A Mão do Povo Brasileiro, de volta ao MASP

Tacho, pilão, concha, colher de pau. Exposição de artefatos culinários descoloniza, além do museu, as regras, saberes e modos de fazer o que comemos

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Por Julicristie M. Oliveira

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Exposição “A Mão do Povo Brasileiro”

MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand

Avenida Paulista, 1578, São Paulo

Até 22 de janeiro de 2017

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Arte-sanatos, arte-fatos, arte-utensílios culinários ocupam uma sala do MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Em 1969, o novo prédio do museu foi inaugurado com a mostra organizada por Lina Bo Bardi e colaboradores: “A Mão do Povo Brasileiro”. Em 2016-17, “A Mão do Povo Brasileiro” habita novamente o espaço do MASP, com o intuito de descolonizar o museu – cujo espaço é consideravelmente ocupado por obras europeias –, repensar a arte de baixo para cima, valorizar a produção marginal, borrar os limites entre arte, arte-fato e arte-sanato.

Em novembro e em dezembro, tive a oportunidade de visitar a mostra duas vezes. Fiquei particularmente envolvida com os arte-fatos de produzir alimentos: ralador de mandioca, processador de farinha de milho, moenda de cana, forma rapadura; e pelos arte-utensílios culinários: tacho, pilão, grelha, concha, pá, colher de pau…

Ao apreciar a exposição, ficou claro para mim que a marginalização dessa produção da Mão do Povo Brasileiro não se restringe às artes e atinge, também, sua legitimidade enquanto utensílio culinário.

Me lembrei do caso mais notável, o da colher de pau, que se tornou base do manifesto elaborado pelo antropólogo Raul Lody em 2015, e que foi comentado aqui no Outras Palavras no mesmo ano. Nele, o autor, em contraposição ao questionamento indireto sobre a segurança do uso de certos utensílios (nos quais se encaixaria a colher de pau) no processo de produção de alimentos, propõe que as regras sanitárias sejam mais sensíveis aos nossos alicerces culturais e nossas práticas tradicionais.

Saí das duas visitas refletindo sobre os arte-utensílios e as regras sanitárias. A necessidade de se garantir a segurança dos alimentos é inquestionável, porém não é possível estabelecer que o uso de arte-utensílios seja inadequado a priori.

Assim, “adequar” os exercícios produtivos, para garantia de trabalho e renda, a certas regras de segurança sanitária, com o objetivo de “supressão de risco”, pode gerar “riscos” e efeitos colaterais de outra natureza: erosão cultural, desqualificação dos saberes populares e de modos de fazer tradicionais. Talvez a saída seja encontrar um caminho do meio entre as práticas enraizadas e as regras sanitárias, questionando sempre as percepções de risco, bem como suas origens.

Voltei para casa com a imagem das maravilhosas colheres de pau feitas pela Mão do Povo Brasileiro na minha cabeça. As minhas não são tão antigas e grandes quanto as da mostra, mas, com certeza, irão sempre ocupar o espaço “descolonizado” da minha cozinha, mediando a (não) dualidade natureza-cultura de transformação da comida.

Então, expor os arte-utensílios culinários que caíram no ostracismo das normas sanitárias não seria também uma forma de descolonizar – além do museu – regras, saberes, sabores, modos de produzir e modos de fazer o que comemos?

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