Direito à Creche, luta rebelde

Surgida durante a resistência à ditadura, reivindicação tem caráter antipatriarcal profundo — mas às vezes ignorado. Sugere que cuidado das crianças é tarefa social, não peso nas costas da mãe

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Por Maria Amélia de Almeida Teles

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O texto a seguir é um dos artigs do livro:

Por que a creche é uma luta das mulheres? 

Organização: Maria Amélia de Almeida Teles, Flávio Santiago e Ana Lúcia Goulart de Faria

São Carlos: Pedro & João Editores, 2018. 292p.

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Nos anos de 1970, ainda sob a intensa repressão política da ditadura militar, houve a retomada de alguns movimentos sociais, com articulações mais frequentes de estudantes, sindicalistas, mulheres da periferia e feministas, que lutavam por liberdades democráticas, anistia política, saúde, contra a alta do custo de vida, em defesa da Amazônia, por melhorias nos bairros periféricos e nas condições de trabalho e de vida da população pobre. Dentro deste contexto, mulheres e movimentos feministas organizavam com ênfase ações mobilizadoras pela construção de creches em São Paulo, com uma preocupação central: a importância da creche como um espaço primordial para garantir condições razoáveis de trabalho para as mães. Mas também havia a preocupação em garantir um serviço de qualidade para a educação de crianças pequenas, de modo a oferecer uma convivência democrática entre as próprias crianças de diversas idades e pessoas adultas de distintos lugares, com profissionais preparados, numa perspectiva de enfrentar e reduzir as desigualdades sociais. Havia uma compreensão coletiva dentro do movimento, a respeito da necessidade de que crianças pequenas fossem o centro de políticas públicas que as colocassem num patamar de perspectiva cidadã e de reconhecimento de sua importância para uma sociedade livre, soberana e democrática. Não caberia apenas às mães e às famílias a responsabilidade social, afetiva, econômica e política pelo desenvolvimento de bebês e crianças.

As feministas protagonizam a oposição à sociedade patriarcal que impõe a maternidade compulsória – ditada pela heteronormatividade – que coloca como destino das mulheres o ser mãe. Nasceram para ser mães e cuidadoras, e é assim que a sociedade as vê. A naturalização da maternagem tem sido, ao longo de décadas e décadas, criticada e questionada. As feministas colocaram e reafirmam a maternidade como uma construção social, histórica e política. A maternidade tem uma função social e deve ser assumida também por toda sociedade. Tem, portanto, um protagonismo especial, ao trazer a público o debate acerca da maternidade e de seus desdobramentos. Denunciaram e denunciam, com veemência, que devido à supremacia do poder masculino, estabelecida pelo sistema patriarcal, a divisão sexual do trabalho é desigual, sexista/racista, o que resulta na sobrecarga dos cuidados, do trabalho doméstico e demais encargos com a maternidade e os cuidados para com a família, de maneira brutal, sobre as mulheres, e, em particular, às mães negras. Não é por acaso que a criança malcriada é tratada num sentido pejorativo, como ‘filha da mãe‛. O fato de o pai ser um ausente, quase sempre, na criação e educação das crianças, não recebe o mesmo nível de repúdio e cobrança por parte da sociedade. Não por acaso, no Brasil, que ainda mantém uma ideologia patriarcal, são altos os índices de crianças que não têm o nome do pai nas certidões de nascimento. Calcula-se em mais de cinco milhões de crianças de pais desconhecidos.

A maternidade deve ser tratada como uma questão ampla e profunda e, portanto, não deveria ser um problema apenas pessoal e individual de mães, mas sim fazer parte de um projeto político e social, no qual mulheres e homens deveriam ter direitos, oportunidades e condições iguais para o pleno exercício da cidadania, incluindo a maternagem/paternagem.

A creche, então, seria um instrumento para viabilizar e consolidar a construção de uma sociabilidade saudável entre crianças, de forma a fortalecer os vínculos maternos e paternos. As crianças teriam o direito à atenção, ao afeto, a brincarem livremente, com alimentação adequada e espaços de lazer, de descanso conforme suas necessidades. A maternidade não pode ser da responsabilidade apenas das mulheres, deve ser uma questão colocada para toda a sociedade. Trata-se do nascimento de um novo ser humano, que merece o acolhimento e os cuidados de afeto, higiene, alimentação e assistência. As políticas públicas deveriam estar voltadas para atender às crianças pequenas que têm sido historicamente secundarizadas, invisíveis e consideradas um assunto menor. A creche não seria para substituir as famílias, e sim para valorizar e aprofundar o seu papel na formação das crianças e da cidadania infantil.

