aos novos sentidos estéticos. Não se trata de uma simples questão estética (cosmética), deixar a cidade “linda”, mas de uma questão política: calar a dissidência e apagar a diferença a fim de criar o simulacro de cidade una e harmônica. Ou seja, uma cidade artificial, de beleza apenas aparente. Tenta-se esconder as marcas de uma urbe excludente, tornando ainda mais invisível suas contradições.

Os pixos e grafites são expressões autênticas dessas contradições, são as veias abertas da metrópole. É natural que as dissidências no interior do corpo da cidade possam se expressar de diferentes modos; impedir isto é um ato de autoritarismo estético e político. A cidade que “caça” os pixos e grafites pode até ser bela, porém será uma beleza cosmética que atestará uma vida democrática horrenda. Entre as coisas não compráveis está um gosto estético apurado.

Reduzindo os pixos e grafites a uma questão estética vulgar, isto é, como se se tratasse apenas de enfeiar ou embelezar a cidade, Doria lhes nega o estatuto de arte. Quando muito, acena que se trata de um tipo de arte menor, consentindo que os grafites existam em lugares indicados e controlados pela prefeitura. Isto é indício que o prefeito tem uma visão aristocrática de arte: reduzindo-a aquele tipo de fruição que se dá nos espaços fechados das galerias e museus, acessível apenas àqueles que podem pagar. Para “quem pode”, a Sala São Paulo; para “quem não pode”, os muros cinzas de uma sinfonia monótona.

Os pixos e grafites, enquanto expressões artísticas de rua, democratizam a relação da cidade com a arte, retirando a criação artística dos espaços fechados e excludentes. Com a implementação do “Projeto cidade linda” temos a afirmação de uma concepção engessada de arte, sem povo, feita para poucos; e, uma concepção de belo uniformizadora que faz da diferença um traço que deve ser apagado. A desigualdade crescente e os lugares de exclusão da cidade parecem não não são coisas feias para o prefeito, pois sua cosmética urbana é uma vulgarização do sentido estético da cidade e uma redução do sentido político da arte de rua. Nele, demagogia e cosmética são uma só coisa.

Certo é que veremos uma usurpação, uma perda da dimensão estética da cidade. O direito à cidade é o direito ao urbano em todas as suas dimensões: material, simbólica, afetiva e estética. Com Doria na prefeitura de São Paulo, a cidade se apresentará com a imagem da metrópole cinza e sorriso amarelo. Por isso, é preciso pintar a cidade com as cores do real! Pois, como já se disse uma vez, só há estética das coisas reais, o resto é cosmética.

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4 comentários para "São Paulo: as cosméticas urbanas de Dória"

  1. Luiz Oliveira disse:

    O pixo é com certeza uma contraposição à ordem burguesa, à estética urbana burguesa. É a rebeldia a essa falsa ordem urbana. Aliás, a burguesia brasileira fracassou com seu projeto urbano, criou cidades caóticas, desestruturadas, com uma cosmética ralé, como forma de mascaramento das contradições sociais do capitalismo. Criou uma urbanidade violenta, de segregação social de classes, onde pobres moram na periferia, favelas, morros e ricos na zona da especulação mobiliária. Sempre foi assim. Basta ver como nasceu a Aldeota em Fortaleza e que fizeram para expulsar os pobres desta região. A cidade não é só nossa, é de todos que moram nela. Não é da classe merda aburguesada, nem do abastado egoísta, é também dos desvalidos do capitalismo periférico brasileiro. Não entender essa guerra social, essa luta de classes, é cair na ilusão de que tudo é uma questão de educação moral e cívica. O Brasil é um centro urbano caótico em todos os sentidos e a burguesia dirigente do país não souber solucionar esse antagonismo social, justamente porque ele é produto da sociedade classista da exploração do homem pelo homem. Talvez as pessoas vão me ler na aparência, mas cada expressão tem um sentido ontológico profundo, uma dialética imanente. Mas talvez leiam pela racionalismo cartesiano moderno em falência filosófica.

