Rap, educação e as palavras como armas milagrosas

Herdeiro de movimentos libertários, o rap é o meio pelo qual o povo periférico ensina e aprende a pensar sua realidade, criando condições para “o conflito inevitável”. Uma pedagogia viva que atravessa criações, de Racionais MC’s a Djonga

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Este é o segundo de uma série de três textos intitulada, no seu conjunto: A pedagogia decolonial de “Fogo nos racistas!”. Leia os outros dois textos aqui: 1 e 3.

As voz em declive na mão desse Barrabás
– onde o milagre jaz –
Só prova a urgência de livros perante o estrago que um sábio faz
(Emicida, “Principia”, em Amarelo, 2020)

Compreender o potencial pedagógico das manifestações culturais e artísticas para a conscientização requer contexto. Seguindo a sugestão de Fanon de reunir as condições necessárias ao conflito, é interessante olhar para as manifestações artísticas com as quais os oprimidos se relacionam, iluminando não apenas a possibilidade de mudança, mas o vínculo subjetivo coletivo que dá densidade e corpo à revolução das ideias e ações. Dentre os diversos movimentos artísticos contra-hegemônicos ao redor do globo, os oriundos do Sul Global – como lócus geopolítico de anunciação do conhecimento – informaram importantes transformações históricas. Das manifestações anticoloniais do século 20 aos movimentos antirracistas como o Black Lives Matter no início da década de 2020, a literatura e as artes negras ensinaram especialmente, de maneira universal, as especificidades e semelhanças da luta negra devido a violências coloniais, imperiais e financeiras. Manifestações como o movimento da Négritude, a Renascença do Harlem, e o movimento hip hop anunciam do local ao global, em diferentes tempos históricos da luta, toda uma afirmação multidimensional da complexa existência negra, com suas dores e prazeres, informando gerações futuras.

Négritude é um termo que se refere a um movimento estético, literário, epistêmico e político de escritores, intelectuais e políticos da diáspora africana francófona que, a partir da década de 1930, abordaram a consciência negra. O termo Négritude foi usado pela primeira vez pelo poeta e estadista martinicano Aimé Césaire em um artigo para a edição de maio de 1935 do jornal estudantil O Estudante Negro (L’Étudiant Noir), como segue:

Muito ruim para aqueles que se contentam em ser ocidentais em desafio ao que eles chamam de “racismo”. Para nós, queremos explorar nossos próprios valores, conhecer nossos pontos fortes através da experiência pessoal, cavar em nosso próprio domínio racial, certos de que devemos encontrar em profundidade as fontes jorrantes do humano universal. Portanto, antes de fazer a Revolução e para fazer a revolução – a real – inchar o solo destruidor e não o tremor das superfícies, uma condição é essencial: quebrar a identificação mecânica das raças, rasgar os valores superficiais, apreender dentro de nós o negro imediato, plantar nossa Négritude como uma bela árvore até que dê seu fruto mais genuíno (Césaire, 2013).

Ao afirmar as pessoas negras como sujeitos históricos, a Négritude se constituiu como um movimento de desafio à branquitude em todas as suas estruturas de dominação, contribuindo para a conformação da ideologia anticolonial de escala global. Intelectuais francófonos como as Irmãs Nardal da Martinica (Church, 2013), Léopold Senghor, Léon Damas e Aimé Césaire clamavam pelo desenvolvimento de uma identidade pan-africana, mudando a representação das pessoas negras e da negritude. Eles organizaram a reforma social, publicaram amplamente e influenciaram alguns dos mais importantes políticos, artistas e intelectuais de seu tempo (Davis, 1997; Church, 2013).

O movimento da Négritude foi inspirado na Renascença do Harlem (Harlem Renaissance), um movimento estético, artístico e intelectual da cultura negra nos Estados Unidos. No início da década de 1920, a escalada da violência racial, os massacres e os linchamentos levaram milhões de pessoas negras a fugir da regra da discriminação no sul para uma nova vida no norte dos Estados Unidos. Atraídos por aluguéis acessíveis, muitos se estabeleceram em prédios do bairro do Harlem, em Nova York. Foi a primeira vez na história dos Estados Unidos que uma porcentagem tão alta de artistas, intelectuais e ativistas negros americanos viveu lado a lado (Wintz; Finkelman, 2004; The Harlem Renaissance s.d.). Expoentes como o sociólogo e ativista William Du Bois, a artista visual Augusta Savage, os músicos de jazz Louis Armstrong e Ma Rainey, entre vários outros, fizeram parte do fenômeno cultural de levantar a questão da raça e da representação para além de uma crítica ao status quo. O Harlem Renaissance lançou as bases do Movimento dos Direitos Civis da América do Norte e inspirou esteticamente, epistemicamente e politicamente vários outros movimentos anti-hegemônicos em todo o mundo, incluindo o movimento da Négritude. Embora a Harlem Renaissance e o movimento Négritude tenham muito em comum, como o foco na episteme negra, ontologia, estética e história, este último visava a libertação pan-africana como um desafio político da era colonial, dando uma dimensão global à luta negra e inspirando outras manifestações decoloniais no Sul Global.

