Hegemonia e miséria do “management”

Um pilar oculto do domínio neoliberal sustenta: Estado, escola, família e até a vida pessoal devem orientar-se pelas lógicas e éticas das corporações. Há rotas de fuga

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Um pilar oculto do domínio neoliberal sustenta: Estado, escola, família e até a vida pessoal devem orientar-se pelas lógicas e éticas das corporações. É uma prisão, mas há rotas de fuga

Por Marco Antonio G. de Oliveira | Imagem: Davide Bonazzi

É comum ouvir que o problema do Brasil é de gestão. No entanto, se há uma área em que grande parte dos seus termos, conceitos e valores foram disseminados a ponto de se incorporarem ao senso comum da sociedade contemporânea, essa área é a da gestão, dos negócios, do business. Há menos de uma semana, em um simpósio de início de semestre organizado por uma universidade de renome da capital paulista, com cursos em diversas áreas como filosofia, direito, fisioterapia, psicologia, entre tantos outros, ouvi, do atual executivo-chefe (não mais reitor), que a educação do futuro é a educação empreendedora, do aluno empreendedor, polivalente, inovador, de atitude e sem medo de assumir responsabilidades. Em suma, ele recitou o conhecido conceito pregado pelos estudiosos e profissionais de gestão de pessoas como determinante para o sucesso dos alunos de todos os cursos da universidade: o famoso conceito CHA (competência, habilidade e atitude).

A Ford Motor Company, no começo do século XX, já exigia que os trabalhadores e trabalhadoras seguissem um estilo de vida condizente com os valores da empresa e aprovado por um departamento especializado que examinaria a vida privada deles, impondo-lhes valores como estabilidade familiar e emocional, repulsa ao álcool, apego à religião e ao patriotismo.

Condicionar o comportamento, ou como diriam os profissionais da área de Gestão de Pessoas, “direcionar o comportamento” conforme os interesses das empresas é uma prática muito bem conhecida e estudada. No entanto, a questão é que o estilo de vida protagonizado pelas empresas – o management – tornou-se muito mais do que “pop” [2], passou a ser hegemônico. Ultrapassou as paredes das empresas, como apontam há mais de duas décadas grandes autores e autoras como Ana Paula Paes de Paula, Maria José Tonelli, Miguel Pinto Caldas e Thomaz Wood Jr. O management é o espírito do “novo” capitalismo, a nova subjetividade capitalista, uma matriz de referência pessoal cujos principais eixos são: uma visão gerencial de qualquer atividade organizada, o culto da excelência, um ser autônomo, autocentrado, apolítico, que cultiva a competição e o sucesso pessoal, que valoriza o aprimoramento das técnicas de gerenciamento, que se relaciona com o objetivo de obter vantagens utilitárias, uma espécie de empreendedor de si mesmo ou burguês de si mesmo [1][2] .

Para explicar esse fenômeno, característico das sociedades de classes, o conceito de hegemonia trabalhado por Antonio Gramsci (1891-1937) é essencial. A hegemonia compõe a cultura e a ideologia como um processo social que constitui a visão de mundo de uma sociedade em uma determinada época. Trata-se de um sistema de representações, normas, valores e alinhamento político das classes dominantes que visa ocultar a sua particularidade, apresentando-se como natural e único. Como afirmou recentemente o autor português Boaventura de Souza Santos, “a ideia de que os pobres são pobres por culpa própria é hegemônica quando é concebida não apenas pelos ricos, mas também pelos pobres”. Os conceitos do management, fundamentados na lógica da (ir)racionalidade econômica, como os da meritocracia, do individualismo, da competição, entre outros, tornaram-se hegemônicos também para grande parte das classes subalternas. São trabalhadores e trabalhadoras imersos na hegemonia articulada pelos intelectuais orgânicos burgueses.

O management representa o modelo ideal de comportamento humano e social proposto pelo modelo econômico e social neoliberal. É nesse perfil de trabalhador em que o capitalista se apoia há pelo menos 50 anos, em busca de maiores excedentes de trabalho e, consequentemente, de capital. Para tanto, o modelo de gestão nipônico, a escola da Administração Estratégica e o seu conceito de competências essenciais, além da abordagem da Administração Empreendedora, promovidas pelas escolas de administração, pela mídia de negócios, pelas empresas de consultoria e pelos gurus da administração, intelectuais orgânicos da classe dominante, estimularam e profissionalizaram uma vasta rede de micro e pequenos negócios, preparando-os para servirem às grandes corporações. O mundo capitalista precisa legitimar as suas despóticas relações de produção e consequentes relações sociais, e, sendo assim, amplia a sua capacidade de subjetivar, de dar sentido e influenciar ainda mais as nossas experiências sociais e culturais. Dessa maneira, os valores do management, através dos intelectuais orgânicos, penetram e se naturalizam nos mundos da ciência, da política, da administração pública, da educação, da tecnologia, da arte, da religião, da literatura, da família, entre tantas outras esferas [2] .

