Brasil, salto interrompido

Horror que se exibe todos os dias em Brasília contrasta com movimento surdo e subterrâneo — mas real — de novas rebeldias. Como fazê-las emergir?

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“As instituições políticas representativas estão derretendo”

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Por Jean Tible | Imagens: Isidro Martins

Para Marco Aurélio Garcia,

militante e intelectual internacionalista / in memoriam

fora todos

Desde 2013 e seu junho disruptivo, o sistema político brasileiro está num processo de perda total de legitimidade. O atual momento (de um presidente ilegítimo e com aprovação popular praticamente inexistente1 representa por ora o ápice desse que se vayan todos contínuo de quatro anos, bem diferente do caso clássico e incisivo argentino que, em 2001, derrubou vários presidentes em poucos dias a partir de fortes mobilizações de rua2. Ao medo de todos pertencentes aos poderes constituídos em junho de 2013, sucederam tentativas de captura e esperanças de muitos que esse acontecimento fosse passageiro – a crise política, no entanto, persistiu e se agudizou.

Alguém, no entanto, vai se eleger em 2018 (se houver eleições) e essa pessoa virá de algum canto: do partido da justiça, da Globo ou da mídia, dos bancos, do sistema político moribundo (Geraldo Alckmin, Marina Silva3) ou alguma surpresa. Nesse sentido, vale perguntar se a Lava Jato é uma exceção para atingir o PT e alguns poucos mais (Eduardo Cunha, Sergio Cabral4), pois boa parte da casta política está aí, inquieta mas ainda relativamente intocada, tentando se segurar e abafar a Operação (como Temer e Aécio5, dentre outros). Vale questionar igualmente que economia resiste a investigações a fundo, via delações premiadas, de seus vínculos com o sistema político, das relações entre elites política e econômica (e até militar)? Imaginam isso ocorrendo nos EUA do complexo industrial-militar ou na França da antiga petroleira ELF e seu papel nas conexões com o continente africano (Françafrique)?

Qual a originalidade brasileira nesse contexto? É o país mais corrupto que todos os demais? A venda de decisões governamentais, promiscuidades entre “público” e “privado” e a corrupção da democracia seriam uma exclusividade nacional? Por que aqui assumiu essa dimensão6? Além disso, a limpeza por ora se limita a um setor bem específico do capitalismo brasileiro, as empreiteiras. Setores com suspeitas de mal-feitos como grandes grupos de comunicação e bancos estão no momento fora do leque investigativo e punitivo e temores destes se fizeram notar no processo de negociação da delação premiada de Antonio Palocci, ex-ministro de Lula e Dilma. Ademais, fica pendente uma investigação mais apurada sobre questão do “elemento externo”, acerca do papel dos EUA e suas agências nesse processo – talvez futuros vazamentos (leaks) ajudem também nessa empreitada.

choque

A ativista e pesquisadora Naomi Klein já pode acrescentar mais um estudo de caso ao seu importante livro (esgotado no Brasil)7. Um choque-golpe em forma de impeachment sem crime de responsabilidade, governo temerário e restauração neoliberal na seguinte agenda: drástica contenção dos gastos públicos, mudança na legislação do pré-sal favorecendo o capital estrangeiro, reorientação da política externa, o liberou-geral da terceirização, mudanças nas regras da aposentadoria, ataque aos povos indígenas, desmonte das políticas culturais, diminuição dos beneficiários do Bolsa Família, aumento do desmatamento, intensificação da repressão aos movimentos sociais e uma série de descalabros que poderiam compor uma lista quase interminável.

Entramos num buraco cada vez mais fundo – o abismo nos espreita – e o Estado do Rio de Janeiro é o retrato da calamidade (pública), ao não conseguir honrar mais compromissos mais básicos (manutenção mínima da infra-estrutura social, pagamento dos servidores), que pode atingir rapidamente o país como um todo.

