Infâmia: o quem-é-quem da burguesia brasileira

Onze meses após o golpe, país afundou em recessão e retrocessos. Não se vê, entre as elites, o menor arrependimento ou intenção de alterar o rumo. Por que?

Paulo Skaf, presidente da Fiesp, à época dos patos. Hoje, implicado em delações da Odebrecht, ele sumiu...

Paulo Skaf, da Fiesp, à época dos patos. Hoje, implicado em delações da Odebrecht, ele sumiu…

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Onze meses após o golpe, país afundou em recessão e retrocessos. Não se vê, entre as elites, o menor arrependimento ou intenção de alterar o rumo. Por que?

Por Igor Fuser

O golpe de estado de 17 de abril de 2016 atropelou as ilusões de quem acreditava nas virtudes infinitas da política de conciliação de classes – a ideia de que seria possível superar o apartheid social e o subdesenvolvimento no Brasil sem confronto com as elites dominantes, mas apenas por meio do crescimento da economia. No pós-golpe, essas mesmas elites demonstram plena convicção de que agiram corretamente, em defesa dos seus interesses.

Tal como ocorreu em tragédias históricas anteriores, como o golpe de 1964, o campo progressista discutirá ainda por muito tempo os fatores e as circunstâncias da derrubada de Dilma Rousseff, a começar pelos motivos da espantosa passividade das camadas mais pobres da população, as mais beneficiadas pelos governos liderados pelo PT.

Outro traço marcante no golpe de 2016 – tema da presente coluna – é o alto grau de coesão que as classes dominantes demonstraram na agressiva ofensiva contra o governo legítimo.

Com a óbvia exceção dos empreiteiros da engenharia pesada, enrolados na Operação Lava Jato (que claramente inclui entre seus objetivos a destruição desse setor estratégico da economia nacional), o que se viu na mobilização golpista foi um verdadeiro quem-é-quem da burguesia brasileira.

Lá estavam, unidos pelo “fora Dilma”, os banqueiros, os barões do agronegócio, os magnatas da mídia, os caciques da indústria brasileira remanescente, a fina flor do “PIB” nacional de mãos dadas com os grupelhos fascistas, os políticos picaretas e os pit bulls do Judiciário. Não faltou nem mesmo a rede de lanchonetes Habib’s, hoje tristemente famosa pela morte de um menino numa de suas lojas, que deu um desconto especial aos clientes que comparecessem aos atos pró-impeachment.

Na vanguarda, para eliminar eventuais dúvidas sobre os interesses de classe em jogo, marchava o patético pato da Fiesp. Justamente a Fiesp, aquela mesma entidade que, tradicionalmente, é vista como principal porta-voz de uma burguesia brasileira, “interna” como dizem alguns teóricos. Por esse termo se costuma designar um segmento da classe dominante supostamente autônomo e portador de interesses próprios, contraditórios (dizem) com as preferências do imperialismo estadunidense e dos seus aliados no país.

De acordo com essa teoria, que não se confunde com a fé ingênua da cúpula ex-governista na conciliação de classes, as gestões presidenciais de Lula e Dilma seriam a expressão política de uma “frente neodesenvolvimentista”, articulada em torno de uma “grande burguesia interna” que estaria gerindo o país em aliança com a classe trabalhadora e em conflito com uma chamada “burguesia associada”, neoliberal e pró-imperialista.

Enquanto o primeiro grupo burguês teria o foco dos seus interesses voltado para o mercado interno e a expansão produtiva, o segundo grupo agiria a serviço dos interesses externos, do bloqueio a qualquer tipo de desenvolvimento autônomo.

A “grande burguesia interna” incluiria os maiores grupos econômicos de capital nacional em todas as áreas, desde o agronegócio até empresas financeiras como o Bradesco e o Itaú, gigantes empresariais como a JBS Friboi, a Votorantim, a Ambev, a Gerdau e a Vale, os grandes grupos de ensino e saúde privados, além, é claro, dos colossos da construção civil – Odebrecht & cia.

Essas e outras empresas, favorecidas com linhas de crédito e todo tipo de apoio oficial, amealharam, de fato, lucros fabulosos no ciclo de governos progressistas. Porém em momento algum mostraram qualquer compromisso ou apoio ativo ao projeto político liderado pelo PT. Aceitaram todas as benesses, pressionaram (em geral, com sucesso) por vantagens setoriais aqui e ali. Mas no campo político se limitaram, nos melhores casos, a tolerar os governos “de esquerda” como uma extravagância temporária numa trajetória histórica de cinco séculos de poder irrestrito da elite dominante.

