Metrópoles, crise civilizatória e alternativas

Um dos grandes arquitetos brasileiros dispara: cidades são essência do ser humano; mas crescimento entregue à especulação imobiliária só pode dar desastre

Foto: Joca Duarte
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Paulo Mendes de Rocha, entrevistado por Rôney Rodrigues e Victor Chinaglia

Buzinas, gritos, motores roncando, algaravias urbanas. “Para uma conversa sobre São Paulo, essa música de fundo é bem apropriada”, afiança o arquiteto e urbanista Paulo Mendes da Rocha, antes de fechar a janela de seu escritório, localizado na rua General Jardim, centro da cidade. Com o ambiente silenciado, ele se debruça sobre uma maquete de papel: o Cais das Artes, na Enseada do Suá, em Vitória, sua cidade natal.

“Olha só, o café do teatro se comunica com essa calçada aqui, você pode frequentar o café mesmo sem espetáculo”, explica o arquiteto. “A técnica só revela uma monumentalidade que já havia”.

“Mas tem que ter sensibilidade para captar”, alguém sugere.

“Não é sensibilidade, meu bem” interpela. “Sensibilidade não se pode ensinar, muito menos cultivar. É sabedoria e raciocínio! Assim, você transforma a dimensão artística em uma frescura”.

Com essa “urgência de discurso” – “eu já estou velho”, explica – Mendes da Rocha é incisivo em suas opiniões: acredita que o transporte com carros é uma “tolice”, defende a criação de uma rede hidrográfica para integrar a América Latina e afirma que o arquiteto tem obrigação política de alterar a “rota de desastre” nas cidades.

Mendes da Rocha é considerado um dos maiores arquitetos brasileiros. Vencedor, em 2006, do prêmio Pritzker —  o mais importante da arquitetura mundial –, é autor de grandes projetos, entre eles, a reforma e intervenção da Pinacoteca e da Estação da Luz, do pórtico e da cobertura na Praça do Patriarca e do Museu Brasileiro da Escultura (MUBE), todos em São Paulo.

Hoje, Mendes da Rocha não disfarça o saudosismo. “A vida é muito curta e não se pode pretender fazer nada aos 70 ou 80 anos de vida, portanto, só podemos ter um alento, digamos, no que vai continuar além de nós”, diz ele. (Rôney Rodrigues)

Como a arquitetura contribuiu para o processo de civilização?

(Longo silêncio) Civilização de quem?

Da Europa e da América, por exemplo. O processo como um todo.

Pode-se dizer que a primeira manifestação do homem, encontrada em arqueologia e em estudos, é a arquitetura, afinal, é o modo de ficar no lugar. Quando o homem começou a se fixar, teve que organizar a natureza: ocupou cavernas, empilhou pedras, dominou o fogo. Essa repetição de atos e manobras que garantam a sua vida constitui o que poderíamos chamar de genealogia da construção da cidade e o estabelecimento de uma linguagem que descreve as coisas. Estamos falando de milhares de anos. Mas vamos dar um pulo no tempo, senão vai demorar muito.

Existe um quadro famosíssimo [Vulcano ed Eolo maestri dell’umanità, de Piero di Cosimo, cerca de 1500-1505] e discutido de uma maneira muito especial por Erwin Panofsky [1892-1968, crítico e historiador da arte alemão, estudioso em iconografia], em que ele comenta a passagem da Idade Média para o Renascimento. Esse quadro é lindo porque, em primeiro plano, há dois velhos sentados no chão, em torno de uma fogueira, e se percebe que um deles tem a perna “estropiada”. Mais ao fundo, uma nítida e esquemática construção, como se fosse uma casinha: dois pilares de madeira, telhado e uma arquitrave em forma de tesoura. Um burro ao lado. Os dois velhos são Vulcano [deus do fogo], expulso do Olimpo porque ousou usar o fogo como instrumento, e Éolo [deus do vento], que juntos produziram a forja. Com o vento e o fogo conseguimos tornar maleável o ferro e produzir a ferradura para o cavalo. Ou seja: transformamos o cavalo em máquina.

