Alarme contra o incêndio

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Diálogo com Hilda Hilst e Walter Benjamin. “Nos 200 anos de Karl Marx e 50 anos das sublevações e contestações de maio de 68, quem, quais lutas irromperão nosso vazio, nossa suspensão?”

Por João Pedro Moraleida | Imagem: Hieronymus Bosch

“Se às vezes é lógico confiar na aparência dos fenômenos,

este primeiro canto termina aqui.”

Lautrámont, Cantos de Maldoror

“Alguém disse: estou triste com uma fita preta. Quem foi?” [1] Essa é uma frase do livro Estar sendo, ter sido da autora Hilda Hilst e, este texto não trata de sua obra. Ora, não tratar de sua obra, de seus textos, suas poesias pode significar não explorá-los formalmente, enquanto uma ciência literária ou acadêmica. No entanto, poderíamos fazer um movimento de suspensão dessa frase e pensá-la em outras dimensões, algo fora de um intuito científico. De que forma?

Seriam várias, a começar por essa ideia de suspensão: temos a obra, o livro, a frase em seu contexto ficcional, sim, de uma narrativa, muito embora não linear, não tradicional, não comum. No tocante à obra temos vários personagens num fluxo de consciência impecável e bem característico da criação hilstiana: são vários e um só, ao mesmo tempo se misturam, gritam, pedem, procuram o mistério, se debatem em diversas questões “da baixeza e grandeza do ser humano”, para lembrar Henry Miller. Enfim, a obra se explica sozinha, não precisaríamos aqui, acredito, estudá-la minuciosamente e digerir para leitores, ao menos caberia a outra intenção, não a nossa nesse texto. Falávamos das formas de suspensão. A idéia é retirarmos a sentença de seu contexto formal e estendê-lo a vida atual, atividade livre, demais individual diriam: um esforço-de-cada-um. Mesmo?

Bom, leiamos novamente: “Alguém disse: estou triste com uma fita preta. Quem foi?” Um ser alguém disse, não o sabemos, habita os longes, demasiado distante de nós, no entanto é um ser de ação: está triste, e por uma materialidade: a fita preta. Uma pausa. Diríamos que esse exercício está de certa forma tautológico, afirmando o Real, ou melhor, o re-afirmando. Sim, estamos convencidos disso, da tristeza por uma causa específica do personagem. Bom, é justamente essa dureza Real que nos interessa suspender, e para onde, que lugar, qual sua geografia? Digamos, para lembrar o poeta italiano [2] que “os sentimentos são históricos”, somos impelidos por eles, nos angustiamos, entristecemos, amamos e etc. E essas formas de expressão, por mais contidas e individuais que sejam, guardam sua dimensão histórica; desde a família e como aprendemos a sofrer e a falar; à cultura mais geral e às dimensões de classe. Em relação ao personagem de Hilda Hilst ele nos é estranho, “estranho à vossa lavra”, bem lembra ela em outra poesia. Também essa característica do desconhecido nos autoriza a suspendê-lo e unir à idéia da historicidade do sentimento.

Em relação ao atual país, precisaríamos nos perguntar: quais perspectivas temos, ou melhor, de que forma nossa intuição nos permite produzir um horizonte de espera e expectativa que justifique o presente? Uma pergunta mais geral. Politicamente, quais nossas expectativas: não as possuímos mais, elas se encontram suspensas, evidentemente que de maneira abstrata, muito embora a sensação na concretude seja de “vazio”, a uma nebulosidade intensa, ainda uma suspensão.

O poder hoje no país não possui uma forma exata, digamos em termos mais práticos de governo mesmo, quem dirá ser Michel Temer aquilo que nos governa? Não, não há. Não há dramaticidade em sua política, não há identificação, aquilo é um vazio e toda sua constituição é vazia e, é vazia pois é farsesca, possui um caráter de perversidade, não no sentido moral do mal e bem, mas por se saber farsante e ainda sim, simular. Vladimir Safatle nos indicou uma leitura, “somos um país em desagregação” [3], qualquer metáfora de espera (não esqueçamos de Godot) é pouca para nós, de sorte que não esperamos nada: temos um candidato à presidência que ganharia com apoio popular, muito embora não tenha constituído um projeto, um projeto verdadeiramente popular, de base, que está preso politicamente. Um outro, abertamente fascista e violento, surfa numa onda de parte de uma juventude proto-fascista, conservadora, degradante. Juventude essa que não mais porta os valores de seus pais, por mais conservadores que eles também sejam, é uma juventude violenta e, talvez pela primeira vez no Brasil, se envolve no discurso “bolsonarista” como aquilo que vai retirá-la do tradicional, isto é, soma forças as ideias desse sujeito por creditarem a elas algo ”marginal”, “de rebeldia”.