  2. Cyro Laurenza disse:

    creio que Roldão aborda melhor conceitos mais adequados sobre a diferença da liberdade de expressão e a libertinagem expressa em aos voluntariosos.
    envio um tema novo para muitos e para discussão:
    Cidade limpa tem sido o símbolo dessa campanha, muitos não perceberam a finalidade, outros divergem, alguns concordam e muitos ficaram sem dúvida atentos e esperando novos passos. Na verdade, existe a expectativa, independente do prefeito e, na cabeça de cada um no passado recente, quando nossa cidade foi invadida pela sujeira, algo como se não tivesse dono, surgiu em todos nós a esperança de mudanças a uma cidade que muitos acreditam ser terminal. Independentemente de partidos políticos, de nomes bons ou ruins, a cidade independe dessas pessoas, a cidade é nossa e não deles.
    Nos estudos atuais da busca de se tornar uma cidade atraente, a limpeza entre outros predicados importantes é a primeira fotografia a ser mostrada, a quem se interessar. Mas seria somente isso que é relevante? Claro que não. Sem dúvida é o início do futuro a se buscar; tem que passar por diversas outras fases.
    Hoje cidades no Mundo se tornaram magnéticas provável último passo nas condições atuais de se viver bem, receber bem e desenvolver mais adequada forma de viver. Seria somente isso no futuro distante? Creio que não. Muitas tem sido as explorações dos grandes mestres em hipóteses variadas, todas muitas vezes aceitáveis por uns, desenganadas por outros, creio que a marcha de vida de São Paulo é a de se tornar uma cidade magnética, atraente, ótima de se viver e conviver. Liberdade de expressão não pode ser confundida com libertinagem.
    Um termo hoje empregado em urbanismo, ao definir cidades, vem sendo a questão do magnetismo da cidade, “perguntam se a cidade é magnética”, não para o Capital e sim para simplesmente pessoas. E esse magnetismo o que é? Seria somente empregos adequado ou limpeza? Fluidez em movimentação tranquila e rapidamente adequado? Sua conexão com o mundo que vive ao seu redor, na maioria das vezes conurbados, de difícil identificação dos limites de seu território.
    A discussão tem sido muito oportuna em muitas universidades do Mundo, em resumo, a questão colocada se resume: o que é uma cidade magnética? Como torna-la?
    Claro que em sequência a essa questão surge como conquistarmos essa meta? Como tornar as Cidades com potencial Magnético, atraente a todos que por nela passam e aqueles, que inseridos nela, viverem melhor, cada vez mais. Acredite, elas existem e muitos de nós já por muitas delas passamos.
    Conforto visual, excelente mobilidade, segurança econômica e física são as características das cidades magnéticas, aquelas imantadas pela qualidade de vida, adequado planejamento urbano planejado em longo prazo e governabilidade responsável. Lugar aonde se tem vontade de viver. Nos sentimos magnetizados pelo bem que ela nos traz. Cyro Laurenza

  3. A articulista levanta a discussão sobre a arte contemporânea urbana, enviesando críticas ao Estado quando este procura escoimar da cena urbana as expressões artísticas de gosto duvidoso e que contribuem para emporcalhar o visual do cidadão comum que perambula pelas ruas das cidades. É preciso discernir grafite de pichação ou “pixo” (sic). Um pode ser considerado expressão artística urbana. O outro, além de ser crime ambiental, é considerado vandalismo em todo o planeta. Por ser assíduo visitante de galerias de arte contemporânea ao redor do mundo, tenho percebido que a arte contemporânea é bem recebida pelo cidadão comum quando transmite mensagem de moralidade, de otimismo, de felicidade, de alegria e de esperança em dias melhores. Diferentemente do que pensa a elite intelectualizada, o cidadão comum percebe esses valores quando está diante da expressão de arte urbana. O cidadão comum não aprecia o vandalismo “artístico” urbano. O cidadão comum aprecia a estética da arte de rua. Cada um no seu enfoque estético e o ambiente urbano é pródigo de cidadãos comuns. A elite intelectualizada não caminha pelas ruas. Não sente a pressão do vandalismo das pichações. Os cidadãos intelectualizados costumam fechar-se nas suas redomas de presunção, desprezando o atavismo do cidadão comum pelo ambiente urbano mais acolhedor visualmente. No caso em comento, é evidente que o Estado está buscando o bem-estar social (“welfare state”) pela mitigação das causas que tornam a cena urbana mais poluída. Um ambiente urbano mais aprazível e esteticamente integrado à natureza contribui efetivamente para o “welfare state” que é o objetivo colimado pelas correntes ideológicas de esquerda. No entanto, a articulista, assumindo atitude fascista, procura depreciar a ação meritória do Estado em promover o “welfare state” pela melhoria do visual urbano. No afã de criticar essa ação meritória do Estado, a articulista faz, descaradamente, a apologia do crime ambiental e do vandalismo ao afirmar que os “pixos” (sic) são “expressões artísticas de rua” porque “democratizam a relação da cidade com a arte, retirando a criação artística dos espaços fechados e excludentes”. É o fim…

  4. Luiz Oliveira disse:

    Fran, acho que abordar temas citadinos sob essa sua ótica filosófica só vem enriquecer o debate político, que muitas vezes cai no ralo da obscuridade, da mediocridade da obviedade humana. Parabéns. Os que vão dizer que é hermético ou erudito, mal sabem que a linguagem é diversa, múltipla, e pode captar a realidade de várias formas, embora a essência da verdade seja a mesma.

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