Escracho: os portões da memória abertos de relance

O Levante da Juventude bate à porta do sinistro Capitão Ubirajara e antecipa: rever Anistia e condenar tortura é questão de tempo

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Por Rôney Rodrigues | Fotos: Douglas Mansur

Aparecido Laertes Calandra mantinha uma expressão impenetrável na manhã de 12 de dezembro de 2013. Protegido pelas sombras – segundo me jura um de seus vizinhos – entrou no auditório do Banco do Brasil, na Avenida Paulista, e talvez já viesse remoendo algo por dentro. Nunca saberemos ao certo. Há homens que levam para a sepultura muitos pensamentos amargos e atrocidades cometidas em vida. Outros, além de pensamentos, também levam junto inúmeros túmulos ainda insepultos.

Demarcando essas covas, eis as acusações que lhe pesam: ser o destemido capitão Ubirajara que torturou, estuprou, assassinou e desapareceu com presos políticos durante a ditadura militar. Embora o Chefe do Estado Maior do II Exército, em um ofício de 1976, o elogie por “eficiência e dedicação” no combate à “subversão e terrorismo” no DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna), Calandra alega que era apenas um burocrata.

Se você clicar aqui poderá ver esse sereno burocrata, já envelhecido, de cavanhaque, cabelos brancos e voz mansa, que, após o sobressaltado silêncio inicial, dispara com primor assertivas negativas durante sessão da Comissão Nacional da Verdade: “não sei”, “nunca fiz isso”, “não conheço”, “não era minha atribuição”, “nunca ouvi falar a respeito”, “não chegou até mim essa informação”.

Calandra, socraticamente, só sabe que nada sabe. Entretanto, não dispôs de nenhum sofismo para tentar explicar como tantas pessoas o reconhecem como torturador – atribui isso a um “engano pessoal”. Ou o porquê de nunca ter ouvido a tenebrosa trilha sonora – “um inferno de gritos, pancadas e gemidos” – que afetava, dia e noite, até prédios vizinhos da rua Tutóia. Ou, então, o motivo de não ter tido nenhum contato com o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, seu chefe imediato por oito anos, na mesma cidade, no mesmo órgão de repressão, no mesmo prédio.

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O depoimento foi classificado, pelos presentes na sessão, como uma “desfaçatez”, “espetáculo de atuação”, um “cinismo intragável”. Porém, Calandra já havido sido traído pela indiscrição dos detalhes; não só pelo discurso que contradiz documentos e testemunhas, mas pela forma como apertava o lábio inferior ou coçava a garganta entre um pergunta e, o principal: suas mão – pesadas, escorregadias, inquietas – em cima da mesa.

O depoimento do ex-delegado não teve o peso de um Eichmann em Jerusalém – até porque a Comissão não tem caráter punitivo -, mas talvez também levanta uma reflexão sobre o mal arenthiano de homens como Calandra: um mal que, em si, não é uma atitude deliberadamente maligna, mas política e histórica. Um mal que, num espaço institucional e no cumprimento de “ordens necessárias” – e sem se responsabilizar por elas -, produz ubirajaras, tibiriçás, malhões e fleurys que, em virtude de uma escolha política, esvaziam o pensamento e assassinam e torturam cartorariamente. Banalizam o mal.

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Capitão Ubirajara é Aparecido Laertes Calandra, embora alegue nunca ter ouvido o som formado por essas letras. Quando os arquivos do DOPS/SP foram abertos, na década de 1980, seu nome apareceu lá, no Projeto Brasil: Nunca Mais. É só procurar na página 55, do Tomo II. É o volume 3, onde estão os nomes dos funcionários. Aí é só procurar a lista “Elementos Envolvidos Diretamente em Torturas” que você verá seu nome por lá.

O Ministério Público Federal move, desde 2010, uma ação civil pública contra o ex-delegado, pedindo sua responsabilização pessoal por participar de atos de tortura, abuso sexual, desaparecimentos e homicídios.

Não é para menos. Quando trabalhava no DOI-CODI, Calandra teve participação na morte do ativista do PCdoB Carlos Nicolau Danielli, do estudante Hiroaki Torigoe e do dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN), Helcio Pereira Fortes. Também montou o cenário de “suicídio” do jornalista Vladimir Herzog, embora afirme apenas ter solicitado a perícia após sua morte, “cumprindo determinações”.

Também torturou os presos políticos Darci Miyaki, Maria Amélia de Almeida Teles, Gilberto Natalini, Sérgio Gomes, Nilmário Miranda, Adriano Diogo, Arlete Lopes e Arthur Scavone.

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Ele é apontado pelo ex-delegado da Polícia Civil Cláudio Guerra como um dos comandantes da operação que decidiu o assassinato do delegado Fleury.

