Os Condenados: 14º trecho da trilogia de Oswald

“S.Paulo rumorejava últimos instantes do carnaval. Houve luz e baque mecânico na noite. Surpresa azeda na boca… Moveu as pernas numa aflição de viver”

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Por Oswald de Andrade | Imagem: Gerhard Richter

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No âmbito da série “Oswald 60″, Outras Palavras publica semanalmente, em formato de folhetim, a trilogia “Os Condenados”, obra perturbadora que Oswald de Andrade escreveu entre 1922 e 1934. Acesse aqui os capítulos já publicados

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Na sequência anterior, Jorge d’Alvelos confia ingenuamente em seu valor. Mas a arte lhe é negada e uma revolta toma conta dele. Impetuoso, destrói a estátua de Alma. Ele sabe que é um dos condenados. Recomeça a trabalhar, num ódio contra a cidade. Esta parece negá-lo. Nesse meio tempo, chegam de Roma dois trabalhos que fizera por lá. Torresvedras obtém pensão do governo para estudar música em Paris. O diretor de uma revista pede informações sobre o trabalho do escultor. Ele encontra o jovem amante de Alma. Jorge pensa chegar até o outro, o assassino, Mauro Glade. Jorge se interessa por um mendigo de rua. Mais tarde, chega o carnaval em São Paulo. No ano anterior, Alma lhe dissera: – O carnaval aqui é sério, quem rir vai preso… Num restaurante, nota um dominó amarelo. Se fosse Mauro Glade? Lá fora, automóveis de luxúria e carros altos. Jorge quer passar. Vê-se preso ao carnaval monstruoso dos outros. (Theotonio de Paiva, editor de Oswald 60)

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Em pijama, no leito de bronze fosco do seu quarto, deixara escoar-se lá fora, a longa festa noturna de segunda-feira. Não pretendia sair. Para que? O pierrot cor-de-ouro? Passara, como tudo que promete, que faz desejar, entrever.

Quem não teve um pierrot cor-de-ouro na vida?

De fora, da rua asfaltada e larga, vinha um cascatear contínuo de veículo rodando, arfar de motores, gritos, cometas.

*-*-*-*-*

O músico Torresvedras viera na tarde fina e limpa surpreendê-lo no atelier. E saíram juntos, atraídos pelo imprevisto das coisas, na direção do Triângulo.

Jantaram num desvão do centro, na descoberta interessada de um restaurante que lembrava ao escultor casas de pasto de Roma.

Seriam oito horas quando penetraram no redobrado tumulto da terça-feira gorda.

Automóveis e veículos voltavam mais cedo da Avenida para a celebração dos préstitos nas ruas centrais. E enrolavam a cidade num desfile imenso, garboso e lento.

Os dois artistas caminhavam na busca inocente do maravilhoso que passava nos carros, com toilettes estranhas, evocativas de sonho, restauradoras de épocas e países.

*-*-*-*-*

Chegaram ao Largo de São Bento. Tomaram pela grande abertura asfaltada da Rua Libero Badaró.

O corso estendia-se, parado numa súbita síncope; e eles divisaram até embaixo, longa, intérmina, dobrando esquinas, fazendo voltas inteiras de quarteirões, atravancando os viadutos, a linha desmesurada de alegorias rolantes. Pernas enluvadas saíam de saias curtas de cetim; sobre capotas altas, Colombinas de gaze fechavam, num recorte, o encosto dos torpedos arfantes; bouquets de pierrots e pierrettes ornavam pontas de táxis.

E os dois amigos seguiram, bebendo pelos olhos a sucessão de carros, automóveis, caminhões, que faziam a exibição processional, sem máscara, da urbe cosmopolita e milionária.

Subiram. As vias públicas estavam tomadas pelo glorioso desfile: era toda uma coleção vitoriosa e intérmina de selecionados na forte vida da América, que se mostrava assim no deshabillé da noite tropical. Os moços cultivados no esporte, atilados no comércio; as moças lindas, esbeltas, com os olhos avivados, as faces pálidas, as bocas carnosas, oferecendo risos, revelavam a mocidade apurada em um século de investida migratória por populações heterogêneas, vindas bater ali, num grande sonho, de todas as partes do globo.

Às vezes, a suburra passava, a pé, bamboleando em músicas nacionais, o fundo perdido das seduções crioulas de umbigadas e contatos.