Depois de anos de maciça propagação e preparação, hoje vivemos a hegemonia do management. O “manageralismo” tornou-se um dogma que as pessoas levam para todo lugar, definindo o tempo, a linguagem cotidiana e a vida social de tal modo que as pessoas já não vislumbram outras formas de organização social como a gestão democrática, participativa, coletiva, colaborativa e a autogestão. As pessoas entendem que todas as instituições sociais devem operar através da mesma lógica das empresas privadas: escola é empresa, creche é empresa, hospital é empresa, instituições públicas são empresas, família é empresa e pessoas se percebem como empresa. O senso comum equivocadamente entende que essa é a maneira mais precisa, mais transparente, pragmática, mensurável e eficiente de organização social. O management tornou-se hegemônico.

Observe as atitudes dos seus (nossos) maiores representantes: eleito em 2017 pelos franceses, Emmanuel Macron afirmou diversas vezes em seus discursos de campanha que a sociedade francesa precisava de uma revolução e que, para tanto, os franceses deveriam deixar o maniqueísmo direita/esquerda para pensar e fazer da França uma startup competitiva deste novo tempo: “A França precisa se mover e pensar como uma startup”, dizia Macron durante os seus comícios. Donald Trump ficou conhecido através da famosa expressão usada nos campos de batalha, comumente utilizada pelas empresas quando não concordam ou não se interessam mais pelo nosso trabalho: “you’re fired!” Não à toa, este senhor virou presidente da maior potência econômica e nuclear do mundo e, mesmo assim, continua se comportando exatamente de forma autoritária como fazia nas suas empresas com os seus subordinados.

Na mesma toada, lembre-se do ex-prefeito da capital paulista, o nosso Trump tropical, o empresário que gosta de se fantasiar de trabalhador e brincar de política: João Doria. Este senhor colocou em prática uma política higienista de pura barbaridade, sob o nome de “Cidade Limpa”, que tratou os dependentes químicos, os moradores e as moradoras de ruas como pragas a serem expurgadas da cidade, acordando-os com jatos de água em pleno inverno, recolhendo os seus cobertores e pertences madrugadas afora. É o mesmo que agora promete, como governador, que a sua polícia vai atirar para matar e que o estado pagará os melhores advogados para policiais que matarem em serviço. Em suma, ele está promovendo e legitimando as chacinas no Estado de São Paulo.

Se reclamamos da baixa intensidade das democracias nas instituições públicas, o que dizer da democracia nas empresas privadas? Ambientes pautados apenas pela lógica da racionalidade econômica, do funcionalismo, do utilitarismo, tomados pelo medo, pela instabilidade, pela mentira e dissimulação, pela competição sem limites, pelo individualismo acerbado, nos quais não há espaço para a pluralidade e a diversidade: manda quem pode e obedece quem tem juízo e contas para pagar. O período neoliberal puro, que vivemos, de autoritarismo estatal, com forte presença policial e militar sob o mote da segurança nacional, seja interna ou externa, de políticas antirrevolucionárias mesmo sem revolução, em diversos países do mundo, encontra no management – no modelo comportamental do gestor da empresa privada – o perfil ideal de liderança para impor e legitimar as suas ações autoritárias de características fascistas.

Referências

1- Antunes, Ricardo (2018) O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, Boitempo.

2- Caldas, Miguel Pinto; Tonelli, Maria José (2000) O homem camaleão e os modismos gerenciais: uma discussão sociopsicanalítica do comportamento modal nas organizações. In Motta, Fernando C. P.; Freitas, Maria E. Vida psíquica e organização. Rio de Janeiro: FGV. cap.7, pp.130-147.

3- Wood Jr, Thomaz; Paes de Paula, Ana Paula (2002) Pop-management: a literatura popular de gestão no Brasil. EAESP/FGV/NPP, Relatório de pesquisa nº 3.

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Marco Antonio G. de Oliveira é professor da Universidade São Judas Tadeu

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