Da catástrofe à possível transformação

Antes que se dissipe totalmente névoa do espanto e vergonha, é possível começar a pensar mudança radical do futebol brasileiro

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Antes que se dissipe totalmente névoa do espanto e vergonha, é possível começar a pensar numa mudança radical do futebol brasileiro

Por José Geraldo Couto, no blog IMS

Tudo bem: o nocaute de ontem doeu, ainda dói e continuará doendo por um bom tempo. O trabalho desse luto não tem dia nem hora para terminar. Mas, mesmo antes que se dissipe totalmente a névoa do espanto e da vergonha, é possível começar a pensar e tentar acreditar numa mudança radical do futebol brasileiro. Usar a catástrofe de forma pedagógica, produtiva, transformadora.

A maneira mais eficaz de barrar uma refundação saneadora do nosso futebol é apontar o dedo para algum bode expiatório: “culpa do Felipão”, “culpa da Dilma”, “culpa do Zúñiga”, “culpa do Mick Jagger”. Extirpa-se o culpado e voltamos a ser os melhores do mundo. Evidentemente, não é assim que funciona.

Para começar a entender as razões do fracasso brasileiro talvez seja útil observar, por contraste, as razões do sucesso alemão.

Revolução silenciosa alemã

Quando a Alemanha perdeu a final da Copa de 2002 para o Brasil, os dirigentes esportivos do país decidiram iniciar um processo de renovação e preparação de longo prazo para voltar a conquistar um título, algo que não acontecia desde 1990. O ex-artilheiro Jürgen Klinsmann assumiu como treinador e chamou como diretor técnico da seleção o também ex-atleta Oliver Bierhoff, que segue até hoje no posto.

Pois bem: a Alemanha perdeu em casa a Copa de 2006 (ficou em terceiro) e não houve tragédia. Klinsmann saiu, mas deixou no lugar seu assistente, Joachin Löw, que obteve também a terceira colocação na Copa de 2010, na África do Sul, e continuou no cargo.

De 2006 até hoje, sob o comando de Klinsmann/Löw/Bierhoff, a seleção alemã viveu um processo contínuo de abertura para os naturalizados e filhos de imigrantes, beneficiando-se do surgimento de uma talentosa geração de atletas. Manteve o mesmo elenco-base e a mesma filosofia de jogo – troca de passes, deslocamento permanente, inversão de posições entre jogadores polivalentes – desde a Eurocopa de 2008 (na qual foi vice) até hoje.

No Brasil, no mesmo período (e praticamente desde sempre), as coisas se deram de modo radicalmente distinto. Com o fiasco na Copa de 2006, atribuído pela mídia e pelo torcedor comum ao excesso de estrelismo e de dispersão do “quarteto mágico” (Ronaldo, Ronaldinho, Kaká, Adriano), passou a vigorar uma filosofia austera e militarista, encarnada na dupla Dunga-Jorginho. Futebol bonito passou a ser visto como frescura. A ideia do jogo como guerra, da “pátria em chuteiras”, passou a vigorar com mais força do que nunca. Concentração e cara feia eram mais valorizados do que o talento e a competência técnica.

Sebastianismo e pensamento mágico

Com o fracasso de Dunga e sua equipe na África do Sul e, depois, a passagem anódina de Mano Menezes pelo comando da seleção, a CBF recorreu a um traço nunca assaz estudado do imaginário popular: o sebastianismo. Quem foi o último treinador a conquistar um título mundial para nós? Luiz Felipe Scolari. Então está resolvido: como o redivivo rei Don Sebastião, Felipão voltaria das brumas do passado para nos conduzir à glória.

Quer dizer: enquanto a Alemanha apostou no planejamento e na preparação intensiva, o Brasil apostou no pensamento mágico, na manipulação dos sentimentos mais primários dos torcedores. Até quando vai durar essa crença de que a mera camisa amarela mete medo no adversário, de que entrar em campo com a mão no ombro do companheiro da frente, como uma fileira de prisioneiros, e gritar o hino com lágrimas nos olhos faz o time jogar melhor?

