O Brasil do golpe à luz de Gramsci

Baseada no mote “Já fizemos e faremos de novo”, discurso da esquerda pode ter-se tornado repetitivo e vazio. Faltam ideias generosas, como o resgate da democracia e a reinvenção da política

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Por Luiza Dulci | Ilustração: Kazimir Malevich, Camponeses (1930) 

Antonio Gramsci, importante teórico marxista e fundador e militante do Partido Comunista Italiano, viveu num dos períodos mais efervescentes do século XX, os anos 1920, quando os movimentos operários viviam o auge da sua organização política em diversos países do continente. A esperança revolucionária, no entanto, foi derrotada pela ascensão dos movimentos fascistas, dos quais o próprio Gramsci foi vítima direta. Na prisão, dedicou-se àquela que é sua obra mais conhecida, Os cadernos do cárcere, escrita, portanto, no calor do fracasso revolucionário.

Décadas mais tarde, em 1987, à luz das ideias gramsciana, o sociólogo Stuart Hall[1] publicou um breve artigo intitulado Gramsci and us (Gramsci e nós), no qual buscava compreender as bases de apoio ao regime de Margaret Thatcher. Ao invés de esperar respostas para as questões de seu tempo, Hall visitava o pensamento gramsciano para inspirar-se nos questionamentos lá presentes. Que questionamentos são esses? Gramsci investigou a natureza e a composição da direita; o processo que propiciou o encontro de forças políticas distintas, reunidas no que ele chamou de bloco histórico e que resultou na constituição do então novo cenário conservador.

A incoerência aglutinadora do discurso conservador

Stuart Hall empregou as ideias de Gramsci para analisar o cenário a partir da década de 1970 até 1987, período em a direita passou a viabilizar um novo projeto, uma nova agenda política e, fundamentalmente, ideológica. Como sabemos, a nova agenda se contrapunha aos pilares que sustentavam o Estado de Bem Estar Social inglês: a macroeconomia keynesiana e o compromisso de classe entre capital e trabalho. Hall escreveu, portanto, às voltas com um momento de crise, sobre o qual as diversas forças políticas se movimentavam. E a experiência histórica nos ensina que os momentos de crise costumam ser bem aproveitados pela direita, com a ampliação de seu alcance na sociedade. Colocam-se, pois, questões como: o que são os movimentos de direita e quem são eles? Quais interesses eles representam?

Para Hall, aí residia (e reside) o pecado da esquerda, uma vez que julgamos saber, de antemão, quem são eles, quando, na verdade, não o sabemos. Ao encararmos a direita como algo homogêneo, deixamos de captar aspectos-chave de sua constituição, estratégia e repertório de atuação. De fato, não é trivial decodificar um segmento que atua de forma incoerente, reúne interesses diversos, mobiliza discursos variados e contraditórios para públicos também variados. O ideário por eles mobilizado dirig-se a públicos tão distintos quanto o grande capital internacional, as burguesias nacionais, os médios e pequenos empresários da cidade e do campo, as classes médias e até mesmo a classe trabalhadora e os pobres.

Enquanto a esquerda subestima o alcance de uma ideologia incoerente, a direita sai na frente e mobiliza discursos fáceis, que falam aos ouvidos das pessoas. É o que Gramsci chamava de ideologia orgânica, que articula diferentes sujeitos, identidades, projetos e aspirações. Em vez de refletir a unidade na diferença, a ideologia orgânica constrói a unidade na diferença – daí sua enorme potência.

Resgato este texto de Stuart Hall porque sua análise das razões da popularidade do governo Thatcher nos ajudam a pensar o Brasil de hoje. Ele se perguntava: Como um projeto que visa desmontar direitos e reverter conquistas sociais históricas se viabiliza politicamente?

As explicações são tão variadas quanto controversas, podendo ser menos ou mais economicistas, menos ou mais culturalistas (o cinquentenário de Maio/1968 não nos deixa relegar a importância do assunto). Mas o fato é que o apoio popular ao governo Thatcher não tinha a ver com suas ações no plano das políticas públicas e com a materialidade da vida cotidiana. Ao contrário, sua fortaleza estava na promoção da agenda liberalizante e na construção de um ideal modernizador, que se dirigia aos temores, às ansiedades e às identidades perdidas da população inglesa. Enquanto seu governo empregava a gramática do imaginário coletivo e das fantasias inglesas, dizia Stuart Hall, a esquerda via-se apegada aos argumentos das políticas públicas e das condições da reprodução social do dia a dia.

Esse ponto é chave para o argumento aqui pretendido. Vivemos num Brasil dividido. O projeto da esquerda venceu os últimos quatro pleitos eleitorais e foi tirado do governo em um controverso processo de impeachment da presidenta Dilma, que levou a uma guinada na agenda à direita. (Não desconsideramos, portanto, a diferença radical entre Inglaterra e Brasil, uma vez que Thatcher venceu eleições e Temer não). De 2015 para cá vimos o que para muitos era inimaginável: o desmonte do Estado brasileiro, a extinção de diversas políticas públicas, a reversão de legislações e normas ambientais, educacionais e trabalhistas, alterações constitucionais drásticas e a entrega do patrimônio (empresas e recursos naturais) nacional ao capital internacional. O conflito de classe se aprofunda a cada dia e é visível a ascensão de grupos de direita, muitos dos quais de ideologia e repertório propriamente fascista.