As moças, de cima dos carros, olhavam imperturbáveis, aparentando ignorar o convite Iascivo dos maxixes espasmódicos. As suas mães tinham sido possuídas no rendez-vous dos cafezais, alinhados e verdes na sombra das oficinas, na aglomeração dos cortiços citadinos, no alarido das terceiras classes de paquetes, em travessias atlânticas…

Elas também saberiam entregar-se, belos animais, impassíveis, à espera do macho que viria. Pressentindo em cada homem rapado e ágil, um irmão de destino e de passado transcontinental, elas prometiam nos olhos inteligentes, nos sorrisos alvos, nos contatos de carnes sólidas, pernas elásticas, seios duros, peles de seda, fazer a fecundação vitoriosa do futuro, num aperfeiçoamento de raça eleita.

O Brasil velho também passava – eram máscaras avulsas, encalistrados nos trajes de roça, ponches melancólicos cor-de-fumo, chapelões tristes de palhinha… Eram no país flagelado, ronceiro e bisonho, representantes desmoralizados duma tentativa punga de estética e duma sugestão vaiada de nacionalidade. Acoitavam-se num e outro cavalo feio, à sombra dos grandes caminhões ou perdiam-se na indiferença acentuada da multidão que rodava. Às vezes, juntavam-se em caravanas líricas, animando-se então na marcha e arrastando empós rebotalhos de raças vencidas, de povos que desapareciam — e lá iam esmoendo uma demonstração de música primitiva e ululante; ou caminhavam nostálgicos, de passo malandro e sentimental; recompondo serenatas inúteis de antigo interior.

Menina, se eu te pedisse

Um beijinho só de amô…

Jorge pensava:

— Foram os treponemas civilizados de Wilde que escreveram as melhores réplicas de Salomé. Nestes versinhos colaboraram decerto o anquilóstomo e o baratão barbeiro.

O desfile continuava com chapéus de mago, sacerdotisas, rainhas, Vinícius belos e togados como no Quo Vadis dos teatros.

Passava de novo a suburra gingando.

E ficava em redor do préstito suave, o povo contente e acomodado, limpo, capaz amanhã, de trepar também aos toldos feéricos com túnicas e dominós.

Jorge d’Alvelos mergulhou os pés numa poça de lama. Houve risos em torno. Um trecho do passeio havia-se quebrado naquele ponto e tinham-no conduzido para ali, num attrape-nigaud idiota de carnaval. O artista procurou Torresvedras: ele havia desaparecido na multidão.

Jorge d’Alvelos sentiu-se subitamente contrariado. Acolheu-se numa grande timidez por ter ficado só, a um canto de esquina. Perto dele, marmanjos brincavam. Reuniam do chão maços fofos de serpentinas e jogavam-nos uns nos outros. Um guarda magro, de cara angulosa, sob o capacete londrino, investiu. E como um dos foliões escapasse por trás de Jorge, o soldado tomando o escultor pelo moleque, repreendeu-o, rude, ameaçou-o de prisão.

Ao lado, um homem murmurou um não foi ele tímido, vendo o escultor calar-se. Jorge tinha perdido toda a serenidade bem-humorada. Num súbito suor, vira grades de xadrez.

Foi aos encontrões, certo de que não acharia mais Torresvedras, certo de que se despejariam de novo sobre ele cornucópias de humilhações, de reveses, de maus-tratos.

*-*-*-*-*

Parara na Rua Direita. Os Bandeirantes de Momo vinham pelo Viaduto. Longe ainda, as cometas anunciavam o préstito.

Jorge ficou num aperto de gente. Ia vê-lo, o desconhecido, o homem que lhe aniquilara a existência, sorrindo e gingando. Era ele decerto quem dirigia o préstito, como dirigira a sua vida com Alma, às trombetadas.

Num clarão de fachos, entreviam-se na distância confusas alegorias. O povo coalhava-se nas calçadas: famílias defendendo crianças, mulatas gordas contendo negrinhos espevitados. Por detrás do escultor, um sujeito alto, de fraque, nariz grande e pince-nez tinha um jornal aberto na mão e lia para duas filhas, altas também, com paletós vermelhos de malha.

– O carnaval. Estupendo carro-chefe. Carro que ostenta, no meio de magnífica projeção de luzes e de radiante auréola luminosa, o símbolo da folia, do gozo esfuziante, da inebriante loucura carnavalesca.

Calara-se satisfeito. Jorge pensou que devia ser um funcionário público, anexo a qualquer departamento informativo.