Mas talvez haja uma camada ainda mais profunda de problemas abaixo dessas trapalhadas de superfície. No período de que estamos falando houve uma dramática escassez de craques nos gramados brasileiros, sobretudo os de meio de campo, responsáveis pela organização e criação de jogadas. Nos melhores tempos do futebol brasileiro, sempre foi esse o nosso ponto mais forte. O que foi feito dessa estirpe que teve Didi, Gérson, Ademir da Guia, Rivellino, Falcão?

Proibido pensar

Em algum momento parece que nossos treinadores e dirigentes caíram na falácia de que o futebol moderno não precisa pensar. Pelo contrário: pensar atrapalha. Bastam preparo físico e disposição.

Há razões estruturais para essa escassez. Uma delas é a saída precoce de nossos jogadores mais talentosos, vendidos para clubes da Europa e da Ásia quando ainda estão em formação. Rompe-se assim a cadeia de aprendizado coletivo que deu ao longo das décadas consistência ao estilo brasileiro de jogar futebol, que encantou o mundo e hoje parece cada vez mais distante. Alguns exemplos concretos: no Santos, Zito passou o bastão a Clodoaldo; no Botafogo, Didi o passou a Gérson.

Os jovens talentos que permanecem no país são logo moldados, desde as categorias de base, ao futebol-brucutu de correria e “pegada” que tem tornado nossos jogos tão feios e desinteressantes. Formam-se zagueiros vigorosos, volantes de contenção, atacantes velozes. Mas os meias de criação são desprezados como coisa do passado, resquícios de um futebol romântico que já não existe. É fato que, no mundo todo, são cada vez mais raros os Pirlos e os Zidanes. Mas estamos na vanguarda da destruição dessa categoria de artistas.

Desperdício de talentos

Para agravar o problema, no nosso caso, os poucos meias extraordinários surgidos nas últimas décadas no Brasil foram, por um motivo ou por outro, desperdiçados em termos de seleção brasileira. Refiro-me a Djalminha nos anos 90, Alex na primeira década do século 21, a Paulo Henrique Ganso agora. É certo que eles não foram apenas vítimas dessa exclusão, mas contribuíram para ela de maneiras diversas: rebeldia sem causa, apatia, timidez. Mas o fato é que a paciência com eles, por parte dos treinadores da seleção, sempre foi muito menor do que com outros atletas de muito menos qualidade e mais “comprometimento” (leia-se, mais submissos ao paternalismo/autoritarismo reinante).

Enfim, para encerrar esse arrazoado que já vai longo e que ficou mais técnico do que eu esperava, eu diria que o desastre de ontem no Mineirão é a oportunidade que temos para amadurecer na marra, para fazer com que nossa seleção deixe de ser uma “família” composta por atletas infantilizados em torno de um pai caloroso e castrador e se torne aquilo que deve ser: uma forte equipe de futebol.

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6 comentários para "Da catástrofe à possível transformação"

  1. Fernando disse:

    Sábias palavras, sr. Ruy. Realmente, o que nos falta é um projeto de país, de nação. Acho que já estamos engatinhando neste sentido mas para que as coisas andem é necessário que algumas reformas importantes sejam feitas para criar bases sólidas sobre as quais serão edificados os pilares de uma verdadeira nação.

