A ética tropeçante e o espírito do jacobinismo

É dever da inteligência dessacralizar as vacas, mas não sem antes ordenhá-las dia a dia, e sem jamais tomá-las por mulas. Jessé de Souza não se dá conta disso

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“The Purifying Pot of the Jacobins” (1973) de Benoit Louis Henriquez

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É dever da inteligência dessacralizar as vacas, mas não sem antes ordenhá-las dia a dia, e sem jamais tomá-las por mulas. Em “A tolice da inteligência brasileira”, Jessé de Souza não se dá conta disso

Por Airton Paschoa

Crítica de

A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite

De Jessé Souza

Editora Leya, São Paulo

Passada a exasperação primitiva, vamos ao livro, e ao autor, por cujas posições jacobinas não posso deixar de declarar certa simpatia. Também tenho horror à escandalosa desigualdade social brasileira, com a qual não há contemporizar em hipótese nenhuma! náusea, literalmente náusea dessa iniquidade e suas sequelas, mortais e imortais, na saúde, na educação, na atuação da polícia nas periferias, trucidando nossa juventude negra e/ou pobre, com a cumplicidade do P(h)oder Judiciário, — pois não dá pra falar em Justiça no Brasil, senão com tanto grão de sal que receio venha a faltar no mar. Também quero um Estado forte, forte o bastante pra distribuir renda e porrada em quem se opuser.

Claro que nessas horas de espírito armado em que não há banheira de marat que nos amarre recorro sempre a uma admoestação do grande Rosa, o maior escritor brasileiro, junto com Mário de Andrade, — brasileiro, repito, não do Brasil, e do Ocidente, pois este sabemos quem é, pelo menos do Oitocentos: “Às vezes querer demais o bem, pode já ser um princípio de mal…”

160313-JesséUm dos problemas do jacobinismo, maior talvez que o político, é quando chega ao campo intelectual, bombando de anti-intelectualismo, e aí pouco importa a contradição performática em que incorre a milícia, perdão, militância. A par dele, outro problema, grave, gravíssimo, aliás, a um hedonista como eu, com coração, que é o caso de quem se mete a escrever poesia em tempos de fartura, fartura até de miséria, — outro problema grave é o estético. O jacobinismo intelectual bota muita coisa feia no mundo, e bruta, que não precisa de mais, a exemplo deste rebento do Jessé Souza, A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite (SP, Leya, 2015).

O que não concede o jacobino intelectual é que por vezes, pra desgraça nossa, escrevem obras magistrais mesmo aqueles de quem menos gostamos, pessoal e/ou politicamente. Veja o caso do Gilberto Freire, um senhor de engenho rico (nos dois sentidos) e que criou uma obra magnífica, superior a’Os sertões, do nosso Euclides da Cunha, que nos inspira muito mais amor, em que pese o sobrenome, de triste memória hoje. Obra magistral em acepção original, de obra que ensina e com cujos ensinamentos, por mais controversos, não cansamos de aprender. Ou alguém já conhece palmo por palmo da Casa-grande & senzala?

Casa-grande não ruirá jamais, por uma razão que parece simples, e é quase misteriosa: por todos aqueles corredores e alpendres e alcovas respiramos verdades abafadas, ou vivência, ou autenticidade, ou condensação histórica, qualquer nome enfim que se lhe dê, mas que vive nas antípodas do academicismo contemporâneo, das obras desvitalizadas que vem reproduzindo nossa academia. Academia, sim, como dizem os americanos, infelizmente, que universidade que é bom, ai de nós! foi um rio que passou em nossa vida…

Se nosso senhor de engenho já impõe respeito, que dizer de Sérgio Buarque de Holanda, da obra e do autor, um dos monumentos maiores da nossa inteligência? Não merecerão nossos clássicos o mesmo cuidado e atenção que dedicamos aos clássicos internacionais? Onde estará de fato o “colonizado até o osso”?