Ao tratarem da creche com uma concepção mais ampla de cidadania, as crianças, as mães e os pais são necessariamente incorporados num processo educacional multidisciplinar e democrático. O movimento de luta por creches, e principalmente as feministas, pautaram direitos para as crianças, para as mães e para os pais. Organizaram um projeto para a Constituição que foi elaborado naqueles anos de 1987 a 1988, o que resultou na inclusão das bandeiras da creche como um direito das crianças pequenas à educação, ampliação da licença maternidade para 120 dias e a licença paternidade, que foi a grande novidade na época. A creche idealizada pelos movimentos de mulheres deveria ser pública, gratuita e oferecer um atendimento em período integral para crianças de 0 a 6 anos de idade. Seu significado pedagógico é uma proposta de criar condições objetivas para incluir os homens nos cuidados e assistência às suas crianças pequenas, numa iniciativa concreta de despatriarcalizar as relações familiares e sociais. Com o slogan “O filho não é só da mãe”, as feministas se uniram ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, um órgão público vinculado ao Ministério da Justiça, criado em 1985, voltado para elaborar políticas para as mulheres. Mostraram de forma sistemática aos constituintes a sua responsabilidade social, política e jurídica sobre os direitos das crianças, de suas mães e de seus pais.

Foram reuniões, encontros e seminários, congressos feministas, de sindicatos e manifestações de rua que chegaram até a Constituinte com tais reivindicações. Os resultados foram surpreendentes, apesar da maneira irônica como reagiram alguns parlamentares.

A política de creche foi, pela primeira vez na história brasileira, introduzida na Constituição Federal; passou a ser considerada tanto como um direito da criança pequena à educação em creches como pré-escolas, conforme o artigo 208, VI, mas também um direito de trabalhadoras e trabalhadores urbanos e rurais, de acordo com o artigo 7º., XXV, assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até seis anos de idade em creches e pré-escolas. Ou seja, a creche passou legalmente a ser direito da criança, de sua mãe e de seu pai. A classe trabalhadora ganhou um suporte fundamental para que suas crianças pudessem ser consideradas cidadãs e usufruíssem de uma educação plena.

Feministas, educadoras, sindicalistas, trabalhadoras/es das cidades e do campo sentiram-se vitoriosas/os com esses direitos devidamente reconhecidos no texto constitucional. A proposta de colocar creche na educação era uma forma de ampliar os horizontes políticos em relação às necessidades das crianças pequenas à sociabilidade, à afetividade, ao seu desenvolvimento social, físico, emocional, afetivo e intelectual.

Não basta ter o direito, no entanto. A implementação das novas conquistas legais não foi acompanhada de políticas educacionais integrais de atendimento às crianças de 0 a 6 anos. A legislação infraconstitucional separou crianças de 0 a 3 anos (creches) e de 4 a 6 anos (pré-escolas). Ambas as modalidades foram incorporadas ao sistema educacional e novos marcos legais foram criados e consagraram o direito à creche: Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, 1996, os Planos Nacional da Educação (PNE, 2001, 2014). No Plano de 2001 a 2011, a meta era ampliar a oferta de creches, de forma a cobrir pelo menos 50% da demanda, o que não foi alcançado, e teve que permanecer a mesma meta para o novo plano de 2014 a 2024.

Foram adotados diversos programas, ações e projetos para implantar e manter a rede de Educação Infantil. As creches foram incorporadas tanto pelas políticas sociais articuladas com ações de aumento de renda das famílias de extrema pobreza, como nas políticas de igualdade de gênero.

