O general, o tweet e a brutalidade cordial

Como um cidadão sentado na sua privada matinal, a autoridade manda um tuíte e a coerção se consuma. A informalidade é distintiva do poder que não conhece freios, inclusive de linguagem

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Por Priscila Figueiredo

O general Villa Boas Corrêa ameaçou o Supremo Tribunal Federal, ou melhor, teria mandado um recado especial à ministra Rosa Weber referente à votação no dia seguinte contra o habeas corpus do ex-Presidente Lula, no que foi prontamente atendido. Não menos digno de assombro, porém, é o fato de essa ameaça velada ter ocorrido por meio de um tweet, vindo do integrante de uma instituição militar caracterizada tradicionalmente pela hierarquia, a disciplina e a formalidade. Na verdade, o general se inscreve no que parece o espírito geral da época, pois é preferencialmente pelo mesmo aplicativo que Trump responde com truculência à imprensa, a inimigos políticos, faz desmentidos sobre sua vida particular, decide a política internacional, move a máquina do imperialismo e o diabo. Não são declarações enviadas explicitamente àqueles que seriam seus verdadeiros destinatários, aos quais o magnata prefere antes se referir por eles, fazendo de conta que se dirige em princípio aos seus seguidores; mas, dada a ampla ressonância que seus enunciados – a própria Fala do Trono –  naturalmente obtêm, eles acabam por alcançar de fato os inimigos (muitos dos quais também estão “infiltrados” entre os seus fiéis, o que ele naturalmente sabe) e os alcançam na qualidade do que efetivamente são –  avisos, ordens, decisões, ameaças. Assim têm feito os nossos generais atualmente, fiados no fato de que terá grande repercussão um simples bocejo que deem através de qualquer uma dessas tecnologias sociais, e passam o seu recado sem que precisem marcar uma audiência com as autoridades a quem pretendem se dirigir, ou protocolarmente chamar a imprensa (embora, na qualidade de servidores na ativa do alto-comando do Exército, nem lhes caberia também fazer isso caso quisessem se expressar sobre assuntos políticos ou econômicos), ou, em suma, agir com o decoro previsto. Todo o procedimento é, poderíamos dizer, gravemente (para não dizer patologicamente) informal, e nem mesmo os pronomes de tratamento devidos são usados, até porque, como já foi dito, seus seguidores, a quem em princípio se dirigiriam em segunda pessoa, não seriam em princípio aqueles a quem de fato querem destinar sua mensagem. Quanto à falta de rodeios ou compostura comunicativa, muitos outros têm agido assim,  às vezes até mesmo recorrendo a interpelações diretas, como o faz Doria, que, semelhantemente a Trump, manda o desafeto ir encontrá-lo na esquina para acertarem as contas, ou usa o espaço do painel do leitor de um jornal para sugerir a um colunista que lhe desagrada, como André Singer – o qual tinha analisado, em termos estritamente políticos e na linguagem polida que lhe é habitual, as ambições de sua candidatura à Presidência — a ir passear em Curitiba, ou seja, a ir para a prisão. Não fora simplicidade ou espírito democrático, mas apenas  barbárie, indiferente a mediações, que levara Dória a se sujeitar ao formato de um mural de comentários para mostrar que não levava desaforos pra casa, ainda que provavelmente não tivesse sido colocado na fila com os demais leitores (pois é a fala de um chefe do Executivo). Mesmo considerando que outras eminências por vezes se manifestem nesse tipo de seção, parece inédito que dessa vez se tratasse de um prefeito, e prefeito da maior cidade do país. Mas ele não precisaria escrever um artigo, o que lhe exigiria tempo, ou o tempo de seu ghost-writer, e certa capacidade de generalização ou abstração para que, a partir do caso específico em que se sentira lesado, discordasse do ponto de vista do colunista e o fizesse apoiado em argumentos. Como não havia muito tempo a perder, bastava-lhe soltar publicamente um impropério, um “vai-passear”, uma palavra insultuosa, na qualidade de mero leitor de jornal ( ou será de cidadão ofendido?), e ele já se sentiria aliviado.  Assim o poder nos dava em espetáculo a trama de afetos primários ou birrentos que não parecia nem um pouco preocupado em esconder, quando na verdade teria um pouco mais de condições para isso já que não fora surpreendido ao vivo pela pergunta inconveniente de um repórter.