Em meados da década de 1970, o movimento hip hop começa nos bairros afro-caribenhos, afro-americanos e latinos na cidade de Nova York. Como cultura, o hip hop emerge nos Estados Unidos fortemente influenciado pela Harlem Renaissance e pelos movimentos dos direitos civis (Rabaka, 2011), constituindo-se em torno da identidade, estética e expressão negras. Como movimento, o hip hop enfatiza a natureza política da cultura popular negra em geral, e da música popular negra em particular, inspirada e educada pelo Movimento Black Power e pelo Movimento das Artes Negras. A complexidade de ser uma cultura e um movimento social faz do caráter orgânico multidimensional do hip hop um universo de diálogo e conscientização rumo à libertação. No livro O movimento hip-hop: do R&B e direitos civis ao rap e a geração hip hop (The Hip Hop Movement: from R&B and the Civil Rights Movement to Rap and Hip Hop Generation) (2013), Reiland Rabaka afirma que:

Invocar o hip hop como um “movimento”, em vez de meramente uma “geração”, é evocar e conceber conscientemente o hip hop como a política e a estética acumulada de todo e qualquer movimento e forma musical afro-americana que o precedeu (Rabaka, 2013, p. 271; itálico no original).

É inegável que o movimento hip hop tem um impacto global ao longo do tempo e relaciona povos periféricos do mundo inteiro. Isso se deve aos componentes do movimento que lhe dão a possibilidade de transcender os Estados Unidos na década de 1980, possibilitando que pessoas de fora dos Estados Unidos se relacionassem e informassem a atual capacidade de longo alcance do movimento. De um modo geral, o movimento hip hop tem quatro elementos básicos: o mestre de cerimônia ou M.C., cantando as letras no flow e o ritmo (emceeing, rap); a batida ou beat, incorporada na figura do D.J., o “mixer” (DJing); o breakdance (b-girling e b-boying); e graffiti, a expressão da arte visual (Weatherford, 2019).

Joseph Schloss esclarece que o termo hip hop é usado para se referir a três conceitos sobrepostos, mas distinguíveis. O primeiro é um grupo de formas de arte relacionadas em diferentes mídias (visual, sonora, movimento) que foram praticadas nos bairros afro-caribenhos, afro-americanos e latinos na cidade de Nova York na década de 1970. O termo refere-se a eventos em que essas formas foram praticadas, as pessoas que as praticaram, sua sensibilidade estética compartilhada e atividades contemporâneas que mantêm essas tradições. O aspecto mais importante dessa “variedade” de hip hop é o encontro radical, não mediado, no sentido de que a maioria das práticas associadas a ele são ensinadas e realizadas no contexto de interações reais entre pessoas.

A segunda definição ou variedade de hip hop refere-se a uma forma de música popular que foi desenvolvida a partir da cultura hip-hop. Este é o hip hop percebido na grande mídia como “música rap”, resultado da interação entre a cultura hip hop e a indústria fonográfica pré-existente. Para Schloss, “este hip hop, em contraste com a cultura hip hop, está profundamente entrelaçado com os meios de comunicação de massa e suas necessidades, em grande parte porque tem um produto: álbuns (…)” (Schloss, 2009, p. 5, itálico no original). A terceira variedade de hip hop estaria relacionada a uma categoria demográfica geral para a juventude negra contemporânea, independentemente de ter ou não alguma conexão com o rap ou outros elementos da cultura hip-hop. Atitude hip hop e geração hip hop são termos usados para enfatizar idade e classe sobre raça ao se referir a pessoas negras nos Estados Unidos. Em linhas gerais, o termo refere-se ao comportamento esteticamente subversivo, o que é político. No livro de 2005, Não pode parar, não vai parar: uma história da geração hip hop (Can’t Stop, Won’t Stop: a history of the Hip Hop Generation), Jeff Chang escreve:

Kitwana lutou com as implicações da lacuna entre as pessoas negras que atingiram a maioridade durante os movimentos dos Direitos Civis e Black Power e aqueles que atingiram a maioridade com o hip hop. Seu ponto era simples: uma comunidade não pode ter uma discussão útil sobre o progresso racial sem primeiro levar em conta os fatos da mudança. (…) Meu próprio sentimento é que a ideia da geração hip hop reúne tempo e raça, lugar e policulturalismo, batidas quentes e hibridismo. Ele descreve a virada da política para a cultura, o processo de entropia e reconstrução. Ele captura as esperanças e pesadelos coletivos, ambições e fracassos daqueles que de outra forma seriam descritos como “pós-isto” ou “pós-aquilo” (Chang, 2011, p. 2-3).

Vale a pena compreender a complexidade do movimento hip hop e seu poder educacional fora dos Estados Unidos. Embora um movimento originalmente norte-americano com raízes constitutivas no Harlem Renaissance e nos movimentos Black Power, o hip hop tornou-se um movimento global de resistência. Por mais contraditório que qualquer movimento social e cultural possa ser (Rabaka, 2011), ele apresenta método e comunidade para sobreviver e viver na era colonial. Por esta razão, a música rap pode ser cantada em qualquer idioma, porque traz os quatro elementos do hip hop para abordar dilemas locais, meios de subsistência, quebrada e existência.

É claro que os movimentos de pessoas negras e as reivindicações dos oprimidos vão ter prioridades dependendo de fatores geopolíticos e históricos. Nesse sentido, os movimentos hip hop brasileiros, por exemplo, embora inspirados e influenciados pelo movimento norte-americano, possuem abordagem, estética e impacto próprios. Apesar de a história, a constituição, a ação e a repressão do movimento negro no Brasil sejam inegavelmente diferentes daquela dos Estados Unidos, o movimento hip hop foi incorporado pelos povos periféricos no Brasil a partir da década de 1980 e tornou-se meio de identidade e referência, bem como um espaço de debate político. “Periferia é periferia em qualquer lugar”, já diriam os Racionais MC’s.

Assim como aconteceu nos Estados Unidos, a música rap no Brasil ganha muito mais notoriedade do que o movimento hip hop como um todo, por causa de sua interação com a indústria fonográfica e os produtos vendáveis. Mas não só isso. A música rap pode atingir públicos que não teriam contato com o movimento hip hop como cultura, incluindo lutas além da identidade negra. Isso levaria ao questionamento se o uso de reivindicações legítimas do movimento hip hop seria prejudicado pela necessidade de “viver da arte” que muitos MCs teriam no Brasil. Em outras palavras, a associação da indústria da música com o rap faria com que perdesse seu caráter militante. A apropriação da luta negra pela indústria (principalmente norte-americana) significaria vender a cultura e a identificação com as massas que, uma vez distorcidas, perdem seu poder revolucionário e valem milhões de dólares. Por mais orgânico e contraditório que seja, o rap brasileiro tem um poder pedagógico decolonial de conscientização para a libertação.

Não é forçado dizer que o rap brasileiro tem poder pedagógico decolonial. Aqueles céticos ou puristas diriam que o rap brasileiro significaria uma cópia dos gringos, que o R&B não é um ritmo originalmente brasileiro, que a estética de correntes grossas e roupas de marca seria o sequestro da cultura negra brasileira para a substituição pelo bom e velho mainstream-wannabe-status quo. Pois bem, aqueles que pensam que a cultura é um bloco monolítico de tradições caricaturadas são os que não podem se desprender de seu ego conquiro, de seu colonizador interior. Para dominar, o sistema de opressões requer previsibilidade. Diminuir a legitimidade do rap e do hip hop brasileiro, seja por ser uma “americanização”, seja por ser a assimilação de algum “lixo” norte-americano, é garantir que os revoltados sejam constantemente domesticados (Gonzalez et al., 2021).

