Energia: bem comum negado aos sem-teto

A recusa do poder público em garantir energia elétrica às ocupações urbanas é um traço do racismo institucional. Apesar de 97,8% dos domicílios terem acesso à rede elétrica, os sem teto subsistem sem ele

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Por Andreia de JesusLuiz Fernando VasconcelosIsabella Gonçalves*

 

O debate sobre a energia** tem despertado opiniões divergentes e manifestações por todo o país. Temas como as hidrelétricas amazônicas, a energia nuclear e o petróleo estão no centro dos debates sobre o assunto, que revelam diferentes concepções de desenvolvimento e disputas sobre o investimento público. Tais debates revelam o caráter estratégico do controle sobre a produção e consumo energéticos no país.

Esse texto traz uma reflexão que parte do chão das ocupações e das periferias urbanas, refúgio dos afrodescendentes, onde a energia elétrica não chega. O objetivo desse deslocamento do tema é defender que mais do que lutar pela energia como um bem público, estatal, faz-se necessário defender a energia como um bem comum e uma ação afirmativa, fundamental para a garantia da dignidade da pessoa humana.

Neste século XXI a luz elétrica completa 125 anos de existência. Mas, para os moradores das ocupações urbanas, esse é um direito ainda negligenciado, assim como tantos outros serviços públicos fundamentais. Que razões justificariam deixar no escuro o povo de um país com um sistema elétrico tão bem estruturado, que apresenta por anos consecutivos os maiores índices de lucro líquido e ainda consegue produzir uma das energias mais baratas do mundo?

Por um lado, está o caráter de bem mercadoria que a energia elétrica adquiriu, ainda que o controle acionário sobre as empresas seja majoritariamente estatal. A energia não é vista pelas elites e pela atual regulação institucional como um bem estratégico e comum a todos os cidadãos; os critérios de acesso à energia são critérios de consumo e mercado. Importa destacar que o sistema energético brasileiro é estruturado para uma economia dependente, centrada nas indústrias pesadas da metalurgia e siderurgia e não tanto para a satisfação das necessidades do povo brasileiro.

Embora o sistema de energia brasileiro seja um dos mais baratos do planeta -segundo especialistas, o preço médio da energia elétrica no Brasil equivale a cerca de um quarto do preço da energia no mercado internacional-,  em termos de custos ambientais e humanos a energia é sim muito cara. As hidrelétricas, modelo dominante no país, destroem rios e comunidades inteiras. A grande indústria paga valores irrisórios pela energia, enquanto os pobres urbanos, quando a acessam, o fazem por meio de arriscadas ligações clandestinas – popularmente conhecidas como “gato”.

Nos anos marcados pelo crescimento econômico e altas taxas de investimento público (governos Lula e Dilma)  amplos recursos foram drenados dos cofres públicos para o setor energético, através de inversões de capital do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O PAC 2 investiu 640,2 milhões de reais no setor energético, com a previsão de construção de 54 novas hidrelétricas no Brasil e em países vizinhos da América Latina. Também foram investidos 18 bilhões de reais na extensão da rede elétrica para o meio rural -o programa Luz para Todos.[1]

Hoje, 97,8% dos domicílios brasileiros possuem acesso à energia elétrica. Mesmo assim, a energia produzida no país é consumida majoritariamente pela grande indústria. Em 2008 o setor industrial consumiu 46% da energia elétrica enquanto o setor residencial consumiu apenas 24% [2].  Como destaca Pedro Otoni:

A energia aqui, em especial nas últimas três décadas, teve como objetivo criar as condições para uma ampliação da eficiência das atividades agroexportadoras e extrativistas, em especial a mineral. Boa parte dos megaprojetos de geração de energia está a serviço das grandes plantas mineradoras, como a de alumínio no Pará que consome 5,5% de toda energia elétrica do país com baixa demanda de trabalhadores. No agronegócio, a energia é consumida na movimentação dos sistemas de pivôs centrais que, além de demandar energia, consomem quantidades excessivas de água sem gerar empregos em quantidade justificável. Em resumo: A demanda de energia aumenta em um contexto de desindustrialização, primarização e financeirização da atividade econômica nacional.[3]

O Golpe parlamentar de 2016 abre um novo ciclo de privatizações e entrega do patrimônio público. Através do Plano Nacional de Desestatização (PND) o governo golpista de Michel Temer pretende vender diversas produtoras e transmissoras de energia. Entre as privatizações está a proposta de desestatização da empresa brasileira Eletrobrás, que corresponde a mais de 30% da produção e 47% da distribuição de energia no país, por valores irrisórios – algo como 20 bilhões de reais – em um processo de golpes e retomada intensificada da privataria[4] no país.