Crise política, social (mais de dez milhões de novos desempregados em dois anos, a fome retornando e as desigualdades voltando a se acentuar) e econômica (recessão, economia em frangalhos). As reformas trabalhista e da Previdência como continuidade, desdobramento e motivação do golpe; nenhuma eleição chancelaria tal programa. Temos um sistema sem nenhuma legitimidade (e sem o crivo das urnas) aprovando reformas importantes e impopulares (em vários sentidos)8. Mesmo a queda de Temer não breca as reformas, já que ele se fragiliza justamente ao gastar boa parte do tempo e energia em defender-se das graves denúncias de corrupção que sofre, diminuindo o ritmo de aprovação dessas mal-chamadas reformas.

Creio que Temer não deve terminar seu mandato usurpador, mas de alguma forma, isso pouco importa: entrará outro (Rodrigo Maia9) em eleições indiretas e buscará efetivar essa obsessão golpista pela retirada de direitos dos trabalhadores e dos de baixo, junto com a continuidade do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles10. Até termos eleições diretas? Ninguém pode ter certeza que haverá eleições no ano que vem (previstas para outubro de 2018). Não é difícil vislumbrar mais um golpe no golpe, que pode tomar a forma de impedir a candidatura Lula, da adoção abrupta do parlamentarismo, adiamento do pleito ou qualquer outra manobra. É significativo para compreender nossa situação o fato do sistema não ter suportado nem mesmo um programa moderado de mudanças. Na justiça de exceção que se manifesta continuamente no país e agora atinge Lula em sua injusta e absurda condenação em primeira instância a uma pena de quase dez anos por um imóvel que ele não possui e visitou uma vez – de outra forma e numa intensidade bem distinta em relação ao emblemático caso do Rafael Braga11, pode-se dizer que Lula foi tornado preto (ou seja permanentemente condenável sem provas)12.

lutas

"Entramos num buraco cada vez mais fundo – o abismo nos espreita – e o Estado do Rio de Janeiro é o retrato da calamidade (pública)"

“Entramos num buraco cada vez mais fundo – o abismo nos espreita – e o Estado do Rio de Janeiro é o retrato da calamidade (pública)”

Vivemos uma insatisfação altíssima (e uma esmagadora maioria apoia eleições diretas imediatas, de acordo com as pesquisas13), mas sem expressão contundente nas ruas. É certo que tivemos atos fortes na greve geral do 28 de abril e no ato em Brasília do dia 24 de maio14, mas essas belas jornadas não tiveram continuidade nem lograram manter a pressão. Ocorrem várias mobilizações militantes sim, mas que penam em chegar nas “pessoas comuns”. Se o governo ilegítimo e seu mundo permanecem de pé (ainda que cambaleantes – até quando?), tudo indica que revoltas mais fortes estão por vir, inclusive por conta da deterioração das condições de vida da população. As crises tendem a piorar15.

A isso se soma um fato curioso: um sistema em crise e sem uma esquerda fazendo uma crítica radical a ele. Viveríamos um cenário de terra arrasada? Apesar da situação adversa e difícil, temos muita luta no Brasil – trata-se, certamente, de um dos países com movimentos mais fortes. Desde o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)16, sua Escola Nacional Florestan Fernandes (um belíssimo caso de educação popular) e todos os movimentos do ciclo de lutas que se inicia no fim dos anos 1970 ao surgimento de novas iniciativas subversivas. Podemos nos referir tanto ao fortalecimento (apesar do etnocídio nunca interrompido) dos coletivos indígenas e à exuberância LGBT, secunda, feminista e negra, quanto à uma miríade de experiências, urbanas e rurais (festas, hortas, saraus, ocupações variadas). Uma periferia bombando política, cultural e existencialmente. Um novo imaginário radical com tintas de autonomia de variadas intensidades. Podemos pensar numa cartografia selvagem conectando essas múltiplas terriorialidades: desde os territórios indígenas (que compõem 12% do país) aos ditos tradicionais (quilombolas e outros) aos quais se juntam ocupações de terra, prédios, locais de trabalho, cultura. Como conectar, fortalecer o apoio mútuo desse tecido organizativo subversivo, suas territorialidades livres e conexões numa infra-estrutura da vida?