Houve quem encarasse essa postura pragmática como expressão de uma sólida aliança de classes, o que explicaria a relativa estabilidade política naquele período, apesar da permanente campanha midiática anti-PT e anti-governo.

Quando surgiu a oportunidade, a burguesia agiu em bloco para golpear a democracia. Se alguém ainda tem alguma dúvida, recomendo que leia a bela reportagem da jornalista Aline Maciel, da Agência Pública, sobre o envolvimento ativo das entidades representativas da indústria brasileira, em nível nacional e nos estados mais importantes, para pressionar os parlamentares indecisos nas vésperas da votação na Câmara dos Deputados (25/08/2016).

Muita coisa aconteceu nos onze meses que se passaram depois daquele dia de infâmia. Ministros do desgoverno golpista caíram e foram trocados em meio a denúncias de corrupção. Um deles chegou a comparar o núcleo do poder político em Brasília a uma suruba. A economia mergulhou de vez na recessão. A soberania nacional está sendo desmantelada e a imensa riqueza do pré-sal entregue de bandeja às empresas estrangeiras.

E não se verifica no seio da burguesia brasileira o menor sinal de arrependimento, a menor intenção de alterar o rumo do retrocesso em curso. Alguém ousaria, nesse cenário, profetizar a reconstituição da “frente neodesenvolvimentista”? Difícil.

De concreto, o que se vê nos meios empresariais, além do entusiasmo pela destruição de direitos trabalhistas, pelo desmonte da previdência pública e pelo congelamento dos investimentos sociais, são, no máximo, queixas pontuais, sem maior relevância no cenário político.

A mesma Fiesp que liderou as multidões de verde-amarelo na Avenida Paulista agora reclama do desmonte das políticas de “conteúdo local” na exploração do pré-sal. Mas sua insatisfação fica por aí mesmo, sem qualquer desdobramento prático, sem ao menos a intenção de inserir esse assunto na agenda política geral (quem quiser conferir, olhe o site da entidade).

A burguesia, como classe, vê os seus interesses essenciais contemplados pelo retrocesso histórico que o governo golpista tenta impor à sociedade brasileira. Nunca teve interesse genuíno no projeto (neo) desenvolvimentista defendido pelo PT, por setores da burocracia estatal e sindical e por alguns intelectuais independentes, como Luiz Carlos Bresser-Pereira.

Desde sua ascensão à classe dirigente, na primeira metade do século 20, a burguesia brasileira tem clara consciência de que seu futuro está associado à dominação imperialista e à inserção numa ordem mundial capitalista sob hegemonia dos EUA.

Os burgueses brasileiros – isto está no seu DNA – desconfiam dos projetos de desenvolvimento nacional porque sentem que esse caminho os levaria a se marginalizar do sistema imperialista ao qual associam sua existência e seu futuro. Odeiam os trabalhadores, desprezam os pobres e têm dificuldade até mesmo em assumir plenamente uma identidade nacional brasileira.

Queremos o nosso país de volta”, gritavam, nas ruas. Agora o têm, espero que não por muito tempo. Dessa gente, nada de bom se pode esperar.

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8 comentários para "Infâmia: o quem-é-quem da burguesia brasileira"

  1. Mariana disse:

    O mais trágico disso tudo é constatar que a elite brasileira é extremamente burra e serviçal. A construção nacional, de óleo e gás bem como a indústria de alimentos agora, com a Operação da PF, estão sendo destruídos. Quer dizer, o mesmo pessoal que financiou o golpe e seus partidos políticos principalmente o PMDB, PP, DEM e PSDB, estão sendo tragados pelo próprio veneno.
    Isso fica claro quando presos na operação, há algum tempo atrás destilavam ódio ao PT nas redes sociais, exaltando a moral, atacando o pt como o outro, imoral e inimigo. O resultado já se sabe.
    A elite fantasiou que sairia ilesa desse jogo de interesses. Ela só não contava com a força do interesse internacional dos quadros do sistema de justiça brasileiro, via CIA. Agora será devastava pagando um altíssimo preço pela falta de um projeto de pais. Sofrerá enormes sanções pra exportar novamente carnes, a UE e USA já estão pedindo explicações e com certeza irão fazer uma barreira.

