No "trote" violento da Medicina, lições de Freud e Foucault

Humilhações na calourada expõem formação que vê o outro como objeto de gozo. E papel do Médico associa-se ao controle e esvaziamento da vida

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Humilhações na calourada expõem formação que vê o outro como objeto de gozo. E papel do Médico associa-se ao controle e esvaziamento da vida

Por Christiana Oliveira

Após uma onda de ódio e preconceito, ligado às eleições, nos deparamos com denúncias aterrorizantes, que seguem a linha da intolerância e demarcam o que sempre existiu – e que foi mantido no silêncio por anos, como algo inexistente. Na última terça-feira, 11/11, a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) realizou uma audiência sobre as denúncias feitas contra os universitários da Faculdade de Medicina da USP. Rompido o lacre da impunidade, tornaram-se públicos segredos sórdidos: assédios, estupros, preconceito e humilhação são as marcas principais. A universidade, que sempre soube das acusações, não se deu o trabalho de investigá-las, justificando a importância de “não manchar a imagem da instituição”¹.

Diante disso, questiona-se: de que maneira esses alunos, que passaram por uma educação de qualidade e são tidos como a elite intelectual brasileira, chegaram a esse nível? Ou, então: de que modo ocorrerá o encontro do futuro médico com seu paciente, se o outro é visto como objeto de gozo?

A escolha

Todo sujeito tem uma formação, e essa constatação não se reduz a um curso universitário, por exemplo, mas sim, aos desejos que motivaram as escolhas individuais de cada um, e que constituem esse ser. De maneira geral e abrangente, há o reconhecimento social da profissão. “Médico”, com letra maiúscula; há muitas associações que elevam a profissão a um ideal a ser assumido, e muitas vezes venerado. Além disso, envolve o prestígio e a promessa do retorno financeiro. Ou seja, há quem se sinta motivado (ou pressionado) a seguir tal carreira, deixando de lado a empatia com a profissão, o cuidado com o outro e o reconhecimento do sofrimento alheio.

A partir dessa escolha, vemos as pressões de uma formação objetificada, já que o sujeito fica inundado de metas e se torna alvo de humilhação. Os cursinhos preparatórios ditam o conteúdo a ser engolido e reproduzido pelos alunos, submetidos ao vestibular maçante e desigual. Tudo o que pode desviar a atenção desses estudantes tem que ser descartado, havendo uma inversão drástica entre as relações interpessoais e as horas de estudos. Com isso, há o incentivo ao individualismo como fortaleza: o outro passa a ser uma ameaça, que pode tirar a tão sonhada vaga na faculdade – ou transformada em sonho, através de toda essa neurotização criada.

Vemos, em suma, um aluno fragilizado, com seu narcisismo abalado. Porém, essa fragilidade é degolada e negada tanto quanto possível. Se o objetivo final não é conquistado, ele é tomado literalmente como um bosta, descartável, que tem que se reaver com o fracasso. Esse ciclo pode durar anos. E quanto mais se vive nessa objetificação, mais o sujeito pode aderir a essa postura, passando a olhar o outro dessa forma. Só há o reconhecimento de seus esforços, quando ele vence o vestibular: assim, ele passa a ser vangloriado, aplaudido, e lentamente o ego fragilizado começa a se restabelecer numa velocidade brutal, sendo bombardeado de investimentos. Há o tão sonhado reconhecimento.

Há de se lembrar que a reflexão se refere aos alunos que cometeram os delitos (vemos, por outro lado, alunos com uma postura distinta²), e que se mostram tão preocupados com a própria imagem quanto a faculdade. Ou seja, tais alunos identificam-se com essa perspectiva narcisista; narcisismo esse que sustenta o dos alunos, que mantiveram as denúncias silenciadas em nome de algo maior: seu interesse próprio.

Ao resgatar Freud (1914), temos que o narcisista busca, acima de tudo, proteger-se e se satisfazer; e para isso, ele nega a alteridade. O que é diferente, e, portanto, menor que ele, é descartável – e ele o faz porque o outro pode retirá-lo de sua posição onipotente, trazendo-lhe receio de perder seu lugar alcançado. Toda crítica que chega aos seus ouvidos é negada tanto quanto possível. Todos nós temos a marca do narcisismo, já que faz parte de nossa constituição. Uns mais, outros menos. No entanto, o que salta aos olhos é esse empoderamento que massacra o outro, um narcisismo perverso e exacerbado.

O papel assumido

Já na faculdade, os alunos são recebidos como os heróis da tragédia. Há, muitas vezes, uma aproximação da figura do médico com Deus; os médicos possuem o poder da cura, o dom da vida na palma das mãos. Como não reconhecer esse ser magnífico, que afasta nosso grande temor, que é o de encarar a finitude? Ou seja, como não ceder aos caprichos desse vencedor fálico, onipotente?