Os clarins haviam cessado. Agora, chegavam até ali, sons rachados de um maxixe de banda, sinuoso, repinicado, com uma zoada miúda de pratos, de caracaxás e de bombos. Aproximava-se o préstito mais e mais. Parou. Distinguia-se já a comissão de frente, toda de branco sobre cavalos brancos. A música requebrou num súbito frenesi de trombones rebolantes como ancas – e cessou. Da multidão, das janelas entrelaçadas de fios coloridos que se partiam ao vento, gritavam:

– Bis! Bis!

Jorge disse consigo: – As grandes coisas não se bisam.

O préstito continuava a sua marcha pomposa. O escultor fora fortemente empurrado para trás, por um magote de pessoas que tomavam o passeio de assalto. Numa ânsia, empurrou, varou com os ombros. Havia de vê-lo…

E sorridentes, discretos como o outro, barbeados como o outro, belos como o outro, tirando o chapéu, num meneio gentil, os diretores da carnavalada passaram. Ele não estava. Antes, estava: desdobrara-se, multiplicara-se em seis, em dez, em doze cusparadas serenas sobre a pobre honra póstuma de Jorge.

Vieram os músicos, enrolados de instrumentos, com cabeças monstruosas de papelão jogadas às costas, montando burros ordeiros, burros capazes de pedir perdão para passar…

De novo, numa síncope, o cortejo parara. Acendiam-se fachos estridentes em torno do primeiro carro: tomando o horizonte, num enleamento de cores, dragões mantinham até o alto corpos de bacantes. Bem em frente a Jorge, os clarins impacientes esperavam. Eram nove figuras trajando de arautos, mulatos sem dentes, italianos gorduchos – a escória filarmônica da cidade. Ouviu-se um apito e parados ainda os três da frente, num movimento igual, puseram as trombetas à boca.

As cornetas cantavam metálicas, marciais.

Agora, os seis outros empunhavam os instrumentos curtos, direitos, para cima: e de novo, um sopro sonoro inundou de epopeia o quadro rumoroso e extático. Naquela dezena de notas, cortantes e claras, passavam evocações de batalha. Os cavalos tinham olhos tristes, olhos suplicantes, como se num fundo de ancestralidade nervosa temessem o mortífero fragor das cargas heroicas.

E rolando por entre gritos e êxtases, entrelaçados de serpentinas, coloridos de luzes maravilhosas, conduzindo nus morféticos de papelão e nus de carne, os carros desfilaram.

*-*-*-*-*

Espezinhado mas imortal!

Numa última ofensiva de otimismo, o seu otimismo secular, amazônico, invencível, Jorge d’AIvelos entrou numa casa de máscaras para alugar uma fantasia.

*-*-*-*-*

– Agora, vamos ver a Santa Casa. Foi o último caminho que ela fez, o último passeio.

O pierrot preto que tinha a cabeça cor-de-luar, pulando de um tufo rubro de gaze e rodelas vermelhas de botões, parou.

– Não vou. É o cúmulo da tortura!

– Tens medo de sofrer.

– Tenho.

Deixara a roupa na casa de fantasias. Trazia apenas consigo o medalhão com o retrato de Alma, o seu pouco dinheiro, um lenço e o revólver Browning.

Continuava a andar pelo Viaduto de Santa Efigênia, rumorejante ainda de povo, com pirâmides rolantes, cá e lá. Espiou para a festa de luzes que estrugia no Cassino Antártica. E o íncubo lhe disse:

– Se te atirasses, caías de ponta-cabeça lá embaixo.

Era um companheiro íntimo que o tomara pelo ombro: sabia os seus mais dissimulados segredos, era vago, sutil e tinha a mania de convencê-lo.

– Não vais ao Cemitério há muito tempo…

Era longe e triste o Araçá: entretanto, ele obedeceu à sugestão. Estava em frente ao jardim estranho da Memória. Entre árvores antigas, num arranjo colonial, uma escadaria erguia-se em voltas até o obelisco secular. – Uma vez, paraste aí, com ela, vendo…

O pierrot preto desviou o olhar. Pelo centro, incendiando as mais altas fachadas, de vermelho, de verde, os préstitos iam ainda. Chegava até ele o canto das cornetas heroicas.

Voltou. Andou em tropelias, em súbitas quietudes. Foi por travessas desertas tropeçando.

E de repente viu que tinha sido conduzido à Rua da Boa Morte. No silêncio, havia lampiões espaçados de enterro e, lá embaixo, no Braz, um fervilhamento parado de luzes.

Defrontava a casa baixa. A sala tinha ficado aberta e escura. Uma mulher elegante, moça, de chapéu, chegou à janela… O pierrot preto voltou, de ombros caídos, a cabeça cor-de-luar para a frente.