Se a percepção do golpe – não necessariamente em relação à tramitação formal, mas em relação à agenda – já é sentida pela maior parte da população, como explicamos a sustentação ou a sobrevida do atual governo Temer? Como explicamos a vitória de sujeitos que não possuem sequer cerimônia para aflorar suas posições antipovo? E mais: como explicamos a adesão popular a candidaturas que encampam projetos conservadores e mesmo fascistas ao Executivo e ao Legislativo? Como isso é possível considerando o cenário de aumento da pobreza e da desigualdade, do desemprego e da informalidade, de redução dos salários e do crédito, do corte de direitos sociais, do aumento da violência no campo e na cidade e da repressão aos movimentos sociais?

As respostas, apontaram Gramsci e Stuart Hall, devem ser buscadas na ideologia mobilizada pela direita, que visa tanto construir uma unidade alternativa, ainda que incoerente, aos projetos progressistas, quanto atingir seus núcleos de resistência .

O capitalismo contra a democracia

Se por um lado é possível identificar semelhanças entre a Inglaterra dos anos 1980 e o Brasil dos dias de hoje, por outro lado sabemos que há diferenças marcantes. Foucault diagnosticou a emergência da nova ontologia neoliberal – vis a vis o capitalismo liberal de até então – ainda em 1978/79, em suas aulas sobre o nascimento da biopolítica[2]. O que mudou de lá para cá? Quais novidades históricas importam? Quais os efeitos do aumento da desigualdade e da concentração de poder dela decorrente? Como os 99% se expressam politicamente em cada país? Quais os efeitos da distopia produzida e difundida pelo neoliberalismo sobre a aposta popular na democracia e sobre seu potencial transformador?

A esperança de que a crise de 2007/8 pudesse solapar ou ao menos enfraquecer a hegemonia neoliberal não se concretizou. Ao contrário, vimos o aprofundamento da lógica rentista sobre as diversas dimensões da vida humana e a guinada política conservadora em boa parte do mundo, em muitos casos apoiando-se em candidaturas de “fora da política” em países como Inglaterra, Estados Unidos, França, Argentina, Colômbia e tantos outros. O Brasil integra esse quadro global.

Ainda que a (in)compatibilidade entre capitalismo e democracia não seja uma discussão recente, o cenário atual é considerado dramático. À medida que a racionalidade neoliberal se estende do mercado para o Estado e para a sociedade, governos e pessoas são estimulados a pensar e a agir como empresas, buscando a maximização de seus interesses em meio a um ambiente competitivo. Valores como a igualdade e a garantia dos direitos das minorias perdem o sentido e a própria crença no ideal democrático é fragilizada. São duas as reações mais comuns diante deste cenário: o desespero por conta do que seria um apocalipse político; e o desligamento e a descrença na política. O que vem a seguir? Estão abertos os espaços para reivindicações e clamores populares por outras formas de organização política que vocalizam promessas radicais mais assertivas, quase sempre de ordem autoritária – que, diga-se de passagem, são recorrentes na história brasileira.

O ponto que defendo neste texto direciona-se à urgência de repensarmos nosso discurso na luta política no Brasil de hoje. O tema das políticas públicas, do dinheiro no bolso, deve seguir sendo mobilizado. No entanto, ele é insuficiente para conquistar corações e mentes — ou não estaríamos onde estamos, dado estrago já feito pelo governo golpista. Tampouco podemos restringir nossa linha argumentativa à ideia do “já fizemos e vamos fazer de novo”.

Precisamos trazer à baila questões que dialoguem com as subjetividades das pessoas e que sejam capazes de despertá-las para um projeto político maior, ideologicamente definido, onde caibam sonhos e utopias. Precisamos atualizar e (re) construir nosso projeto recuperando um dos anseios que motivaram a criação do PT: transformar a forma e o conteúdo da política – lembrando que forma também é conteúdo e vice-versa. A prisão de Lula é um ponto de inflexão que abre espaço para essa guinada. Cabe a nós expor publicamente as motivações de sua prisão, de maneira que cada cidadã e cidadão possa refletir sobre o sentido e os desdobramentos desse fato político sobre suas vidas e seus projetos de vida.

Essa não será uma tarefa fácil, pois um dos efeitos do avanço do neoliberalismo é esvaziar os espaços de contestação existentes na democracia e minar a própria crença das pessoas na política. A boa notícia é que o processo não está dado. Ao contrário do que preconizam análises marxistas mais esquemáticas, onde a política é uma arena que apenas reflete identidades coletivas já dadas, Gramsci mostrou-nos que ela é uma arena de construção de interesses e de identidades coletivas. O resultado das lutas políticas está aberto e nos convida à luta. Como nos orientou Lula, nossa tarefa é construir a primavera.