  2. josé mário ferraz disse:

    A humanidade precisa de outro paradigma que não economia para orientar sua vida. Se desenvolvimento econômico significa destruição da natureza, viveremos de quê?

  3. Arthur disse:

    Concordo com o comentário acima, bem como com o texto de Igor Fuser.

  4. C.Poivre disse:

    Nosso empresariado, ao invés de agir de forma nacionalista, como os países mais avançados sempre agiram, são de uma burrice siderúrgica como demonstram ao apoiar a destruição do grande mercado consumidor criado no período do Presidente Lula quando vendiam tudo o que produziam. TODOS os países que têm hoje a melhor qualidade de vida defenderam sempre com unhas e dentes suas grandes empresas, sejam públicas ou privadas, e exerceram um protecionismo em seu comércio exterior a ferro e fogo, com governo e empresariado nacional combatendo a concorrência externa. Aqui no Brasil nosso empresariado de mentalidade atrasadíssima faz justamente o contrário, talvez por preferirem nos ver na posição de colônia como fomos quase sempre.
    PS – Quanto ao golpe contra a democracia, de 17/04/2016, acho que passividade mais espantosa que a do povo foi a do próprio governo Dilma que não moveu um dedo em defesa do governo cuja responsabilidade foi-lhe outorgada pela maioria do povo brasileiro. O saudoso Presidente Chávez sofreu um combate muito mais encarniçado por parte do Deptº de Estado dos EUA e não foi derrotado, pois o presidencialismo dispõe de inúmeros recursos legais contra conspiradores e golpistas que não foram usados pela Presidenta deposta.

  5. O maniqueísmo do artigo enfraquece os argumentos e o texto em geral.

  6. Ale Abdo disse:

    Ni!
    Pra quê fazer um panorama preto no branco, quando a realidade é colorida ?
    Dentro do “neodesenvolvimentismo” do PT estavam os diversos esquemas de roubo bilionário para benefício próprio por membros do alto-escalão do governo e seus aliados, inclusive os mega-empresários. Alianças essas que distorceram a economia para favorecer uma elite dentro da elite.
    Dentro da “imperialismo” da FIESP estão milhares de empresários de médio e grande porte que não se beneficiaram do neodesenvolvimentismo como os mega-grandes que estavam de conchavo com o governo federal. Empresas que foram exploradas com a distorção da economia, precisando se endividar com os bancos enquanto viam as amigas do governo receber favores ao lado desses mesmos bancos. Empresas que antes do impeachment estavam abrindo falência e demitindo em massa para não colapsarem de vez.
    Então, fora Temer ! Mas fora teorias míopes também.

  7. JOSÉ MARCUS DE CASTRO MATTOS disse:

    Parabéns pelo texto. Lúcido e esclarecedor.

  8. Gostaria de ler no artigo o trecho “Desde sua ascensão à classe dirigente, na primeira metade do século 20, a burguesia brasileira tem clara consciência de que seu futuro está associado à dominação imperialista e à inserção numa ordem mundial capitalista sob hegemonia dos EUA.” da seguinte forma: “Desde sua ascensão à classe dirigente, na primeira metade do século 20, a burguesia ianque tem clara consciência de que seu futuro está associado à dominação imperialista e à inserção numa ordem mundial capitalista sob hegemonia do BRASIL.”. A formação e a evolução política do Brasil e dos EUA tem a mesma idade. Os EUA fizeram a opção pelo protagonismo na cena internacional. O Brasil escolheu ser dominado e, por consequência, ser subdesenvolvido. Somos dominados pelo imperialismo dos EUA por nossa exclusiva culpa. Somos dominados por que gostamos dessa dominação imperialista e procuramos, ao longo do século passado, permanecer nessa situação. Não cabe, agora, culpar agentes externos (Capitalismo e EUA) dessa nossa sina de sermos dominados e subdesenvolvidos. Somos uma pátria de “vira-latas”, onde a corrupção grassa – descaradamente – no meio político. Na primeira metade do século passado, a nossa Grande Irmã do Norte tratou de ocupar o seu protagonismo na cena internacional. Nessa mesma época, os dirigentes e a intelectualidade brasileira, ao empunhar a bandeira retrógrada da autodeterminação dos povos, “abriu mão” de implementar o imperialismo tupiniquim. Hoje, ficamos lamentando essa nossa situação de dominado e “arriando as calças” para o imperialismo ianque. É a vida!!!

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