E o íncubo lhe disse outra vez: – Agora, vamos ver a Santa Casa…

*-*-*-*-*

Havia horas já que ele seguia o rasto invisível de Alma, pelas ruas onde ela andara, pelas casas de armarinhos, fechadas em cobertas ondeadas de ferro, pelas confeitarias onde se haviam sentado juntos. Não reparou que havia descido a máscara.

Ia agora rever o caminho amado da Rua Scuvero. Mas um homem e um dominó fizeram-no parar. O homem dizia-lhe:

– Senhor escultor, como vai? Então?…

Jorge reconheceu o crítico que o fizera destruir a estátua de Alma e lamuriou um bom dia sem sentido.

– Está se divertindo também? – continuou o outro. – Imagine que maçada! É proibido entrar nos bailes com máscara, depois de meia-noite e eu não posso desvendar esse mistério…

O dominó que recobria um corpo de mulher, permanecia direito, inteiriço. O crítico despediu-se. Jorge dizia-lhe num lamentoso sorriso:

– Sinto muito… Sinto muito… E pôs-se de novo a caminhar.

Bateram-lhe às costas com força. Ele teve medo. Voltara-se andando sempre. Era um sujeito de nariz enorme que chalaceava com senhoras, à porta de uma tabacaria.

– Que pierrot delicado!

Jorge, num súbito tumulto de rua, dera um encontrão numa mocinha de cabelos fartos e desfizera-se nervosamente em desculpas. E ela ria com outra comentando.

Chegou automaticamente ao Largo de São Francisco. Um acampamento bárbaro ocupava-o. Ao lado da estátua, no fundo, com as engrenagens fantásticas paradas, as boleias nuas, um imenso carro desdobrava-se na feérica composição de sua montagem. Pares de mulas adornadas esperavam, atadas às rédeas. Gente passava retirando-se. Táxis com colombinas de gazes nos toldos faziam voltas suaves; pierrots ornamentais, em adaga que se abria no tufo do pescoço, corriam galantemente; cavaleiros do préstito morto trotavam pelas pedras. Atrás do grande carro, outros carros destacavam-se, abandonados na desorganização final, processionais e imensos. Os últimos foliões desciam para o chão. E Jorge viu alguém agitar-se dentro de uma abóbora monstruosa. Estava de pajem. Tinha as pernas dela, sob o busto apenas diminuído. E a voz de Alma repetiu-lhe o nome inteiro.

Ela deixara o carro; andava pelas pedras com o mesmo andar… veio para o seu lado: ele teve um ímpeto de levar as mãos à cabeça e gritar. Quis sapatear ali, com os olhos engastados na que voltava. Era Milagre.

*-*-*-*-*

Parou no Piques. Bondes partiam apinhados. Subiu, andou. No centro, a festa terminava. Préstitos desciam ainda as ruas, devagar, na desorganização suada do fim, com boleias vazias, cavaleiros a pé, a caminho dos Avernos. A banda montada de um, remexeu um maxixe pulado, picadinho, bem marcado de sons.

Uma maltrapilha que ia conduzindo à cabeça um molho monstruoso de fitas coloridas, juntadas do chão, gingou. Riram em redor. Empurraram o monte de cá, de lá. O peso enorme vacilou, caiu – e ela ficou apatetada, olhando Jorge d’Alvelos que passava.

*-*-*-*-*

– Bruto destino! Ruídos surdos dentro da alma! São os últimos desaterros que estrondam… Mas por que me doem tanto os olhos? Parece que querem sair fora das órbitas…

Ele ia ao Palácio das Indústrias. Parou na ponte de pedra sobre o Tamanduateí que transbordava em lago, depois dormia em canal para as bandas da Luz. Havia olhos vigilantes de torres, fixos, longe. E lampiões e a cidade e estrelas no céu… E a correnteza embaixo, redobrada e murmurante.

O íncubo disse-lhe ao ouvido:

– Se te atirasses, ias sair na excrementeira da cidade.

*-*-*-*-*

Ao atravessar a paliçada, pela primeira vez o escultor leu numa tábua, sobre o portão, em letras pretas “Palácio das Indústrias”. Contornou a imensa e muda construção em acabamento. Penetrou. No corredor impreciso e largo, erguiam-se maquetes alinhadas como monumentos funéreos.

O pierrot preto subiu tateando as escadas. Entrou no atelier, riscando um fósforo.

Ao inesperado clarão vacilante, as estátuas tiveram gestos recuados de ameaça. Era a sua obra, desconhecida da cidade indiferente, que aplaudia lá em cima os monstrengos trepidantes de papelão pintado, nos carros grotescos.