Veja a genealogia da imaginação. É a fábrica, a forja, a máquina, a casa! É tudo arquitetura. A natureza não é habitável, é uma droga, um inferno com vulcões e tsunamis e outros fenômenos. Um de nós não sobrevive 15 dias na floresta. Transformar a natureza e torná-la habitável: eis a questão da arquitetura. Portanto, a arquitetura não contribuiu para o processo de civilização, ela é esse processo. Veja o ensino da arquitetura, as universidades, o país atrasado, a América, o colonialismo, o rio Amazonas. Temos a obrigação de influir politicamente para inverter essa rota de desastre e fazer brilhar o êxito da técnica.

O senhor tocou num ponto interessante em sua obra: a análise da interferência do colonialismo em nossas vidas. Quais foram as consequências da colonização em nossa concepção de cidade?

Mencionei o colonialismo porque, na época em que a América foi descoberta, se dizia que o Sol girava em torno da Terra. E o senhor Galileu [Galilei, 1564-1642, cientista italiano] disse que o nosso planeta girava em torno do Sol e quase foi condenado à fogueira. Inauguramos algo aqui muito mal inaugurado, não soubemos fazer a justa réplica às tolices que o colonialismo impunha, tornando o Brasil próspero, como tinha que ser. Na América não se aplicou o melhor do conhecimento, ao contrário, foi colonizada com dogmas e princípios tolos, com uma visão espoliativa de consumir a riqueza do outro. Para falarmos das coisas de hoje, é preciso lembrar a monumentalidade daquele momento.

No Brasil se inaugura o Ministério das Cidades justamente para fazer com que o governo ouça a voz daqueles que dizem que temos que providenciar a construção do espaço habitável, não simplesmente entregá-lo ao mercado, que é a visão colonialista. O êxito da técnica é uma maravilha e é isso que a cidade deve ser. O CAU [Conselho de Arquitetura e Urbanismo] e o ministério das Cidades existem para que se ouça essa visão política de transformação inexorável para garantir o nosso futuro e para alimentar a nossa vida. É por isso que contei a história de Vulcano e Éolo: a coisa é séria para fazer a forja. Um pagou caro e foi expulso da morada dos deuses.

Na década 1960, houve um esforço para pensar o Brasil e a arquitetura teve papel fundamental nesse projeto. No contexto de hoje, com o desmonte do Estado, como pensar a arquitetura brasileira?

Não precisa abolir a ideia de mercado, mas não se pode entregar a construção do espaço de uma cidade exclusivamente à iniciativa privada. O país, a cidade e o espaço precisam ser planejados. O território brasileiro talvez seja o espaço mais extraordinário em rede hidrográfica do planeta e possui um projeto antiquíssimo de ligação no miolo do país, um canal que ligaria a Bacia Amazônica à do Prata, na Argentina. Teríamos que nos associar com outros países, portanto, seria um instrumento para a paz na América Latina. E ainda falamos besteiras sobre como vender apartamento.

O senhor poderia falar sobre o fenômeno da metropolização e os desafios enfrentados pelas cidades?

Eu estou velho e não tenho tempo para muitas entrelinhas: a metropolização não é fenômeno, é uma ação política feita pelos homens que têm poder. Os fenômenos não podem ser impedidos, e chamar o crescimento de São Paulo, que em pouco tempo chegou a 20 milhões de habitantes, nem sequer é metropolização. Foi um projeto que se deixou atrasar tanto que só havia trabalho aqui. Outra coisa, não precisa se amarrar em dívidas de 20 ou 30 anos para dizer que a “minha vida” é uma casa. É tolice a fixação na propriedade e na dívida, uma amarração com uma forma vil de capitalismo.

Esse crescimento desorganizado – ou simplesmente entregue à especulação do mercado imobiliário – só pode dar desastre. Não sou eu que estou dizendo: é a fotografia que se pode tirar agora do alto do Edifício Itália ou a televisão que sempre diz que “a Marginal tem 48 quilômetros de congestionamento”. O rio Tietê foi transformado em esgoto. Porém, quem tem dinheiro está livre de qualquer mal e vai aos fins de semana se divertir nas praias de São Paulo. Mesmo assim, nos últimos fins de semana, eles têm levado de 12 a 24 horas até a Baixada Santista. Não te parece uma tolice isso tudo?

E como resolver os problemas de mobilidade urbana?