A leitura que faz Jessé das Raízes do Brasil, de tão errada, de tão aberrante, leva a suspeitar que, impaciente com ser constrangido a ler em português, adotou um intérprete que seu livro curiosa e justamente combate. Bolívar Lamounier, adversário intelectual e político do nosso jacobino, foi porém infinitamente mais honesto com o pai do Chico.

E aqui tocamos o terceiro problema do jacobinismo, o moral. Porque desonestidade intelectual é desonestidade. O grande historiador estava longe de trair qualquer traço de “liberalismo ou culturalismo conservador”. Culturalista, liberal, vá lá! mas radical, liberal de esquerda, e isto está lá no livro, estampado, escancarado, “claro como a luz do sol do meio-dia” . Melhor, isto é o livro, isso está ali, e ali o acha cristalino qualquer “leitor de boa vontade e que ame a verdade”.

Mas o jacobinismo, que ama o combate acima de todas as coisas, certo da justeza da justa, numa quase tautologia sem fim, o jacobinismo desdenha da boa vontade e da verdade. A teoria patrimonialista de Raimundo Faoro certa hora é despachada com um piparote de corar o Brás Cubas: “não vale um vintém furado”!

Ser como intelectualmente honesto, ou simplesmente honesto, empolgando a ética da guilhotina? Assombrado, o leitor de boa vontade e amante da verdade não vê senão do alto de cada capítulo (patíbulo?) rolarem as cabeças, uma a uma, Freire, Sérgio Buarque, Faoro, Caio Prado…

Blasfemar, que nem faz Jessé, que a visão do Estado patrimonialista por Lamonuier descende em linha direta da crítica do Estado patrimonialista por Sérgio Buarque na década de 30 do finado século, e que tal concepção não passa, no fundo, de demonização do Estado, por corrupto e “cordial”, em favor do Mercado, por virtuoso e eficiente, numa espécie de neoliberalismo avant la lebbre — por Weber! chega às raias da Tolice com “t” maiúsculo!

O clientelismo contemporâneo que faz o Bolívar lamuriar, nada tem que ver com o clientelismo patriarcal de que fala o Sérgio Buarque. O que existe hoje, pr’além dos arcaísmos das deputadices familistas, é lobby, e negociata, e achaque; e lobby e negociata e achaque de empresas; dito de outro modo, é privatização do Estado, e privatização por corporações gigantes, por entidades privadas, que podem até ser familiares, mas não são famílias, no sentido agrário-patriarcal das raízes ibéricas do país, nem sequer coronéis (ver o ornitorrinco do Chico Economicista de Oliveira). Encarar como clientelismo clássico tão deslavada pilhagem, cá entre nós, é forçar demais a pata.

Claro está que não se pede a um sociólogo a finura de um historiador, do mesmo modo que não se pede a um ortopedista que substitua o neuro e endireite cérebro. Tachá-lo todavia de “colonizado até o osso”, de “filho bastardo” de Freire, de “liberal e culturalista conservador”, de deslumbrado com a América e/ou a Europa, pra não falar de insinuações malévolas, leitor tolo que teria sido do Weber, ou da insinuação mesquinha de paulicentrismo, etc., etc., francamente, não é coisa digna de quem quer refazer a teoria social contemporânea, no Brasil e no mundo.

(Já filosofaram com o martelo, e dizem que com classe, mas não consta que sociologizar com ele, em tais termos, vá além de insulto à inteligência.)

Ambição é bom, e não ficamos atrás. Que diria no entanto o leitor de boa vontade e amigo da verdade se a gente saísse por aí agora a dizer, quase um século depois, que o pai do Chico não só não entendeu nada do Weber, como também não entendeu nada do Machado?

É dever da inteligência, quem há de negar? “dessacralizar as vacas” (nacionais e internacionais), mas não sem antes ordenhá-las, dia a dia, e sem jamais tomá-las por mulas. A queda pode ser fatal.

Dito isso, só posso achar que nosso Jessé não leu, não leu na fonte, diretamente, o nosso clássico. (Por ser nosso? por ter dificuldade com o português? com o português do Sérgio? por ser “colonizado até o osso”?) Só pode ter sido leitura de segunda mão, de tradução precária, quem sabe, bolivariana (em ambos os sentidos).