É nessa mesma ordem que muitas das denúncias ligadas a abuso sexual relataram essa postura: “Deixa de ser chata, eu sei que você quer”³. Temos, que a onipotência requer a submissão, já que retém o poder. Como seria possível o desejo do outro não incluir esse ser em destaque? Com o receio da recusa e da humilhação serem revividos, o sujeito regride, e aplica o que bem aprendeu: a objetificação e a violência. Não há espaço para o outro, para a escolha, há a submissão e a opressão.

Vemos, com as contribuições de Foucault (1980), que essa lógica tem aflorado cada vez mais. O médico, que antes se implicava no cuidado das doenças, hoje passa a ser o fiscal da saúde. É ele quem controla, através dessa variável, quais as condutas viáveis para a manutenção do bem estar. Desse modo, o médico se torna uma figura determinante para o aperfeiçoamento do biopoder. Sua formação, ligada a onipotência, e portanto ao poder, replica-se em sua atuação. Todo o cuidado ao sujeito doente é descartado em detrimento ao mantimento da vida – vida esvaziada e objetificada, através da exclusão da subjetividade e medicalização desenfreada.

Se nos voltarmos para a filosofia clássica, vemos que Aristóteles já nos atentou sobre a não dicotomização entre corpo e mente. No entanto, isso se perde na medida em que a classe médica fortalece as alianças com a indústria farmacêutica. Aliança essa que reinventa os conceitos de normal e patológico, no intuito de manter a dependência e a alienação dos sujeitos, instaurando o domínio sobre seus corpos. O saber depositado na figura do médico lhe cai bem, já que saber é poder. Ou seja, o saber determina o entorno e faz com que o outro, que não o possui, se submeta a ele.

Portanto, como desenvolver a empatia com o outro fragilizado, se desde a formação o sujeito tem suas próprias fragilidades refutadas? Como podemos repensar a educação, a formação pessoal e o social que nos toma? Afinal, permanecemos no raso se mantemos nossa crítica pautada na culpa, direcionando-a a um único agente. Agindo assim, reafirmamos outra dicotomização, entre o ser e o social, que é impossível, se considerarmos a dialética.

Referências Bibliográficas

¹ Medicina da USP registra 8 casos de estupro e 2 contra homossexuais, aponta MPE. Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/medicina-da-usp-registra-8-casos-de-estupro-e-2-contra-homossexuais-aponta-mpe > Acesso em: 13 Nov. 2014

² Felipe Scalisa: A face oculta da medicina. Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/11/1547277-felipe-scalisa-a-face-oculta-da-medicina.shtml > Acesso em 13 Nov. 2014

³ Violência sexual, castigos físicos e preconceito na Faculdade de Medicina da USP. Disponível em http://www.brasildefato.com.br/node/30483 > Acesso em 11 Nov. 2014

ARISTÓTELES. De Anima. São Paulo: Editora 34, 2006.

FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

FREUD, Sigmund. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

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10 comentários para "No "trote" violento da Medicina, lições de Freud e Foucault"

  1. vicente trindade disse:

    O texto desnuda uma realidade social que acontece, não somente no Brasil, mas em toda a sociedade capitalista. O empoderamento do saber pelos que detêm os meios de produção. A coisa fica mais simples quando vemos as manifestações de rua serem tomadas pelos “coxinhas” e as manifestações contrárias às cotas sociais, principalmente pela casta médica, que renegam seu juramento de “FAZER A MEDICINA PARA SALVAR VIDAS E NÃO PARA FAZEREM DINHEIRO”.

  2. Leila disse:

    Você deveria ser mais específica quando fala “os filósofos”, uma vez que dificilmente algum concordou integralmente com a argumentação de outro.

  3. alexandre lacerda disse:

    Acho que se a senhora leu Freud e /ou Foucauld , não interpretou corretamente o que leu. O estudante de medicina apresenta aspectos em comum com os jovens de sua idade. Entre esses aspectos a violência e as relações de poder em que estão envolvidos. Bem mais próximo do fim do curso inicia a mudança de comportamento exigida para o satisfatório exercício da profissão ( já amadurecido pelo processo de envelhecimento e contato com a realidade profissional). Não existe nenhuma area de atividade humana isenta de maus profissionais , inclusive a de psicologia.