Se o aspecto mercadológico é um entrave ao acesso do povo a esse bem comum, o que se agrava em um cenário de desestatização, por outro lado, está o racismo institucional refletido pela pobreza notória marcada pela falta ou negação de recursos fundamentais a uma vida digna nas cidades. Frisa-se que os serviço urbanos podem ser considerado como essenciais e sua prestação regular está diretamente relacionado com o princípio da dignidade da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana é um princípio geral do direito e visa à proteção e promoção da pessoa humana e se irradia por todo o ordenamento jurídico. E no caso de ausência de prestação do serviço de energia elétrica esse princípio é mitigado já que os moradores de ocupação enfrentam as mais diversas situações que bloqueiam o exercício de uma vida digna.

São vários os problemas derivados da falta ou precariedade das ligações de energia elétrica: crianças e adolescentes não conseguem fazer “lição de casa” à noite; não há como conservar o leite de crianças que têm restrição alimentar como intolerância à lactose; não há como conservar remédios como insulina para diabetes; não há como usar gelo em caso de cuidados com cirurgias e contusões; até o feijão nosso de cada dia não pode ser cozinhado já que não há como armazenar na geladeira, dentre outros problemas.

Em função da ausência de serviço de energia em ocupações já aconteceu até mesmo a morte de pessoas como no caso de duas crianças, Beatriz (8 anos) e Esthefany (6 anos), mortas carbonizadas depois que o barraco de madeira (2×3 metros) delas na comunidade Dandara, bairro Céu Azul, região da Nova Pampulha, em Belo Horizonte-MG, foi queimado devido a um incêndio pelo uso de velas, em 14 de março de 2010.

Tal situação aponta o caráter excludente de todo o aparato estatal que não reconhece como legítima uma ocupação urbana e reproduz um modo racista de funcionamento do Estado contra negros e pobres. Nos últimos dias, na Ocupação Vicentão, no centro de Belo Horizonte, composta por pessoas sem-teto e trabalhadores informais, a CEMIG, operadora de energia elétrica de Minas Gerais, cortou a luz uma vez e ameaçou por outras duas cortar o fornecimento.

No Brasil, a moradia tem sido uma condicionante da cidadania. Quem vive na cidade legal, nos bairros nobres ou de classe média, tem assegurados os seus direitos na condição de consumidores. Ou seja, se pagar tem garantido o acesso regular aos serviços urbanos e demais direitos de cidadania. Já os habitantes da chamada cidade ilegal – vilas, favelas e ocupações – são tratados pelo Estado como “invasores criminosos”. Para o modus operandi do Estado brasileiro o “criminoso” que é pobre e negro não tem qualquer direito, nem sequer de consumir um serviço básico. O Estado que deveria ser o garantidor dos direitos básicos, previstos na Constituição Federal e em demais legislações infraconstitucionais, passa a operar como obstáculo à cidadania.

Ao trabalhar sobre essa lógica racista e segregacionista, o Estado desconsidera os próprios marcos legais. É preciso afirmar que o direito à moradia digna, exercido pelas ocupações urbanas em sua luta cotidiana por dignidade, possui autonomia em relação a uma propriedade que não cumpre sua inerente função social. Uma propriedade ociosa, que não cumpre seu dever de uso perante toda a coletividade, não é invadida e sim ocupada e, portanto, não merece tutela jurídica-política alguma e o que deve prevalecer é o direito de famílias sem-teto de afirmarem pela luta o seu direito à cidade e à uma vida digna.