Jorge procurou a esfinge de gesso que permanecia à cabeceira do divã, levantando, no plano do soco, uma velha lâmpada romana. Acendeu. A esfinge ficou dourada no rosto, enigmática, terrível. E a luz levantou sombras por detrás das estátuas crescidas no atelier.

Houve pelo quarto uma expectativa.

O artista sentou-se. Não temia o fantasma escorregadio que não ousava enfrentá-lo senão nos momentos de via-sacra voluntária, pelo calvário que Deus lhe instituíra. O íncubo não o levaria ao suicídio. Mas, num desânimo resignado, sentia que ia morrer, hoje talvez, amanhã… debaixo das rodas de uma carroça de rua, perdido nas suas lucubrações de predestinado, ou então na fatalidade de uma súbita paragem do estafado maquinário interior. Morreria, devia morrer…

Olhou o atelier que palpitava, à noite, nas horas de silêncio, toda uma vida inesperada de relevos que falavam, de sombras que se moviam. As estátuas, à luz morta da lâmpada, decuplicavam de ação misteriosa, de sublime egoísmo, de divinizado amor-próprio. O homem deixara de existir naquela oficina de criaturas alvas e grandes. O torso enorme do Fauno revirava-se, o joelho em ângulo agudo, erguendo a ninfa espedaçada, num desencadeamento de forças homéricas.

E a greda modelada parecia falar e denunciar mistérios de outra vida.

*-*-*-*-*

Lá fora, São Paulo rumorejava nos últimos instantes do carnaval.

Jorge d’Alvelos na sua magnanimidade de artista não se queixava da cidade que não o soubera compreender e salvar. Era preciso haver sacrificados como ele e como Alma, desastrados geniais, estupendos, que fizessem a glória sangrenta de metrópole atordoante, como outrora fora necessário haver mártires e santos para solidificar-se na planície calosa de Piratininga, o vilarejo de índios e jesuítas.

Naquele momento de lúgubre expiação, sentia que da sua história e da história de Alma, jorrava a certeza de que São Paulo era a nova América, na sua significação alta, possante e lírica.

A lembrança de Alma voltou-lhe como uma queimadura.

Apagou a luz com um sopro. E uma paz de cemitério desceu sobre as estátuas.

Deitara-se ao divã. O revólver gelado pesava-lhe na mão. E pensou de repente que seria fácil acabar com a vida. Apenas puxar o gatilho daquela arma… Se o fizesse!

Encostou o cano ao coração sobre a roupa, como a ensaiar. E divagava: – Se o fizesse… que diriam? que haviam de pensar?

Habituado ao escuro incerto da sala, viu o braço de seda, recurvo contra o peito, em posição de apontar. E fatalizado, imóvel, olhou a mão: estava dobrada sobre a arma, de dedos encarquilhados. Parecia de cera e de pano – mão de cadáver, mão de suicida.

Houve uma luz e um baque mecânico na noite. Uma surpresa azeda na boca… Começara qualquer coisa a gotejar-lhe entre a carne e a camisa. Era sangue, quis acender a luz, verificar… Mas a sua cabeça saía de si mesmo para realizar no escuro soluços circuncêntricos, desenrolando-se numa espiral monstruosa e levando numa acrobacia gelada o divã e os grupos quietos.

Estava deitado.

Moveu as pernas numa aflição de viver.

*-*-*-*-*

Torresvedras acordou quarta-feira, às quatro horas da tarde. Ergueu-se dando o dia por perdido. E na solidão em que morava numa travessa da Glória, esperou a noite chegar para sair.

Um vendedor de jornais passou, gritando. Comprou uma folha vespertina. Desdobrou-a à janela e leu de repente: “Madrugada de cinzas – Um estranho suicídio”.

Fora no Palácio das Indústrias. O músico comia as letras com os olhos. “Na antemanhã, circundado de lâmpadas esguias, o portento Florentino envolvia-se num grande manteaupierrot de seda e alvaiade”… O nome!… queria saber o nome… “o soldado que ouvira o tiro apitou arrebatado” “em decúbito dorsal, os pés voltados para uma estátua quebrada”… Era ele… Quis rasgar o jornal que se negava a confirmar tudo… E leu no fim: “Pierrot que ora repousava tranquilo no mármore do necrotério não era mais que um escultor brasileiro, de nome Jorge d’Alvelos, com trinta e dois anos de idade, recém-chegado de Roma. O motivo do trágico desatino foram amores contrariados”.

(Continua na próxima semana)

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