Apesar dos processos, as coisas não mudaram muito para Calandra, que chegou a ser indicado, em 1995, para a Chefia do DETRAN/SP, porém, após ser apontado como Capitão Ubirajara, foi afastado do cargo. Em 2002, foi nomeado pelo governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), para o Comando do Departamento de Inteligência do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos da Polícia Civil de São Paulo (Denarc/SP). Em 2011, transferido para o Departamento de Administração do Pessoal (DAP), com a atribuição de cuidar das escutas telefônicas. Alckmin explica, da seguinte forma, a presença de Calandra em áreas estratégicas do sistema de informação paulista: “a anistia vale para os dois lados…”.

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Vila Carioca, zona sul de São Paulo. Proximidades da estação de metrô/trem Tamanduateí. 50 anos após do golpe de 1964. Alguns vizinhos espreitam pelas persianas semiabertas. Outros saem à rua, sem compreender muito bem do que se trata, afinal, aquele grupo de cerca de 80 pessoas é barulhento e empunha cartazes, faixas e bateria. Algaravia estudantil? Alguma brincadeira do “Dia da Mentira”?

“Desejo a todos os golpistas vida longa/pra que eles vejam cada dia mais nossa democracia/na ditadura é só tiro, porrada e bomba/ Lei da Anistia tenta apagar nossa impunidade”, puxa um, ao microfone, parodiando “Beijinho no ombro”, de Valesca Popozuda.”Ela é injusta, ela é racista/ela mata, ela é a polícia/ na ditadura, no passado e no presente/ recebe ordem do Estado para matar os inocentes”, seguem depois, ao ritmo de “Ela é top”, de MC Bola.

As coisas logo se esclarecem: é um escracho, organizado pelo Levante Popular da Juventude, para apontar à vizinhança de Calandra que ali mora um torturador. “Depois que a ditadura acabou – com essa Lei de Anistia ineficiente que a gente teve – foi como se nada tivesse acontecido”, conta Luiza Troccoli, estudante de letras. “[os torturadores] voltaram para suas casas, tiveram suas vidas normalmente. E com o povo na rua, expondo esses torturadores e os escrachando, mostra que a gente não esqueceu o que aconteceu há 50 anos atrás e que não vamos esquecer até que esses arquivos sejam abertos”.

A residência do ex-delegado fica em uma vila com cerca de dez casas, separadas da rua por um portão eletrônico, onde o grupo se concentra. Dois vizinho, já idosos, saem à rua, curiosos. Conversam em frente à porta de suas casas: queixo descansado sobre as mãos, cotovelos descansando sobre a barriga sobressalente. Sabe quem é seu vizinho, senhor?

“Sei, claro, fazia as coisas na época da ditadura”, diz um dele. “Aqui não dá nem bom dia, não fala nada, é extremamente fechado!”,queixava, chateado com a falta de cordialidade do vizinho.

“Eu só vim a saber por uma reportagem da Veja”, lembra o outro vizinho. “Era numa época que queriam indicar ele prum cargo e os direitos humanos caíram em cima, matando…. A gente viveu isso da ditadura, era contra, mas vai fazer o que né?”.

Aproximo-me de uma casa, folheto na mão. “Nem precisa me dar papelzinho”, me corta outro vizinho. “Eu sei quem ele é. Se ele estiver passando no meio dum monte de gente, você sabe quem é ele, já vê de cara: “é aquele ali”. Ele tem uma coisa, uma sombra. Até briga com o cachorro daquele outro vizinho ali. Juro por Deus, se um dia o cachorro escapar e ele estiver passando, ele avança sobre ele”.

“O cachorro?”, pergunto.

Ele pensa. “É. O cachorro”.

Os escrachadores conseguem abrir o portão, entrar na pequena vila e se concentram em frente à casa de Calandra. Gritam, cantam e vociferam. O silêncio, porém, retumba dentro da residência do ex-delegado.

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Bigodinho grisalho, careca e camiseta polo branca, um dos vizinhos da viela aponta, de sobrancelhas franzinas, para o portão violado.

“Bela coisa!”, e como se ninguém tivesse entendido o sarcasmo, repetiu mais repreensivo: “muito bonito mesmo o que vocês fizeram. Você acha que isso aqui é normal? Olha o que vocês fizeram?!”.

Ele encara alguns manifestantes. Se inflama.“Isso sim é ditadura”, afiança. E sentiu cada sílaba da palavra: DI – TA – DU – RA. “O que você acha que é isso?”.

“A vontade do povo”, uma manifestante devolveu.

“Calma aí. Isso aqui não é a vontade do povo…”.

“É a vontade do povo!”, insiste outro.

“…Isso aqui, amigo, é a mesma coisa que eu chegar na sua casa, invadir e arrombar a sua porta”.

“É diferente”.

“Não”, e chacoalhou o indicador em negativa. “Não é diferente não. A minha porta é aqui. Isso aqui é uma viela fechada”.

“A rua tem um nome, passa por aqui. É pública!”.

“Querida, olha o que foi feito. Isso aqui é normal?”, pergunta. Ninguém o responde. “Vai todo mundo embora daqui. ‘Ah, estamos protestando’. E essa merda vai ficar aberta. Eu quero saber dessa porra. Isso aqui foi invasão, amigo. Isso aqui foi invasão!”.