Sabemos que não o é, representa outra coisa, mas é colocado com a “alternativa rebelde”. Basta ver seus apoiadores, quem eles são. Ora, vocês imaginam, mais um esforço se quereis, uma retomada do PSDB em 2018? Não conseguimos vislumbrar, poderíamos justificar isso como um mecanismo de defesa nossa, para não nos aprofundarmos mais (ainda) num pessimismo. Talvez sim, mas, retornemos à idéia de “suspensão”, o que nos diz? Politicamente, em seu sentido mais pobre de democracia representativa, eleitoreira, não temos horizonte, sabemos que hoje há um vazio, somadas a desagregação nacional e a de um imaginário mantido a duras penas por anos, de uma república consolidada, de paz social.

Na realidade para parte da população sim, isso poderia ter ocorrido, entretanto é a velha frase de Walter Benjamin, quando acuado pela força nazi-fascista crescente na Europa durante o entre-guerras, ele dizia nas teses “Sobre o conceito da História”:

“A tradição dos oprimidos ensina-nos que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra.Temos de chegar a um conceito de história que corresponde a essa ideia. Só então se perfilará diante dos nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadeiro estado de exceção; e assim a nossa posição na luta contra o fascismo melhorará. […] O espanto por as coisas a que assistimos ‘ainda’ poderem ser assim no século vinte não é um espanto filosófico” [4] .

A dificuldade que encontramos hoje para compreender de forma mais sólida o que acontece pode nos indicar a encruzilhada em que fomos metidos: não há perspectiva, faltam horizontes, de forma que a “política está suspensa”, é esse o sentimento histórico, de sorte que podemos estar mais aprofundados numa exceção, numa ausência que imaginamos (e não é essa a tristeza? Conseguimos, com nossa imaginação, vislumbrar somente uma radicalização maior da direita, mais um Golpe, uma tutela armada geral.) Há o vazio; há suspensão, é esse o Real, “a fita preta nos entristece”. Não se trata de saber quem ganhará ou quem perderá, mas compreender que nessa exceção atual o progresso rumo a um abismo não está tão longe, tão alhures. Nos 200 anos de Karl Marx e 50 anos das sublevações e contestações de maio de 68, quem, quais lutas irromperão nosso vazio, nossa suspensão? “É preciso cortar o rastilho antes que a centelha chegue à dinamite”, diria Walter Benjamin. Puxemos, então, o alarme contra o incêndio.

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[1] Hilda Hilst, Estar Sendo, Ter Sido. São Paulo, Nankin Editorial, 1997

[2] Pasolini, Pier Paolo. Poemas. São Paulo, Cosac Naify, 2015

[3] Revista Cult. “Criar o poder popular”. São Paulo,abril 2018

[4] Walter Benjamin. “Sobre o conceito da História”, in O anjo da história. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2012.

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2 comentários para "Alarme contra o incêndio"

  1. carlos achcar disse:

    Essas torres de marfim dos literatos-acadêmicos de esquerda já se perderam em meio a tantas nuvens de referências a outros literatos-acadêmicos que compõem o mesmo círculo ideológico deles: mais do mesmo e mais ainda sempre…
    Saiam da frente de seus computadores, deixem seus autores de 10, 50 anos, de 100, 150 anos atrás e se lambuzem (ao menos um pouco) dos sentidos e não de percepções intelectuais.
    Vão entender por que Bolsonaro comunica cada vez mais com parte da população disso que chamam de Brasil.

  2. Luizão disse:

    A falta de horizonte não ira nos levar a nenhum lugar, mas a lufates somvrios

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