A necessidade social urgente de mães e pais para obter uma vaga, onde pudessem ficar seus bebês/crianças pequenas enquanto trabalham ou buscam o sustento de suas famílias, levou à implementação de creches por meio de convênios e outros arranjos, como atendimento parcial, que ameaçam os objetivos iniciais da luta: uma creche laica, antirracista e antissexista. Mesmo assim, não se alcançou a cobertura de vagas. Quando feministas e demais mulheres propuseram que as políticas de creches fossem incorporadas à Política Nacional para as Mulheres (PNPM) da Secretaria de Políticas da Presidência da República – SPM-PR, criada em 2003, objetivavam a incorporação de gênero/raça/etnia na superação dos problemas advindos da divisão sexual do trabalho e das práticas sociais de cuidado, que reforçam os estereótipos classistas/ sexistas/racistas. Estudos recentes [1], no entanto, mostram que a creche se voltou para manter as mulheres no mercado de trabalho e não tem chegado a atender de forma mais ampla às necessidades básicas das crianças. Não têm tido como necessidade primordial o atendimento integral qualificado de crianças pequenas, entendendo-o como direito à educação, cuidados e assistência.

[…] A garantia do direto à creche e à pré-escola esteve prevista como uma ação nas três edições dos PNPMs, embora a abordagem do tema tenha variado ao longo do tempo, aproximando-se mais da constituição de uma rede de equipamentos sociais que reconheça o valor do trabalho doméstico não remunerado (FARAH, 2004). No I PNPM (2004- 2007) a questão das creches é abordada tanto como uma prioridade no capítulo “Educação inclusiva e não sexista”, quanto como um dos equipamentos sociais que devem ser implementados para viabilizar a inserção e permanência de mulheres no mercado de trabalho, como previsto no capítulo “Autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania” (BRASIL, SPM, 2004).

No II PNPM (2008-2011) a questão passou a ser melhor ancorada na divisão sexual do trabalho e nas reivindicações sobre rede de cuidado e uso do tempo das mulheres. O primeiro capítulo – intitulado ‘Autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho, com inclusão social‛ – incorporou as creches ao seu objetivo específico de promover a valorização do trabalho doméstico não remunerado e contribuir para superação da atual divisão sexual do trabalho‛. (BRASIL, SPM, 2013). […]

As creches não chegaram a ser incorporadas nos PNPMs como um direito das crianças pequenas à educação, aos cuidados e à assistência, mesmo sendo políticas públicas redigidas por feministas reconhecidas. Paradoxalmente, no início da luta por creches são as feministas que se destacam na contribuição de conceituar uma creche que seja um conforto para as mulheres, mas que assegurem o conteúdo pedagógico antissexista e antirracista na formação de bebês e crianças pequenas. As políticas feministas do estado não tiveram condições suficientes para abrir um espaço político para colocar a necessidade urgente de enfrentar a sociabilidade das crianças pequenas. Certamente, são muitos os fatores que dificultam priorizar diretrizes e políticas para a implementação de creches. Mas, sem dúvida, as crianças pequenas são compreendidas, em pleno século XXI, como um assunto menor em nosso mundo tão adultocêntrico. Mais do que fatores econômicos, há falta de vontade política em pensar e agir em favor das crianças pequenas e na Educação Infantil.

Do ponto de vista econômico, as informações e análises que nos fornecem as estudiosas a respeito do assunto mostram que não houve um repasse razoável de verba para os municípios construírem creches, o que afeta consideravelmente o atendimento e sua qualidade:

[…] Para financiar a rede de educação infantil foi criado, em 2007, a ‘Proinfância‛, de responsabilidade do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, com o objetivo de garantir a ‘assistência financeira para munic pios e Distrito Federal para a construção e aquisição de equipamentos e mobiliário para creches e pré-escolas.‛ (BRASIL, FNDE,2007). […] A implementação do Proinfância, de 2007 a 2011, foi limitada, tendo sido conveniadas cerca de 2500 unidades, o que resultou, em grande medida, em obstáculos à implementação do programa, como a dificuldade dos municípios com o sistema de conveniamento do Governo Federal e comprovação de dominialidade de terrenos para a construção de unidades… […]

Os convênios seguem o conteúdo pedagógico e cultural estabelecido pela entidade social que assume o contrato com o poder público. Os indicadores da cobertura da demanda por creches demonstram que a desigualdade social se mantém: nas creches as crianças mais pobres são a maioria.