Mesmo na ordem jurídica posta há amparo à pretensão das famílias de ocupações que reivindicam o serviço de luz elétrica. A implantação de infraestrutura básica e a prestação de serviços essenciais em áreas de ocupações urbanas são diretamente relacionadas com o princípio da dignidade humana, na forma do artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Além disso, é de responsabilidade das três esferas federativas- União, Estados e Município -, como prevê o art. 23 da CF-88, promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.

A suposta titularidade da terra, a eventual propriedade levantada por um proprietário desidioso ou especulador, não pode ser elemento impeditivo para a efetivação do direito fundamental à energia elétrica e à prestação de um serviço público essencial que deve ser fornecido como direito básico de todo cidadão.

Há uma normativa da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), Resolução 414 de 2010, sobre Condições Gerais de Fornecimento de Energia Elétrica, que prevê a possibilidade de instalação, em caráter provisório ou até mesmo definitivo, de energia elétrica em assentamentos ditos irregulares ocupados por população de baixa renda, veja-se o § 2º, do artigo 52:

Art. 52

§ 2-Para o atendimento de unidades consumidoras localizadas em assentamentos irregulares ocupados predominantemente por população de baixa renda, devem ser observadas as condições a seguir: (Redação dada pela REN ANEEL 479, de 03.04.2012)

I – deve ser realizado como forma de reduzir o risco de danos e acidentes a pessoas, bens ou instalações do sistema elétrico e de combater o uso irregular da energia elétrica;

II – a distribuidora executará as obras às suas expensas, ressalvado o disposto no § 8° do art. 47, devendo, preferencialmente, disponibilizar aos consumidores opções de padrões de entrada de energia de baixo custo e de fácil instalação;

III – a distribuidora pode adotar soluções técnicas ou comerciais alternativas, mediante apresentação das devidas justificativas para avaliação e autorização prévia da ANEEL; e (Redação dada pela REN ANEEL 610, de 01.04.2014)

IV – existência de solicitação ou anuência expressa do poder público competente. (Incluído pela REN ANEEL 418, de 23.11.2010)

O fornecimento de energia elétrica, assim, é um elemento de consolidação de ocupações que busca reduzir riscos de danos e acidentes. A anuência do poder público deve visar aos imperativos de política urbana que tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana conforme diretrizes do Estatuto das Cidades, art. 2º, da Lei 10.257-2001, tais como direito à infraestrutura urbana, aos serviços públicos, direito à terra urbana e à moradia.

É importante realçar que, para comunidades compostas pelos pobres urbanos, faz-se necessário que seja cobrada tarifa social como previsto na Lei 12.212-2010, que dispõe sobre a Tarifa Social de Energia Elétrica, que estabelece que a tarifa social será aplicada aos moradores inscritos no CadÚnico com renda familiar mensal per capita menor ou igual a meio salário mínimo ou que entre seus moradores tenha alguém que receba o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Tal previsão legal deve ser interpretada em conjugação com o §8º do artigo 47 da resolução 414 de 2010 da ANEEL, que possibilita a alocação de recursos a título de subvenção econômica aportados pela Administração Pública com finalidade de efetivar processos de regularização fundiária. Assim, deve-se buscar a tarifa social como forma de priorizar o acesso a um direito fundamental. Estabelece o dispositivo:

§8 – Objetivando a modicidade tarifária, podem ser alocados recursos a título de subvenção econômica, oriundos de programas especiais implementados por órgão da Administração Pública Federal, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, ou da administração indireta, ou, facultativamente, pelo responsável pela implantação do empreendimento habitacional ou da regularização fundiária.

A moradia digna tem como elemento constitutivo a disponibilidade de serviços e infraestrutura de forma que o fornecimento de energia elétrica deve ser entendido como serviço universal, constituído como direito fundamental desvinculado do direito de propriedade em sua concepção absoluta e expressão da dignidade humana já que a titularidade de um imóvel não se sobrepõe ao bem estar de uma coletividade de sem-teto que luta para conquistar seus direitos.

O ordenamento jurídico sozinho, no entanto, é incapaz de levar luz aos postes das ocupações e periferias. Para combater o racismo institucional e o caráter mercadológico da energia elétrica é preciso lutar por um plano energético popular, como há anos tem defendido o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Esse plano deve partir de uma perspectiva estendida, que inclua no centro do debate as alternativas energéticas para a grande massa trabalhadora urbana, que representa hoje mais de 80% da população brasileira.