Transição. Dissemos acima que o sistema político brasileiro está em xeque desde 2013. Isso também significa que um novo ciclo de lutas também se inicia nesse contexto; do país e da esquerda. O anterior (iniciado no fim dos anos 1970 e do qual os governos petistas são um desdobramento institucional e moderado) produziu uma série de “entidades agregadoras” (Partido dos Trabalhadores (PT), Central Única dos Trabalhadores (CUT), MST e outras mais). Hoje vivemos esse nó, um desafio de política-criação, de articulação das diferenças que as duas frentes de partidos e movimentos existentes (a Brasil Popular, puxada por MST, CUT e PT, e a Povo sem Medo, capitaneada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST) não conseguem efetuar ou só o fazem de forma (infelizmente) bastante limitada – deixam muitas ricas lutas de fora.

Nesse contexto, Lula permanece o principal personagem político do país desde 1989 e deve continuar ainda nesse posto por um tempo, mesmo se não puder ser candidato nas eventuais eleições do próximo ano. Político de maior aprovação popular apesar de todos os ataques, Lula mostra uma excepcional resiliência. Ontem e hoje, apresenta-se como problema e como solução. Ontem, personificou um ponto de convergência para boa parte da esquerda e ponto de referência para a população e os de baixo, mas também abafou experiências alternativas dessa mesma esquerda. Hoje, pode ainda representar um freio a um avanço (em curso?) da extrema-direita (seu candidato, o deputado Jair Bolsonaro alcança 20% nas pesquisas para as presidenciais) e contra o apetite arrasador da restauração neoliberal, mas é também um problema, pois ele não parece levar em conta (e isso, apesar da candidatura posta para 2018) as novas subjetividades e aspirações nem apresenta um esboço de programa para as atuais condições. Acaba, assim, colocando a discussão no terreno das eleições de 2018 e ainda numa chave de debate empobrecida, que talvez subestime os perigos da conjuntura atual17.

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Como seguir nesse momento? Isso envolve, a meu ver, múltiplas dimensões de (re)construção e composição paciente e conjunta, sem atalhos artificiais:

– um novo programa, no qual pelo menos três pontos me parecem fundamentais: a defesa da vida (o fim da contínua necropolítica brasileira) e a descolonização do país, uma radical reformulação do sistema político e uma economia do comum18 – para além do nacional-desenvolvimentismo que muitas vezes parece ser a única proposta das esquerdas nesse campo;

– aliar-se em questões concretas, lutas pontuais e urgências, alianças pragmáticas para o fim das matanças, do encarceramento em massa, para o alívio imediato da pobreza, miséria e desemprego (que regressam com força);

– criar confluências e coalizões que articulem de verdade classe e diferença. Parece que os seus adversários percebem melhor tais conexões que as próprias esquerdas – Huntington e seus parceiros temiam o fortalecimento da participação, protestos e organizações de “negros, indígenas, chicanos, estudantes e mulheres” e suas demandas/lutas nos anos 196019, enquanto um deputado gaúcho, presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, julga que “quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo que não presta” estariam influentes demais no então Governo Federal de 2013;

– constituir mais espaços de encontro (territorialidades livres, existentes e por vir) e debates (revistas, mídias variadas, peças/filmes/vídeos) – formação e auto-formação.

Tudo isso com a obsessão de chegar nas pessoas comuns e questões do cotidiano, multiplicando as experiências, tentativas e perguntas coletivas.

 

PS. Agradeço os comentários de Sebastião Neto, Ramon Szermeta, Alana Moraes e Rita Natálio (de quem partiu a ideia desse texto).

 

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