As creches terceirizadas por meio de convênios – que são a aposta da gestão João Doria (PSDB) para expandir vagas na rede municipal– registram, na média, condições piores de atendimento, com maior proporção de alunos por educador, supervisão pedagógica deficiente e infraestrutura inadequada. Esse tipo de unidade também foi priorizada pela gestão Fernando Haddad (PT) e já abriga mais de 80% dos alunos menores de 4 anos. As falhas foram apontadas em auditoria do Tribunal de Contas do Município, que compara as unidades conveniadas com as diretas, feita em 2016. As condições ainda são as mesmas.[2]

No Seminário Educação Infantil em creches: Uma História da Luta das Mulheres [3], realizado na Faculdade de Educação da Unicamp, em 04/04/2017, com a participação de cerca de cento e cinquenta pessoas, profissionais de creche e pré-escola, sindicalistas, movimentos populares e estudantes, foram trazidos desafios que colocam como prioridade a defesa de uma educação descolonizadora, antissexista e antirracista. Há uma necessidade generalizada de se recuperar as diretrizes pedagógicas sob uma perspectiva de gênero, raça/etnia, que haviam sido esboçadas nos anos de 1970 e 1980.

A creche deveria ser um espaço com condições adequadas para que as crianças pequenas convivessem de forma democrática com outras crianças pequenas de diversas idades, e também com outras pessoas adultas que não fossem apenas seus parentes diretos. A creche deveria ser um local no qual a principal atividade pedagógica seria a de brincar.

Na formação de educadoras/es, há necessidade de se abordar, sem sombra de dúvida, a questão das sexualidades, gênero, raça/etnia e demais desigualdades sociais e econômicas com as quais bebês e crianças pequenas convivem. Deve, sobretudo, compreender a construção social de feminilidades e masculinidades, desnaturalizar as opressões e buscar respeitar a construção das identidades coletivas e individuais.

O Seminário apontou a necessidade de uma creche orientada pelo princípio da laicidade, em que se poderia lidar com as crianças pequenas oriundas de quaisquer meios religiosos ou até mesmo sem religião. Nesse espaço, poderia haver profissionais mulheres (trans) e homens, desde que estivessem devidamente habilitados e qualificados para esse trabalho de relações e diálogos com bebês e crianças muito pequenas. Uma das questões levantadas como crucial foi o medo generalizado de colocar profissional homem, transexual ou homossexual para lidar com crianças pequenas. Há um pensamento preconceituoso e discriminatório generalizado de que há o risco de ocorrer pedofilia e estupro por parte desses profissionais. A questão deve ser enfrentada com debates, estudos e avaliações periódicas das práticas que ocorrem ainda em pequena proporção.

Outro problema muito grave é a falta de creches e de profissionais, o que leva à redução do período de permanência das crianças nas creches, e fere o seu direito de acessar a creche de qualidade em período integral. Um desdobramento disso é a judicialização das vagas das creches. Se a mãe ou pai entra com mandado de segurança (por tratar-se de direito líquido e certo) devido à falta de vaga para seu filho, o Judiciário concede ordem para colocar a criança no equipamento, pois a creche é um direito constitucional. A decisão judicial obriga a direção da creche a receber de imediato a criança, mesmo sem que haja vaga. Se a diretoria da creche se recusa a cumprir a ordem judicial por falta de vagas para acolher e atender bebês e crianças pequenas no seu estabelecimento, será punida pela Secretaria de Educação. A creche deixa de ser o equipamento social voltado especialmente para educar, cuidar e assistir crianças pequenas. Com a superlotação autorizada e reforçada inclusive pelo Judiciário, estas se tornam depósitos de crianças, situação frequente nas creches, e que foi muito denunciada durante o Seminário.

O momento é de impasse: enquanto os estudos e as práticas pedagógicas propõem uma educação despatriarcalizadora e descolonizadora no Brasil, grupos de extrema direita forçaram e conseguiram a retirada das expressões gênero, identidade de gênero e orientação sexual dos planos de educação e da Base Curricular Nacional de Ensino. Ao retirar gênero, pretendem educar a sociedade para a submissão, sufocar os movimentos feministas e de mulheres, os movimentos antirracistas e LGBTs, reduzindo assim o potencial de resistência de um povo, o que interessa aos capitalistas para manter a população dominada e alienada. Não dá para aceitar tal retrocesso. A creche é historicamente um espaço de resistência. Educar é tomar partido [4], é defender a causa maior da humanidade, que é a dignidade, a ética e não há, portanto, que fugir da realidade e das questões sociais que impedem o acesso à justiça e à cidadania.