Isso tudo, meu leitor de boa vontade, meu leitor amante e amigo da verdade, tantas enormidades tão a sério escritas, com ares tais de “virada epistemológica”, que às vezes dava por mim devaneando, me perguntando com meus botões assustados, tentando se refugiarem nas casas… — por que aliciar assim o leitor, apelando pra sua boa vontade e seu amor à verdade? por que achar que ideologia, como bafo e sotaque, só os outros têm? por que que ciência só faço eu? florestanismo anacrônico? funcional? por que publicar livro que inflama o anti-intelectualismo de esquerda já tão anti-intelectual quanto a nossa? por que timbrá-lo com título à olavo-de-carvalho? ato falho? por que leiloar (quem dá menos?) o que temos de melhor em nossa tradição crítica? por que clamar pelo debate público, reclamando-lhe da pobreza, se o livro parece, por inaugural, querer justamente pôr fim ao pobretão?

E eis que, de pergunta em pergunta, fomos descobrindo o segredo do jacobinismo. Travestido de liberal, convocando o debate, retoricamente, o jacobino sabe de antemão o resultado, que não haverá nada nem minimamente próximo disso, pois, mercê da política de arrasa-terra, arrasa-casa, arrasa-mata, arrasa-prado, arrasa-raiz, a obra jacobina nasce sempre incontestável. Que marxista e/ou frankfurtiano, digamos, a não ser por espiritismo de porco, se meteria a fuçar semelhante imbruglio?

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7 comentários para "A ética tropeçante e o espírito do jacobinismo"

  1. Texto muito bem escrito e que vai em conformidade com as minhas impressões após ler três livros do Jessé. Identifiquei-me bastante com o autor e com as injustiças sociais que ele denuncia, mas em seus livros fica clara a análise rasa dos autores clássicos que ele critica. A ausência de embasamento nos livros do Jessé, que mais parecem um eterno desenrolar de uma tese pré-concebida, dão a impressão de que ele realmente não leu os livros que critica, tais como Casa Grande e Senzala, Raízes do Brasil e Os Donos do Poder. Saio da leitura do Jessé para justamente ler estes clássicos e formar a minha opinião. Gostei muito do Jessé, que abriu os meus olhos, mas forçosamente tenho que ser honesto, como o autor desse artigo, para fazer uma crítica construtiva.

  2. junior disse:

    Fez igual. Muita critica e pouco argumento, nenhuma antitese. Acho legitimo e louvavel defender a tese central do serjão, mas temos que mostrar onde a leitura é equivocada e onde é maliciosa. Desqualificar o interlocutor e não entrar no argumento é fazer exatamente o que o jessé faz.

  3. Orismar disse:

    Onde está o erro ao usar a expressão “que nem”?

  4. André disse:

    A gramática permite, Elis. A expressão é encontrada nos “bons autores” do português, Brasil.
    http://www.migalhas.com.br/Gramatigalhas/10,MI128718,31047-Que+nem

  5. ElisBrazil disse:

    “Blasfemar, que nem faz Jessé, que a visão do Estado patrimonialista (…)”. Desculpe, não posso levar a sério um escritor que usa a expressão “QUE NEM”.

  6. Julio disse:

    Preciso ler este livro, mas conheço a figura. Jessé é como muitos acadêmicos-antiacademicistas: por trás de uma crítica radical esconde-se a velha autoridade do ‘você-sabe-com-quem-está-falando’? O senhor do saber inquestionável, que adora fazer terra arrasada de tudo.
    Enfim, mais um que quer ganhar no grito, algo bem comum nesses tempos.
    Mais. De tanta ‘virada epistemológica’ de araque, está todo mundo ficando zureta. Mas está na moda; moda, aliás, ‘colonizada’.

  7. Pol pot disse:

    Li o livro do Jessé. Não é um texto fácil. Agora, honestamente, entre Jessé e sua “crÍtica” fico com Jessé.

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