Rap é um acrônimo que significa ritmo e poesia. A palavra poética dita ao ritmo forma canções, que são obras de arte. Como já mencionado, para Paulo Freire a palavra é a própria essência do diálogo, formado por duas dimensões, reflexão e ação. Falar uma palavra verdadeira é nomear o mundo para mudá-lo (Freire, 2000, p. 61). A música rap é anti-hegemônica mesmo estando imersa no mercado musical. Seu canhão epistêmico de anunciação visa a libertação dos oprimidos. A consciência da diferença colonial da voz lírica do rap não é a mesma coisa que a agenda imperial da indústria musical global. O rap está dentro do complexo industrial da música da mesma forma que a academia está dentro do complexo industrial educacional (Best, 2011). No entanto, não há libertação sem educação. Léopold Senghor, quando questionado sobre as contradições de ter escolhido a língua francesa para expressar as reivindicações do movimento da negritude, refere-se à primeira coleção em forma de livro de Aimé Césaire, Armas Milagrosas (1946), e por ‘armas’ Césaire entende as palavras sonoras (Davis, 1997, p. 70).

Temos sido censurados, particularmente do lado anglo-saxão, por termos escolhido o francês para expressar o negro-africano. Queríamos ser mais realistas do que o rei. Vou responder que não escolhemos. E, se tivéssemos que escolher, talvez tivéssemos escolhido o francês. Não pelo sentimento, digo pela razão. Mas repito, não escolhemos. Foi a nossa situação de colonizado que nos impôs a linguagem do colonizador, mais precisamente a política de assimilação. Aliás, nem tudo foi ruim nessa política, que partiu dos “princípios imortais” de 1789. A desgraça é que esses princípios da Revolução não foram aplicados em sua totalidade, sem hipocrisia; o bom é que foram parcialmente aplicados, o suficiente para que suas virtudes, inclusive a cultura francesa, frutificassem. Porque a Négritude é fruto da Revolução, por ação e reação. Como diz Jean-Paul Sartre, escolhemos as armas do Colonizador para voltá-las contra ele. “Armas milagrosas”, especifica Aimé Césaire (Senghor, 1963, p. 9)1.

A força revolucionária de movimentos culturais como o hip hop consiste na dinâmica orgânica da mudança, ofuscando os métodos coloniais de controle. Ao discutir o espanto do colonizador com as mudanças de estilo na cerâmica, Fanon explica que as manifestações artísticas estavam sendo influenciadas pela repercussão da revolução nascente. As mudanças de estilo foram percebidas pelos especialistas colonialistas como subvertendo as tradições e a cultura originais – “os colonialistas que se tornam os primeiros defensores do estilo nativo” (Fanon, 1990, p. 195). As mesmas reações foram notadas quando novos estilos de jazz como o be-bop surgiram no sul dos Estados Unidos após a segunda guerra mundial:

O fato de que aos olhos deles [colonialistas] o jazz só deve ser desesperador, nostalgia-despedaçada de um velho negro preso entre cinco copos de uísque, a maldição de sua raça e o ódio racial ao homem branco. Assim que o negro chega a um entendimento de si mesmo, e entende o resto do mundo de forma diferente, quando ele dá à luz a esperança e faz recuar o universo racista, fica claro que seu trompete soa mais claro e sua voz menos rouca. As novas modas do jazz não nascem simplesmente de uma nova competição econômica. Devemos sem dúvida ver neles uma das consequências da derrota, lenta, mas segura, do mundo meridional dos Estados Unidos. E não é utópico supor que daqui a cinquenta anos o tipo de uivo de jazz soluçado por um pobre negro desafortunado será sustentado apenas pelos brancos que acreditam nele como uma expressão de negritude, e que são fiéis, presos nessa imagem de um tipo de relacionamento (Fanon, 1990, p. 195-196).

Nesse sentido, argumento que o rap brasileiro tem o poder de mostrar a luz no fim do túnel do obscurantismo. O rap possibilita um lugar de diálogo contra a ideologia fascista que turva a política e a sociedade brasileira desde o golpe parlamentar em 2016 e, posteriormente, a eleição para presidente da bizarra figura conservadora de Jair Bolsonaro em outubro de 2018, e o crescimento do bolsonarismo como ideologia política. Seguindo os passos de Donald Trump, Bolsonaro foi eleito presidente fingindo ser um outsider da política tradicional. Assumidamente racista, misógino, armamentista, homofóbico, acometido de severo complexo de vira-lata e defensor do poder das milícias, Bolsonaro representa o extrato da previsível estrutura colonial brasileira, naturalmente servindo ao poder imperial. Por isso, o bolsonarismo é maior que Bolsonaro (Silva, 2021), e perdurará após sua morte política porque é a reafirmação da ética do colonizador frente às reivindicações legítimas da nação.