  2. Ruy Mauricio de Lima e Silva Neto disse:

    Parabéns ao articulista.Mesmo estando a milhares de léguas do que possa ser chamado remotamente de autoridade em futebol. tenho lá a minha quota de sofrimento e alegrias com o Fluminense, desde o final dos 50, para me permitir alguma peruada que ao menos se pretende construtiva.Incorporando todas as críticas e as sugestões que foram expostas neste artigo, eu ainda seria mais radical.Esta obsessão e este fanatismo com que, de uns tempos para cá, ficou convencionado que toda a nação brasileira venera o violento esporte bretão tem qualquer coisa de espúrio, qualquer coisa de dirigismo e de má-intenção, não tem não? Apelo aos mais vividos, especialmente aos que presenciaram a substancial diferença que se verificou na Copa entre nós, comparando-se a de 1966, que pode ser descrita como a última de uma fase meramente lúdica ou “romântica”, para a altamente “produzida”, “marketada” e ufanista Copa de 70 em que pela primeira vez, no Brasil, se articulou a figura de um esporte de ampla aceitação nacional com os interesses comerciais e, naquele país da gorilada da época, com a ideologia dos detentores do poder.Pois foi assim criada uma válvula de escape, pelo menos para um público menos lúcido, para a qual seria direcionada suas frustrações do dia-a-dia que eram bastante intensas naquele processo de violenta concentração de renda que daria margem ao tal Milagre Brasileiro da Revolução, entre 68 e 74 Bem, a gorilada já se foi, mas o esquemão comercial cresceu exponencialmente especialmente nestes tempos atuais de comunicação global instantânea.Pois eu proporia, não já, não agora que estamos por baixo e objeto de galhofa planetária.Mas tão logo ganhemos o famigerado Hexa, algum dia, que denunciemos esta manipulação espúria que as elites fazem desde 70 e que é motivo de divertido espanto do público internacional.Precisamos acordar como Nação. E Nação como centro irradiador de Tecnologia,de Ciência e de Artes. Sim, sempre haverá espaço para o querido futebol dentro desta última categoria, mas não nesta condição atual como A Forma Máxima de Realização e Exultação de um Povo.Conquistado finalmente o Hexa, imporíamos uma condição de Hors-Concours por uns 20 ou 30 anos (5 ou 6 copas) após o que voltaríamos com o Futebol-Arte que tanto primeiro nos celebrizou, tendo antes o cuidado de extirpar todos os atuais parasitas, profiteurs, corruptos e gangsters que nos caracterizam nos dias que correm.

  3. Parabéns pelo excelente texto José Geraldo.
    Não sou fã de futebol e o único momento que assisti um jogo na COPA foi quando ouvi trezentos mil palavrões e “descobri” que o Brasil estava perdendo de 5 X 0. Suas palavras foram sábias e há muito o que aprender com esta derrota. Temos excelente profissionais, a prova disso é que os clubes estrangeiros contratam jogadores brasileiros, precisamos “contratar” ensinamentos dos estrangeiros e tornar o nosso futebol para tático e racional.
    Foi provado que emoção, força de vontade e ídolos não ganham títulos e sim “gol´s”.
    Abraços a todos!!!!

  4. Fernando disse:

    Como sempre, no Brasil, o problema é conceitual. Faz-se uma salada de vários itens e se tenta aplicar uma fórmula mágica, tal como descrito no artigo, partindo de premissas equivocadas para chegar aos melhores resultados. O mundo mostrou em 2014 que aprendeu a jogar futebol. Isso não é mais um patrimônio exclusivo do Brasil e algumas poucas seleções. Agora a coisa cresceu, mudou, aperfeiçoou-se. A Alemanha que o diga. E que possamos dizê-lo também daqui a algum tempo depois de assimilarmos a lição e aprendermos que mudanças são bem-vindas e necessárias.

  5. V Nicolau disse:

    Não há mudança no horizonte simplesmente porque futebol é dinheiro, não esporte. Em dois meses tudo estará esquecido. Alguém lembra do fiasco dos penaltis da Copa América?com cartas das donas Lúcias e “comentaristas” esportivos bem pagos pelos cartolas tudo será maravilhoso de novo até a próxima derrota humilhante.

  6. Jonatas Matias Xavier disse:

    “Enfim, para encerrar esse arrazoado que já vai longo e que ficou mais técnico do que eu esperava, eu diria que o desastre de ontem no Mineirão é a oportunidade que temos para amadurecer na marra, para fazer com que nossa seleção deixe de ser uma “família” composta por atletas infantilizados em torno de um pai caloroso e castrador e se torne aquilo que deve ser: uma forte equipe de futebol.
    Preferiria que fosse as duas coisas ao mesmo tempo.

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