“O criminoso tá lá dentro, ele que arque!”, perdeu as estribeiras outro jovem. “Você tem que cobrar do criminoso. A gente tá discutindo uma coisa profunda aqui e o senhor tá preocupado com um portão aberto?”.

“Bicho, vocês vão embora e aqui vai ficar o foda-se. Aqui vai ficar a mesma coisa. Vocês fazem isso, bonito, tudo bem”, diz apontando para um grafite: CASA 1 → TORTURADOR. “Vocês vão embora – e todo o manifesto de vocês – e eu quero saber de amanhã. Eu quero saber de amanhã!”.

“Faz um abaixo assassinado pro Calandra sair”.

“Vocês estão invadindo o meu direito. Vocês estão invadindo o direito de todo mundo que mora. Se ela [rua] fosse pública….é pública do portão pra fora”.

“Isso [rua fechada] é proibido. É ilegal”.

“Vai ver o IPTU. Ah, é ilegal? Você mora nos Estados Unidos agora, ô, amiga?”.

“Não moro nos EUA. Moro numa rua, que também é pública”.

“Eu quero saber o dia de amanhã”, berra. “Eu quero saber é de amanhã! Essa porra, como vai ficar? Vai todo mundo embora, todo mundo com bandeirinha e não-sei-o-que e aí fica isso aqui! Isso aqui é a mesma coisa… Outra infração! É a mesma coisa!

“Ele torturou, estuprou e assassinou pessoas, senhor. É a mesma coisa? Você vive do lado de um torturador assassino”, pergunta.

“Alguém mandou?”.

“Claro que mandou. Ele é do Exercito brasileiro. O senhor nunca ouviu falar no golpe militar? Eles mataram 473 homens que sonhavam com um mundo melhor…”

Ele não responde. Cruza os braços. Retira o celular do bolso: 190. Limita-se somente a perguntar: “e amanhã?”.

* * *

E amanhã? Abro alguns sites: notícias do primeiro de abril. A subcomissão da Verdade do Senado diz que se engajará pela revisão da Lei da Anistia. O Datafolha aponta que a maior parte da população (46%) aprova rever a famigerada lei. A Anistia Internacional lançará uma petição online para isso. Mas isso é hoje. É agora. Calor das “datas redondas”. Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã… E assim será possível; mas hoje não…

Telefono para Adriano Diogo, hoje deputado estadual e presidente da Comissão Paulista da Verdade. Mas – me auto iludo – não é com esse deputado que eu falo, mas com aquele menino de vinte e poucos anos, estudante de geologia da USP. Aquele menino que, em 1973, foi arrancado – a socos e pontapés – de seu apartamento na Mooca e levado para o DOI-CODI. O mesmo menino idealista que, por infinitos três meses, foi brutalmente torturado por Calandra. É com ele que falo. É à ele que me dirijo, ao parafrasear o irritado vizinho, ao expor dúvidas de mesa de bar, ao perguntar sem nem mesmo saber se devo: e o amanhã?

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Esse amanhã já é um processo irreversível”, me diz ele. “À medida que o assunto virou pauta do dia para as novas gerações, não tem como voltar atrás. Mas hoje, seria legal se a Comissão Nacional da Verdade emitisse um comunicado de cinco linhas. Não, melhor, de cinco palavras: ‘hoje está revogada a Lei de Anistia’. Esta Lei, que juntou torturados e torturadores, deve continuar em vigor, passados tantos anos?” pergunta.

“O que o senhor pensou quando soube que Calandra, o capitão Ubirajara, foi escrachado?”.

“Fiquei feliz porque as novas gerações abraçaram essa busca pela verdade e pela justiça”, aponta Diogo. E, como quem conta um segredo, continua: “o escracho de ontem foi muito corajoso. Aquele homem é um sádico… Covarde…. Canalha… Torturar mulheres era sua especialidade. Você sabe do que eu estou falando, não sabe?”.

“Sei sim”.

“Sabe né?”.

Sabia na verdade que, por mais que tivesse lido, estudado, acompanhado os depoimentos na Comissão e o entrevistasse, pouco saberia de fato. “Sei”, continuei mentindo. “Assisti aos depoimentos na Comissão da Verdade”.

“Ele foi um verdadeiro ator. E escrachar ele foi de uma grande ousadia, porque aquele homem é influente, ainda tem ligações fortes com pessoas importantes e é capaz de muitas coisas”.

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Um comentario para "Escracho: os portões da memória abertos de relance"

  1. Ai meu Pai Celeste, quanta dor escondida por debaixo do tapete ainda. Mas como diz em PROVÉRBIOS 12-Versículo 19: “A MENTIRA tem VIDA CURTA, mas a VERDADE VIVE PARA SEMPRE”. Eu tenho certeza que esses caras um dia (e não demorará muito) pagarão 4 vezes mais oque fizeram.

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