Conclusões

O Movimento de Luta por Creches, articulado com sindicatos, movimentos feministas e de mulheres, principalmente as periféricas, intelectuais pesquisadoras/es, com o apoio fundamental do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) obteve uma grande vitória ao ter incluído na Constituição brasileira a bandeira da creche como um direito das crianças pequenas (0 a 6 anos) à educação em período integral. Pela primeira vez, a criança pequena passou a ser pautada nas políticas públicas específicas que dessem conta da Educação Infantil. Passou a ser visibilizada como um ser humano que deve se desenvolver sob a perspectiva de sujeito de direitos e de cidadania, desde que considerada a necessidade de assistência, cuidados e educação.

Cabe às famílias o direito de escolha se querem ou não a creche para suas crianças. A Educação Infantil constitui a primeira fase da Educação Básica e objetiva ao desenvolvimento integral das crianças pequenas, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, reforçando as ações familiares e comunitárias. As tarefas do cuidado, da assistência e educação de bebês e crianças pequenas, indissociáveis, podem ser realizadas tanto na esfera doméstica, como no espaço público, por meio das creches. A creche ganhou status de política pública e se tornou pauta da agenda voltada principalmente para a educação.

As políticas pós-constituição de implementação das creches, no entanto, levaram à redução dos direitos constitucionais das crianças pequenas, ao dividi-las em dois grupos: um de 0 a 3 anos (creche) e o segundo de 4 a 5 anos (pré-escola). A partir de 2009, no Brasil, passou a ser obrigatória a matrícula de crianças de 4 a 5 anos na pré-escola. A cisão entre a creche e a pré-escola trouxe a valorização da pré-escola e estigmatizou a creche (ROSEMBERG, 2014)[5]. Tal divisão ocorre no sentido de reduzir o valor da creche e supervalorizar a pré-escola, o que ameaça tanto a creche como a pré-escola. Esta, segundo Rosemberg, perde o prefixo pré e deixa de ser infantil, aproximando-se cada vez mais do Ensino Fundamental. Por outro lado, há uma resistência em integrar as creches ao sistema educacional. Outro aspecto que tem sido nevrálgico é o reforço constante e cada vez maior de implementar políticas familistas ou familialistas nas creches, e impedir a introdução de políticas de equidade de gênero. Com isso, reforça-se o estereótipo de que há só um tipo de família, composta por pai, mãe e crianças. Mantém a hierarquia entre os membros da família, em que o poder masculino vale mais do que o poder feminino, ou seja, prevalece a ideia da desigualdade entre os sexos. Ignoram-se as outras formas de organização familiar, nas quais pode haver só a mãe, a avó, duas mães, uma mãe e uma avó, dois pais, avô, ou outras combinações. Quando falamos de equidade de gênero, estamos valorizando qualquer organização do grupo familiar, seja só de mulheres ou só de homens, ou de mulher e homem e, também, as famílias compostas de pessoas trans. E não podemos esquecer de que as famílias são originárias de várias etnias, possuem cores diversas e vêm de classes sociais distintas. Todas têm que ser devidamente consideradas.

Nem todas as creches já implementadas atendem em período integral e a pré-escola atende meio período. Há um número de equipamentos muito limitado em relação à demanda existente. Do total de 10, 3 milhões de 0 a 5 anos, 7, 7 milhões não estavam matriculadas em creches ou pré-escolas. (Pnad – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, com dados apresentados pelo IBGE, em 29/03/2017). Somente 25,64% das crianças nessas faixas etárias estariam frequentando creches ou pré-escolas. O Plano Nacional de Educação prevê que, até 2024, 50% das crianças de 0 a 3 anos estejam em creches, mas está ameaçado de realizar, devido à aprovação, em dezembro de 2016, da Emenda constitucional que congela o orçamento em áreas prioritárias como Educação, Saúde e outros programas sociais.

Há ainda um agravante, as crianças precisam brincar, atividade fundamental, pelo menos até os 6 anos de idade. Mas não é o que ocorre na maioria das escolas brasileiras. Segundo o Censo Escolar 2016, 41,3% das creches brasileiras não têm parquinho. O porcentual é ainda maior (58,4%) nas unidades com pré-escola (alunos de 4 e 5 anos).[6]

Tem ocorrido com frequência nos diversos municípios a implementação de creches de jornada parcial para ampliar o número de crianças atendidas. A creche com o propósito de educar para a convivência numa sociedade plural e democrática precisa de profissionais, espaço físico e social e tempo.