Do mesmo modo, a desembargadora que se referiu a Marielle Franco como um “cadáver comum entre outros” explicou depois, em vista das más repercussões de sua mensagem (decerto tão numerosas como as boas repercussões, que também houve), que ela estava apenas manifestando uma opinião como cidadã. Independentemente do conteúdo, que nesse caso é mortífero, a verdade é que também não poderia fazê-lo mesmo nessa condição, pelas mesmas razões apontadas no caso dos dignitários ainda em exercício das altas patentes militares, a não ser em âmbito privado – ou sob a forma de um “fluxo comunicativo” de natureza apenas debilmente pública, como conversa paroquial ou entre vizinhos — desde que não por whatsapp ou mesmo por um facebook com bons amigos, e isso simplesmente pelo potencial estrondoso de reprodutibilidade que possui a mídia digital. Seja como for, expressar-se como cidadã é expressar-se na esfera pública, ou ainda numa “esfera pública local”[1], o que supõe construção de argumentos racionais, formalização de opiniões, depuração de interesses particularistas etc. (desde que não se esteja falando em nome de lobbies). Mas o que chama especial atenção é que, nesse momento, a servidora do Estado mostra o quanto tem consciência do imperativo de informalidade próprio a essas tecnologias de comunicação. Estas são de fato favoráveis à expressão de (maus) impulsos e/ou idiossincrasias pessoais pela quase simultaneidade que propiciam entre produção e difusão da mensagem, pelo fato, ligado a essa sincronia, de o uso de protocolos não soarem naturais no ambiente digital, avesso a muitas mediações. Como o homem cordial de Sérgio Buarque de Hollanda, mídias como twitter parecem ter horror às distâncias (as quais assustam um bocado ao já velho e-mail). Sabendo isso, não necessariamente em teoria, a autoridade em questão usa-o como pretexto para dizer que não falava como desembargadora, como se, em outras palavras, admitisse: ora, não vou usar o meu twitter em expediente de trabalho, ou para dizer coisas sérias e dizê-las na qualidade de um desembargador. Twitter não é para isso! Ela tem razão, ou deveria tê-la. Ou seja: não se deveria falar por meio dele ou algo que o valha quando se ocupa um posto de desembargadora, general, Presidente da República,  assim como, ainda exercendo essas funções, também não caberia que seus ocupantes falassem como cidadãos na esfera pública em geral – e, na verdade, mesmo que não estivessem mais na ativa, suas mensagens não deixariam de ter ainda alguns resquícios, por assim dizer, auráticos porque já foram o poder máximo em sua jurisdição. Do mesmo modo, o que dissessem por intermédio dessas novas tecnologias não deveria ter nenhuma validade performativa, no sentido de que visasse a obter um efeito além da mera comunicação. Ora, mas seria impossível que seus enunciados não induzissem à ação, não tivessem eficácia prática imediata, e isso precisamente por virem de quem vêm; logo, precisamente porque seus emissores são quem são, estes deveriam discriminar mais do que ninguém a conveniência de usar uma tal ferramente comunicativa, avessa a forma, formalidade e fórmulas de cortesia, e adstrita tão-somente ao formato, mero espaço métrico, ou 140 caracteres, número que agora teria sido dobrado, talvez pelo valor imperial dos que passaram a usá-lo….

Mas toda essa ordem de preocupações não tem mais cabimento na verdade, pois quanto menor a mensagem, mais incisivo ou mesmo explosivo deveria ser seu conteúdo. Os tuítes em suas mãos são morteiros a expedir bombas, ou cápsulas de puro material bélico, que arruínam todas as distinções entre público e privado, mas também entre Estado e sociedade civil[2]. Como um suposto cidadão sentado na sua privada matinal, em mangas de camisa, como se dizia antigamente, ou mesmo nu, um chefe de Estado manda um tuíte, ou solta um pio (conforme a acepção original do termo em inglês, tweet, morfologicamente uma falsa onomatopeia, a indicar a vocalização de um passarinho), e faz as bolsas despencarem no mundo todo, ou então provoca a fúria de um imperador do outro lado do globo[3]. Bastara dedilhar uma mensagem relâmpago, às vezes infantilmente articulada, pois assim o estimula essa plataforma, que nivela todas as diferenças sociais e culturais a pretexto de democraticamente lhes dar expressão, mas é só a expressão de seus consumidores, que ela trata de adestrar em sua minúscula cela gráfica. De fato, isto é distintivo do poder que não conhece freios, inclusive de linguagem: basta que dê um pio, e a coerção se consuma. Mas em certo aspecto não há novidade em dizer que em geral as maiores brutalidades podem se acompanhar das maiores informalidades também, ou melhor, estas são prioritariamente o seu idioma. Não há informalidade ou sem-cerimônia que se compare à de uma bomba ou um drone.

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PS: Devo o título a Íris Kantor.

[1]Cf., de Sérgio Costa, “Esfera pública, redescoberta da sociedade civil e movimentos sociais no Brasil”, in Revista Novos Estudos CEBRAP, edição 38, março/1994.

[2] Quanto a esta última indistinção, não se trata da pressuposta por aquele setor intermediário, em princípio situado entre Estado e sociedade civil, o qual incluiria de associações participativas a partidos políticos. Cf. Id. ib., pp.45-46 (o autor, no entanto, problematiza essa noção de “esfera intermediária”).

[3]  Brecht e Benjamin, este especialmente no ensaio mais devedor de Marx no que diz respeito a sua posição quanto ao desenvolvimento das forças produtivas  materiais, sonharam com a possibilidade de uma apropriação, pelos trabalhadores, dos nascentes meios técnicos de difusão de massa, o rádio e o cinema – e mesmo puseram em prática suas possibilidades em alguns momentos –, os quais deveriam deixar de ser monopólio do fascismo ou de grandes empresas capitalistas. Mesmo assim Benjamin não deixou de observar como, mediante essas novas mídias, não só o artista, mas também a política mudava de natureza, de modo que sem elas teria sido impossível o desenvolvimento do totalitarismo. Receio que a ideia de uma adesão, por assim dizer, iluminista às tecnologias digitais como o twitter ou o facebook seja como subir uma escada rolante que desce, ou vice-versa. Será talvez puritanismo afirmar que essa tecnologia é regressiva em sua própria base, como talvez a considerasse Herbert Marcuse se estivesse vivo e cuja opinião muito provavelmente fosse a da impossibilidade de seu uso com fins de esclarecimento e libertação? Creio que não. Nós, se por vezes a usamos com esse fim, talvez estejamos apenas no inferno dos bem-intencionados, ou das almas cindidas, ou ainda dos imperdoavelmente ingênuos, certos de que não estamos respirando o mesmo ar que a mercadoria nos dá a todos e todas (para que não haja dúvidas, também “estou no facebook”). Para uma análise contundente dos aspectos constitutivamente regressivos do facebook, v., de Silvia Viana, “Barbárie: compartilhar”, in Le monde diplomatique, ed. 121, 2017.

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