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[1] O sociólogo Stuart Hall (1932-2014) foi um dos pioneiros do campo dos estudos culturais e fundador da famosa revista acadêmica de esquerda, New Left Review. De origem jamaicana, Hall construiu sua vida acadêmica majoritariamente na Inglaterra, até seu falecimento em Londres.

[2] 3O significado e a singularidade do que Foucault chama de biopolítica está ligado à imposição da racionalidade neoliberal não propriamente pela força, mas pelo discurso, pela disciplina, pela norma. E quando necessário, quando esgotados esses recursos, pelo emprego da violência explícita.

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3 comentários para "O Brasil do golpe à luz de Gramsci"

  1. josé carlos g dos santos disse:

    Falando em rapper me vem a mente entrevista do Mano Brown.” O governo Lula deu condição do povo ter as coisas e depois desse governo o povo quer a polícia para defender essas coisas. O cara se torna um cara de direita, defende aqueles valores velhos que fudeu ele (sic). Isso refletiu contra o preto”. (na sequencia fala sobre índice de homicídios nas Capitais do Nordeste que facilitaram o surgimento das facções.) “Se era difícil no governo Lula, agora então está mais difícil.” “Morre preto pra caralho”Já está em Brasília o crime organizado. As facções vão se organizar no Brasil todo. Se organizam para se proteger e para sobreviver . Você pega um cara que é abandonado,s sem família sem ninguém, acolhe ele, dá um nome pra ele, dá uma sigla pra ele defender, uma família pra defender ele e ele defender, ele não valoriza o cara?”
    Em outro momento da entrevista ele se refere a repulsa do discurso político pala população. A descrença em ideias prontas e a recusa de qualquer tentativa de ‘direcionamento’ de direita ou esquerda. …”Cegueira e ambição . Está todo mundo ambicioso. Tanto a esquerda quanto a direita” … “Guerra psicológica. ninguém acredita em mais ninguém não… – Parece que é tudo xaveco.- O povão quer segurança. Daqui a pouco vc vai ver o que o povão vai pedir. Vai pedir o exercito e aí já era…

    Se apresenta como um grande desfio desvendar o sentido de emancipação dado por aqueles que já encontraram uma melhora nas condições de sua sobrevivência , ou seja, ir além das “políticas públicas e do dinheiro no bolso”. Os movimentos identitários e culturais respondem bem a esse sentido, mas escapam às propostas totalizantes que a esquerda ainda está atrelada. A segurança não só física como psicológica tem encontrado respostas mais imediatas no campo do conservadorismo. A insegurança do neoliberalismo econômico e as perdas de direitos trabalhistas não afetam de maneira significativa as grandes massas já acostumadas ao não atendimento dos seus direitos. À luta diária por sobrevivência, quando já assimilada, segue a necessidade da proteção e do pertencimento. – Eu acessei ao mercado de consumo, logo vou lutar para continuar nele. – É um relexo da ascensão via consumo. Logo o próximo passo seria a luta por proteção e de pertencimento a uma condição social digna que lhe garanta a própria existência. Ou seja, a garantia de que a batalha diária pela sobrevivência não será em vão. Esse seria o maior desafio. Por outro lado, descrença na política, a disseminação do medo, da violência física, corporal, leva ao flerte com soluções mais conservadoras e até as de cunho fascistas e abre espaço ainda para a falsa esperança das teologias meritocráticas que ocupam esse vácuo. Nesse sentido me parece que um “projeto político maior, ideologicamente definido, onde caibam sonhos e utopias” passa por algo que ainda estamos distantes.

  2. Neto disse:

    Esse texto todo dá para substituir pelo seguinte:
    A esquerda hoje comprou a cartilha das ongs, direitos humanos, anistia, onu, que são agendas longe dos anseios populares e contém conceitos fabricados em laboratórios.
    A direita de hoje é a esquerda de ontem.

  3. gustavo_horta disse:

    A DITADURA NÃO TEM NOITE DE ESTRÉIA – O maior truque do Golpe é fingir que ele mantem viva a Democracia
    > https://gustavohorta.wordpress.com/2018/05/08/a-ditadura-nao-tem-noite-de-estreia-o-maior-truque-do-golpe-e-fingir-que-ele-mantem-viva-a-democracia/
    … …Emicida pôs o dedo na ferida, sondou o nó nevrálgico do problema: a Ditadura não tem noite de estréia, nem anúncio publicitário no telejornal que nos prepare para o dia de sua vinda. “Vai achando que ditadura é tipo horário de verão que tem comercial avisando a hora que começa, vai…”. As barbáries pretéritas podem retornar como um bumerangue. Seria ingênuo e falacioso acreditar na História como progresso automático rumo ao melhor. Além disso, as Ditaduras Possíveis do Porvir não serão previamente anunciadas, avisadas aos cidadãos com a antecedência com que nos alertam sobre os temporais e as frentes-frias na previsão do tempo.
    O rapper foi direto ao ponto: hoje em dia, a Ditadura viria sem travestida de Democracia, fazendo pose de Constitucionalista, e teria entre suas hordas de defensores aqueles que enxergam em Moro um juiz-herói ou em Bolsonaro um… …

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