Como sugere Fanon, as manifestações culturais podem reunir as condições para o conflito inevitável. O rap brasileiro faz da palavra veículo de reflexão e ação por meio do diálogo. Diante da emergência da ameaça fascista institucionalizada no Brasil, as manifestações artísticas têm respondido amplamente. O rap desempenha esse papel desde suas origens: inspirando e resgatando os profundamente deprimidos diante da destruição de direitos historicamente adquiridos e da banalização de retrocessos. Dentre as manifestações antibolsonaristas nas artes e na cultura no Brasil, fogo nos racistas! do rapper Djonga virou hino e tomou conta do mainstream. Considerado um expoente da nova geração do rap no Brasil, Djonga dá continuidade à tradição do rap brasileiro político e sensível. Ele está no ombro de gigantes.

Voz Ativa

É impossível falar da história e do impacto do hip hop e do rap brasileiro sem mencionar os Racionais MC’s. Para discutir o poder pedagógico de “fogo nos racistas!”, é pertinente traçar a construção de um imaginário antirracista na cultura do rap no Brasil. Antes de trazer Djonga para o palco, vamos rebobinar a fita de volta ao fim dos anos 1980.

É justo dizer que o grupo de rap brasileiro composto por Edi Rock, KLJ, Ice Blue e Mano Brown marcou permanentemente a história cultural do país a partir da perspectiva das comunidades pobres, periféricas e negras. O grupo começou em 1988 com o primeiro single “Pânico na Zona Sul”, lançado por uma gravadora independente, a Zimbabwe Records. O single fez parte da coletânea Consciência Black (1988) (Discografias Completas do Rap Nacional, 2017) e dá o tom da mensagem dos Racionais: política, politizada, periférica, antirracista, historicamente consciente, clamando por conscientização. Em 1992, os Racionais lançam seu primeiro hino inovador: “Voz Ativa” (RacionaisTV, 2017a). A voz lírica pede identificação para mudança política:

Precisamos de um líder de crédito popular
Como Malcom X em outros tempos foi na América
Que seja negro até os ossos, um dos nossos
E reconstrua nosso orgulho que foi feito em destroços
Nossos irmãos estão desnorteados
Entre o prazer e o dinheiro desorientados
Brigando por quase nada
Migalhas coisas banais
Prestigiando a mentira
As falas desinformado demais
Chega de festejar a desvantagem
E permitir que desgastem a nossa imagem
Descendente negro atual meu nome é Brown
Não sou complexado e tal
Apenas racional
É a verdade mais pura
Postura definitiva
A juventude negra
Agora tem voz ativa
(Racionais Mc’s, “Voz Ativa”, 1992)

O primeiro álbum de estúdio dos Racionais, Raio X do Brasil (1993), tem músicas épicas como “Fim de Semana no Parque” e “O Homem na Estrada”, narrando situações de racismo e violência policial em uma São Paulo de exclusão e marginalização de pobres e negros. A música “O Homem na Estrada” descreve a periferia através dos sentidos; visuais, olfativos, táteis e auditivos. É a tragédia de um homem que sai da prisão e busca a vida a partir de então. A peça é tão artisticamente generosa por causa de seu realismo chocante, transportando o público à raiva, pois não há final feliz. A letra foi interpretada pelo senador Eduardo Suplicy (PT-SP) no dia 26 de abril de 2007, durante a apreciação da proposta de alteração da Constituição Federal referente à redução da maioridade penal de dezoito para dezesseis anos. Na tentativa de convencer seus pares a votar contra a aprovação da redução da maioridade penal, o senador Suplicy se apresentou na Comissão de Constituição e Justiça interpretando a letra do rap e imitando o som dos tiros no final (como na música). Os Racionais Mc’s também estavam educando homens brancos políticos e ressoando entre as paredes do parlamento.

Cada favelado é um universo em crise

Há muitas complexidades narradas na poesia do rap. A música “Fim de Semana no Parque”, por exemplo, informa outras camadas do grupo de rap formado por quatro jovens negros periféricos: raiva, violência e misoginia. Embora algumas coisas tenham mudado em relação ao tratamento dado às mulheres no rap, principalmente por causa da luta e capacidade de superação das mulheres, o patriarcado é a última barreira para a libertação em todos os aspectos da era colonial. Os espectros sobrepostos de marginalização dos povos periféricos – raça, classe, intelecto e gênero, só podem ser abordados para mudança se tratados coletivamente. Nesse sentido, a subjetividade complexa do oprimido nunca pode ser romantizada, mas reconhecida.