A proposta das feministas de que a creche propicie o avanço de políticas de enfrentamento da divisão sexual do trabalho desenvolveu-se pouco até agora. As mulheres são a maioria das profissionais de creche, a feminização do cuidado é histórica e se mantém como se fosse naturalizada. Ou seja, o cuidado permanece intacto. Para haver um efeito transformador nas creches, é preciso que a sua implantação seja acompanhada de políticas de equidade de gênero, nas diversas áreas de convivência social, cultural, de trabalho e principalmente na educação e na formação de profissionais para o enfrentamento das desigualdades sociais, econômicas e étnicas entre mulheres e homens, tanto no espaço público quanto privado.

As creches que têm sido implantadas juntamente com a pré-escola são de tempo parcial no atendimento às crianças, o que impede o exercício das mães ao acesso, com autonomia, à vida política, cultural social e econômica. Por parte do estado brasileiro, não houve um esforço suficiente para dar prioridade à questão da creche – um assunto menor, sem dúvida, nas pautas

políticas que orientam a atuação do poder público.

Por último, coloco em destaque uma das cinco propostas sugeridas por Fúlvia Rosemberg, no Seminário Internacional de Primeira Infância, em junho de 2014, que:

[…] é necessário dar visibilidade ao bebê e à creche em nossos discursos, em nossas práticas, em nossas estatísticas, para poder monitorá-los com ética, avaliar acertos e erros de políticas e programas que defendemos ou implementamos e que podem beneficiar ou não os bebês e suas mães. Toda atenção é pouca, porque as creches (e pré-escolas também) são as únicas etapas educacionais estritamente conceitualizadas pela idade do usuário.

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Notas

[1] MARCONDES, Mariana Mazzini; CRUZ, Maria do Carmo Meirelles. Políticas de Creches no Brasil: até onde caminhou o compromisso com a Igualdade de Gênero? In: Até onde caminhou a revolução de gênero no Brasil?’ –

[2] Matéria publicada em 21/05/2017 no jornal Folha de São Paulo, com o título Creches públicas terceirizadas têm falhas, aponta auditoria.

[3] Seminário Educação Infantil em Creches: uma história da luta das mulheres, organizado por Ana Lúcia Goulart de Faria; Maria Amélia de Almeida Teles; Flávio Santiago e com as convidadas e

convidado: Tânia Corrallo Hammoud (Psicóloga e psicanalista ,

integrante do Movimento de Luta por Creche 1979-1984), Darci Terezinha De Luca Scavone (Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de São Paulo) , Adriana Alves Silva (UDESC/ Prefeitura Municipal de Florianópolis), Flávio Santiago (Doutorando em Educação da FE/Unicamp), realizado no dia 4/4/2017, no Salão Nobre da Faculdade de Educação da Unicamp. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=GwFgKBf-bpQ>

[4] Fala da Diretora Associada da FE/UNICAMP, Débora Mazza, em 26/06/2017, no lançamento do livro de minha autoria: Breve História do Feminismo no Brasil e Outros Ensaios.

[5] Fúlvia Rosemberg (1942 – 2014), pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, feminista e uma das mais importantes estudiosas sobre creche e Educação Infantil no Brasil.

[6] Metade das pré-escolas no Brasil não tem parquinho, mas lei diz que brincar é fundamental até 6 anos.‛ Matéria publicada no jornal Gazeta do Povo, na coluna Educação/ensino Infantil,

08/05/2017.

Referências

FINCO, Daniela; GOBBI, Marcia Aparecida; FARIA, Ana Lúcia Goulart de (orgs.). Creche e Feminismo. Campinas, SP: Edições Leitura Crítica; Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2015.

ITABORAÍ, Nathalie Reis; RICOLDI, Arlene Martinez (orgs.) Até onde caminhou a revolução de gênero no Brasil? Associação Brasileira de Estudos Populacionais – ABEP; Fundação Carlos Chagas; CAPES e CNPQ. Belo Horizonte (MG), outubro de 2016.

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