Quarto Camarim: bem mais que um “documentário LGBT”

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Construído a partir do reencontro entre cineasta e sua tia travesti, filme tenta borrar fronteiras entre vida e arte, registro e ficção, fato e memória.

Por Fabrício Lima

Quarto Camarim não é exatamente mais um filme LGBT. Não que a temática LGBT não seja organicamente afirmada nos 101 minutos do primeiro longa da dupla de cineastas baianos Fabrício Ramos e Camele Queiroz (“Cruzes e Credos”; “Muros”) mas, o grande condutor da narrativa é a busca da diretora pelo destino de sua tia Luma, com quem perdeu contato aos 6 anos de idade. Essa busca por Luma, que Camele conheceu como ‘tio Roniel’, é o gatilho para que a diretora revisite – agora como adulta – as histórias das suas relações familiares sob uma nova perspectiva e tenha meios para compreender o fascínio que a riquíssima figura de Luma sempre lhe exerceu.

“O fato de Luma ser travesti traz à tona dimensões sociais e políticas complexas no campo da sexualidade, das diferenças de classe, dos afetos familiares, do preconceito violento e de questões de gênero. Questões políticas, portanto, são inerentes ao filme. Mas a abordagem escolhida por nós, que se situa no limite das relações entre estética e política, propõe ao espectador uma experiência cujo sentido e importância ele mesmo deverá procurar. Preferimos não estabelecer de antemão ou julgar a importância que o tema do filme evoca. Mas temos consciência de que, por um lado, a força dramática do filme reside no fato de Luma ser travesti e ser minha tia, mas por outro, essa força vem também da expressão pessoal de minhas inquietações e das escolhas formais às quais eu recorro para expressá-las, nublando as fronteiras entre a vida e a arte, entre o documentário e a ficção, entre o fato e a memória”, destaca Camele.

O reencontro entre Camele e Luma acontece em São Paulo, onde Luma divide seus afazeres entre um salão de beleza e dar vida a divas da música do século 20 em performances tão intensas quanto ela própria. Após o primeiro contato, a relação entrevistador/entrevistado e suas diretrizes começa a dar lugar ao vínculo familiar que havia se diluído em 27 anos de distanciamento e que é reativado por meio das trocas entre ambas. Constatando isso, os diretores permitem que essa nova dinâmica possa a ser o fio condutor da narrativa e o documentário deixa de ser o produto de uma observação em terceira pessoa para ser ele próprio o mediador desse reencontro.

Sem receio de romper com alguns dos protocolos que permeiam o gênero documentário, o viés íntimo da obra transparece em sua estética e montagem, o que permite à dupla de cineastas materializar o seu caráter emotivo sem fazer uso de recursos que não pertençam à história. Essa condicionante aparece em muitos aspectos do filme através de escolhas estéticas calcadas mais pelo conteúdo do que pela forma, como quando optam por não acrescentar qualquer imagem durante um determinado diálogo por entenderem que ali, ao fazê-lo, correriam o risco de subtrair algum elemento subjetivo importante ou acrescentar alguma informação desnecessária para o seu ciclo narrativo. Uma saída pouco comum se comparado às utilizadas nas estruturas narrativas que nos acostumamos a ver em peças cinematográficas produzidas no país – fundamentadas em um padrão estético recorrente – mas que é fundamental para estabelecer um vínculo fidedigno entre quem conta e quem ouve a história. O resultado dessas escolhas é um filme cativante e, principalmente, honesto consigo mesmo e com as partes envolvidas.

Rodado com um orçamento de curta-metragem o filme, inédito no Brasil, foi projetado em festivais internacionais no Canadá, República Dominicana e Venezuela. Aqui, ele estrela o a terceira edição da “Sessão Abraccine”, evento itinerante promovido pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema que percorre as salas de projeção pelo país que inclui a exibição de um filme especialmente escolhido pelos críticos seguido de um bate-papo que envolve convidados especiais e espectadores logo após a projeção.

A turnê nacional da Sessão Abraccine terá duas fases. Na primeira fase “Quarto Camarim” será exibido em salas de Goiânia, São Luís, Florianópolis, Rio de Janeiro, Belém, Porto Alegre e Salvador. Na segunda fase, que acontece no mês de abril, o filme terá sessões especiais em São Paulo, Recife, Fortaleza, Brasília, Belo Horizonte e João Pessoa. As salas e horários de exibição estarão disponíveis no site do próprio filme a medida que são confirmados pela entidade. A entrada é gratuita.

DATAS DE EXIBIÇÃO CONFIRMADAS:

05/03 – Goiânia e São Luís.
06/03 – Florianópolis
16/03 – Rio de Janeiro.
22/03 – Porto Alegre.
27/03 – Salvador.
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Um comentario para "Quarto Camarim: bem mais que um “documentário LGBT”"

  1. Silvio Reis disse:

    O texto (da crítica) é muito bem escrito que QUASE se torna mais importante do que o filme.

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