Na cidade de Belo Horizonte, as ocupações urbanas têm pautado a questão da energia elétrica nas recentes jornadas de luta direta realizadas em prédios e repartições públicas. Em 2013, a prefeitura de Belo Horizonte foi ocupada pelas comunidades Dandara, Eliana Silva e várias outras para exigir que a administração pública deixe de obstruir a garantia de direitos básicos aos moradores. Em 2017, a CEMIG e a Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (URBEL) foram ocupadas para que a energia fosse ligada nas ocupações da região do Barreiro e da Izidora.

O que essas lutas têm demonstrado é que não basta lutar pela energia enquanto um bem público, debaixo do controle estatal. Uma vez que o maior obstáculo ao acesso aos serviços básicos tem sido o Estado, a luta pela energia elétrica tem que reivindicar a perspectiva do bem comum. Para as famílias pobres, majoritariamente negras, a dimensão dessa luta é ainda mais profunda. É pelo reconhecimento da sua dignidade enquanto pessoa humana frente a um Estado persistentemente patrimonialista e racista.

A concessionária de energia elétrica presta serviço público que deve atender o interesse público como princípio constitucional e jamais os interesses privados. Com isso a relação estabelece-se entre cidadão e poder público e não entre prestador de serviço e consumidor, regulada pelo direito contratual privado.

Remover os obstáculos ao fornecimento de luz para as ocupações urbanas é ação afirmativa que visa combater a discriminação racial que coloca a população afrodescendente nos estratos mais baixos de sociedade e muitos entre os quais vivem nas ocupações urbanas.

As ocupações urbanas, refúgio de resistência para negros pobres e marginalizados, são territórios sem regulação fundiária, sem título de propriedade, requisito para acessar serviços fundamentais, entre eles a luz elétrica. No entanto, isso descaracteriza o papel da concessionária de serviço público que deve atender o interesse público, princípio constitucional,  e não os interesses de quem tem controle sobre as terra – os mesmos que foram beneficiados pela escravidão e também foram reparados pelo fim dela com título de propriedade da terra.[5]

A questão da energia divide país, com tantos outros temas: de um lado a maioria do povo brasileiro, a exemplo do povo que vive e resiste nas ocupações, sem acesso aos bens comuns; de outro, a Casa Grande, que quer privatizar o sistema elétrico e rebaixar a soberania brasileira sobre os recursos estratégicos e o patrimônio nacional. Um serviço de qualidade para as famílias brasileiras e o povo pobre passa pelo fim dos projetos de privatização e pela reestatização daquilo que é bem comum.

________________

Andreia de Jesus é advogada popular e militante antirracista; Luiz Fernando Vasconcelos é advogado popular e militante pelo direito à cidade; Isabella Gonçalves é militante, cientista política e educadora popular

** Uma fonte importante desse trabalho foi o excelente texto de José Álvaro de Lima Cardoso publicado em Outras Palavras (aqui)

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[1]Os dados apresentados foram expostos no livro “Brasil Potência: entre a integração regional e um novo imperialismo” de Raúl Zibechi. Rio de Janeiro: Ed. Consequência, 2012.

[2]Idem.

[3]Otoni, Pedro (2018). Setor Elétrico: O que está em jogo. Brasil em 5, 14/03 de 2018. Disponível em: https://brasilem5.org/2018/03/14/setor-eletrico-o-que-esta-em-jogo/

[4]“Privataria” foi o termo cunhado para designar o ciclo de privatizações que teve lugar na gestão federal do PSDB durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso. A alcunha “privataria” denuncia o caráter corrupto ademais de entreguista dessas operações, unindo em uma palavra privatização e pirataria, ou seja, saqueio criminoso das riquezas nacionais.

[5] BRASIL, Lei de Terras. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm. Acesso em 29 de março de 2018.

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Um comentario para "Energia: bem comum negado aos sem-teto"

  1. Kênia Ribeiro disse:

    Precisamos de um Novo Centro político.

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