  4. Roberto Ferbo disse:

    Não entendo seus primeiros esboços críticos. O artigo parece claramente partir de preceitos gerais constitutivos do gênero sujeito para só então enviesar-se à problemática da Instituição Médica e do curso de medicina da USP — e ainda sim alternando entre perspectivas amplas, como a noção de biopoder e da relação saber-poder; e estritas, que são justamente o modo como os conteúdos das perspectivas amplas são articulados pela instância analisada. Nesse sentido, trata-se menos de negar ações de tônica símile por parte de outros cursos e instituições do que analisar como circulam pelos sujeitos os elementos que constituem sua própria opressão e do outro por meio de seu engajamento como efeito e agente da Clínica, de modo que implicitamente isso nos cria também uma sensibilidade para aplicar esse olhar sobre outros objetos.
    Achei bastante contundente sua questão acerca da dissidência de certos indivíduos em relação ao fluxo do poder, e penso que talvez devamos considerar, como possível contraponto, que as imbricações do poder compõem e convergem aos sujeitos de tantas e sutis maneiras que mesmo nas tentativas dissolutórias que estes possam impor a si mesmos enquanto autoridades (ou seja, como atores legítimos de uma instituição) se formulariam bloqueios ou seus ataques como elementos do interior se sufocariam. Com efeito, só subvertendo sua autoridade, isto é, se pondo à margem e estabelecendo um quadro crítico oposto a si, se conseguirá, em contiguidade, transgredir à tendência homogênea da episteme médica. E são os transgressivos de tal modo inversamente proporcionais à tendência que em última instância sua postura valerá unicamente para sua auto-emancipação e para os atingidos pela prática das sua “fisiologia marginal” — embora haja possibilidade dessa se expandir e ganhar terreno teórico, como, se não me engano, fez Lacan em relação a Freud.
    Enfim, sobre seu último parágrafo, creio que uma nova leitura do texto talvez a esclareça. Quero dizer, parece bastante claro que para a autora o que leva os indivíduos às ações de violência e objetificação não é propriamente o genérico nível educacional, mas a dinâmica que potencializa certas propriedades da “natureza humana” e que envolve o percurso que leva a ele. A maioria não faz o mesmo porque as dinâmicas são difusas e diversas.
    Por minha vez, tenho algumas dúvidas em relação às ideias que o texto tenta fazer confluir, mesmo que não diretamente. A noção de “exclusão” do sujeito por uma instituição, assim como premissas psicanalíticas (dado que a Psicanálise também será alvo dos desnudamentos críticos de Foucault), parecem-me um tanto anti-Foucaultianas, na medida em que o ‘filósofo’, pelo que percebo, vê o sujeito como síntese do poder, como um efeito e um agente do poder, de modo que excluí-lo seria uma espécie de auto-sabotagem, não? A autora parece enxergar o próprio sujeito como possuidor de algo que escapa ao poder, mas isso talvez seja um equívoco em termos de Foucault, na medida em que o que está além é algo outro que não um sujeito, é o que dribla à estabilização e delimitação assujeitadora do ser, é o que percorre subterfúgios extra-normativos; que não se diz e não cria lógicas… São, contudo, questões dispersas e que só se tornam mais ou menos válidas se considerar uma certa ambiguidade nas colocações, cujas são precisadas pela autora o suficiente pra não incitá-las espontaneamente.

  5. Luciana disse:

    Sim, existem bons médicos, mas o que pude compreender foi que o resultado de um sistema que torna herói aquele que não deveria ser herói, mas um instrumento social de manutenção do bem estar ( e é isso que o médico é) pode não acabar bem, pode acabar por confundir a cabeça daqueles que usaram todo o tempo para vencer a batalha do vestibular é tempo nenhum para se aprender a ser um ser social.

  6. Ana disse:

    Acho errado relacionar todo esse egoismo apenas ao curso de medicina. Esse é um problema da sociedade por inteiro, não só de alunos do curso. Além disso, esse tipo de trote é muito mais de carater da universidade. Estudo medicina em uma faculdade renomada e em momento algum os veteranos de minha instituição me humilharam. Aliás, eles ajudam muito.

  7. margot disse:

    Generalizações à parte … perversos também se profissionalizam; alguns se formam em Medicina.

  8. Jane Oliveira disse:

    A reflexão que se propõe é interessante, mas o texto é exagerado, para não dizer apelativo, e acaba caindo nas próprias contradições que pretende denunciar. Primeiro, porque tenta convencer pela emoção, pela comoção de casos que vieram a público; sem se dar conta que o mesmo se passa em inúmeros outros cursos e instituições. Aliás, diria até mais, trata-se de um problema social (isto é, a tentativa de submissão do outro a nossos desejos sejam de que natureza forem) que a tal “civilização” não conseguiu suprimir. Segundo, porque generaliza todos os profissionais de um seguimento a partir de um fundamento (suposto) de homogeneidade cultural em relação a medicina moderna. Não querendo assumir uma dicotomia entre o indivíduo e a sociedade, acaba por coincidi-los, fazendo propaganda, sem querer, do narcisismo (que se trata do não reconhecimento do limite entre o eu e o não-eu).
    É óbvio que o indivíduo e a sociedade não são opostos, mas nem por isso são idênticos. São diferentes. E é por isso que há inúmeros estudantes e profissionais da medicina que não tem nada a ver com a crítica proposta. A discussão seria mais produtiva se se tentasse compreender ou pelo menos propor questões do porquê determinados indivíduos querem subjugar outros. Isso não tem a ver com o grau de educação que os indivíduos possuem, como o texto coloca. Por isso, está para além da prática da medicina. Seria da “natureza” humana? Então por que a maioria não faz o mesmo?

  9. egle elizabeth siquera disse:

    Os filósofos já se referiam aos médicos, como “os bárbaros”.

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