Por que não se diz transporte público? Nada se mexe mais do que o universo urbano. Suponhamos que ficássemos três dias, numa experiência absurda, sem ninguém sair de casa. Não houve, então, “mobilidade urbana”. É uma expressão ampla, uma forma de abordar uma questão sem dizer nada. O transporte público foi a melhor maneira que me pareceu, física e mecânica, de desfrutar do pouco que a cidade já tinha, por que não ia dar tempo de fazer nada. Hoje, o grande problema da cidade é o transporte individual, particularmente o automóvel. É uma estupidez carregar 700 quilos de lata, queimando petróleo, e dizer que se está transportando alguém. Já fazem apartamentos menores que um automóvel.

Nada mais monumental que o sistema de transporte público. Acabo meu trabalho e sei que passa um trem, de três em três minutos, que me leva pra casa. Encontro você e vamos tomar uma cerveja, um torneiro mecânico passa e conversamos com ele, outra pessoa diz que há uma peça maravilhosa e eu ligo para uma amiga vir assistir comigo e voltamos para casa às onze da noite. A cidade é uma universidade. O êxito da técnica é uma maravilha, não um desastre que não anda para lá nem para cá.

E o senhor acredita que, desde as manifestações de junho de 2013, houve mudança nesse panorama da cidade?

Sobre as manifestações já foi dito tudo o que se tinha que dizer. O único aspecto que não se pode discutir é a ideia de manifestação em si, porque é a formação de consciência. Quantos estudantes há no Brasil hoje, incluindo primário, secundário e universitário? Milhões. Muitíssimas horas de aulas são dadas por dia e o professor tem 40 cretinos calados por obrigação, prestando atenção no que ele diz. Já imaginou a monumentalidade dessa manifestação?

Podemos tornar melhores muitas coisas que já existem. Arquitetura, no fundo, é essência do conhecimento. Não é a arquitetura que desfruta da técnica, mas ela solicita da técnica – com essas reflexões – aquilo que se deve fazer. É a escola mais importante da Universidade porque estabelece, no contraponto e na concretude, a um tempo só, arte, ciência e técnica. Não é uma somatória de conhecimento, é uma forma especifica de conhecimento arquitetônico. Nossos queridos mestres da FAU/USP diziam sempre: não se pode ensinar arquitetura, mas pode-se educar um arquiteto.

E os arquitetos brasileiros estão preparados para dar essa contribuição tão importante e desejada?

Tomara que não sejam apenas os arquitetos, coitados (risos). Quem deve resolver esse problema tão sério é toda a população. A arquitetura é uma forma peculiar de conhecimento que cogita essas questões no âmbito da Universidade e não são os arquitetos que vão resolver, mas a política. O arquiteto exerce uma profissão de desenvolvimento de projetos que tem uma dimensão social. Inclusive, nem precisa saber projetar, basta pensar e ajudar a construir a política que faz a cidade, o que já é um trabalho brilhante.

E o que, apesar de todos esses problemas descritos, ainda mantém esse desejo das pessoas estarem juntas?

Qual seria o outro desejo, estar sozinho? Nós temos que estar juntos. Você tem que aplicar a dimensão lírica e poética do significado das palavras. Necessidade é necessidade, mas você pode, claro, desejar o impossível. A concomitância de necessidades e desejos é que deu a nós, enquanto animais, o que chamamos de dimensão humana, inclusive na formação da linguagem. Ela nunca resolve estritamente o que desejamos, mas concomitantemente exprime esses desejos, o que se chama de altos ideais do gênero humano. Mais ou menos tentamos compreender o que somos.
A vida é muito curta, muito breve e não se pode pretender fazer nada aos 70 ou 80 anos de vida, portanto, só se pode ter um alento, digamos, no que vai continuar além de nós e, para nos exprimir, introduzimos a dimensão dos desejos, as visões utópicas e falamos do curso de nossas vidas. Isso quer dizer que sabemos que vamos morrer. Mas você poderia me perguntar: “por que, então, você está tão entusiasmado e animadinho?”. É porque sabemos também que não nascemos para morrer, mas para continuar. Essa é a essência da minha urgência do discurso. Eu não passo de um pobre capixaba…

Fonte: Revista Móbile

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