Olha só aquele clube que da hora
Olha aquela quadra, olha aquele campo
Olha, olha quanta gente
sorveteria cinema piscina quente
quanto boy, olha quanta mina
Afoga essa vaca dentro da piscina
Tem corrida de kart dá pra ver
É igualzinho o que eu vi ontem na TV
Olha só aquele clube que da hora,
Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora
Nem se lembra do dinheiro que tem que levar
Do seu pai bem louco gritando dentro do bar
Nem se lembra de ontem, de hoje e o futuro
Ele apenas sonha através do muro
(Racionais MC’s, “Fim de Semana no Parque”, em Raio-X do Brasil, 1993)

Rabaka lembra que o rap essencialmente “expande nossa compreensão da experiência humana ao contar histórias que de outra forma não ouviríamos” (Rabaka, 2013, p. 43). O autor enfatiza que “rap é poesia, e poesia é uma forma textual e, às vezes, oral que pode expressar liricamente tanto o amor quanto o ódio, o sagrado e o secular, a comédia e a tragédia, o êxtase e a agonia”. Em quase 30 anos desde o lançamento de “Fim de Semana no Parque”, após gerações de rappers no Brasil, seria justo dizer que muita coisa mudou, mas a necessidade de criticar a violência, a misoginia e a homofobia no rap e na cultura hip hop permanece primordial.

A própria natureza da cultura hip hop é de um espaço de expressão politicamente progressista e questionadora. Nesse sentido, a cena do rap brasileiro foi inundada por mulheres fortes e rappers LGBTQA+ que continuam a oferecer críticas quanto à violência, masculinismo, heterossexismo, materialismo e aceitação aberta do capitalismo violento no rap e no Brasil. Por mais pedagógico e subversivo que o rap possa ser, o “rap de mensagem” (como um rap que informa e conscientiza) vem desempenhando seu papel histórico na agenda sociopolítica do país. O grupo de rap Quebrada Queer lançou um single inovador em 2018, com o mesmo nome. Na cypher, 5 MCs (Murillo Zyess, Guigo, Boombeat, Harlley e Tchelo Gomez) rimam sobre suas próprias experiências de serem pessoas lindas, complexas, queer, periféricas, contra a LGBTfobia e o racismo. Outro exemplo é o single “Poetisas no Topo” (2018), das MCs Mariana Mello, Nabrisa, Karol de Souza, Azzy, Souto, Bivolt e Drik Barbosa. É uma faixa feminista que aborda especificamente as contradições do hip hop como um movimento que repete práticas coloniais.

A indústria da música pode prever certos fenômenos da mídia popular analisando padrões de consumo, mas não pode prever a identificação orgânica do sujeito histórico e da mensagem que está sendo transmitida. Isso porque “cada favelado é um universo em crise”, como disse Mano Brown em Da Ponte Pra Cá (2003), e esse entendimento é revolucionário. Na mesma música, os Racionais afirmam o argumento central de todo este ensaio: “Da ponte pra cá, antes de tudo, é uma escola”.

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Nota

1 Tradução da autora, sujeito a correção. Original em francês: « On nous a reproché, singulièrement du côté anglo-saxon, d’avoir choisi le français pour exprimer le Négro-africain. On a voulu être plus royaliste que le Roi. Je répondrai que nous n’avons pas choisi. Et, s’il avait fallu choisir, peut-être aurions-nous choisi le français. Non par sentiment, je dis par raison. Mais, je le répète, nous n’avons pas choisi. C’est notre situation de colonisés qui nous imposait la langue du Colonisateur, plus précisément la politique de l’assimilation. Tout n’était pas mauvais, au demeurant, dans cette politique, qui procédait des « immortels principes » de 1789. Le malheur est qu’ils ne furent pas, ces principes de la Révolution, appliqués intégralement, sans hypocrisie ; le bonheur est qu’ils furent partiellement appliqués, assez pour que leurs vertus, dont la culture française, portassent leurs fruits. Car la Négritude est fruit de la Révolution, par action et réaction. Comme le dit Jean-Paul Sartre, nous avons choisi les armes du Colonisateur pour les retourner contre lui. « Les armes miraculeuses », précise Aimé Césaire » (Senghor, 1963, p. 9).

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