Presídios: em vez de proteção, solitárias e granadas

Governo nada gastou com EPIs contra covid-19. Mas impôs privação total de visitas e assistência jurídica, e tentou isolar contaminados em caixões de ferro. Agora, temendo provável convulsão, R$ 20 milhões com aparatos de repressão

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Por Ricardo Campello e Rafael Godoi, no Le Monde Diplomatique Brasil

Granadas indoor: fabricadas com o corpo inteiramente de borracha, duplo estágio e retardo 1,5 segundos, são ideais para utilização em ambientes internos. 

Granadas lacrimogêneas: produzem densa fumaça, com agentes lacrimogêneos, garantindo a eficácia na ação dos agentes da lei. 

Pimenta OC e CS: para uso no controle de distúrbios, garantem eficácia na incapacitação através da ação de agentes químicos. 

Munições de impacto controlado: último degrau da Não-Letalidade. Fabricadas nos modelos calibre 12 e calibres 37/38 mm, 37/40 mm, 38.1 mm e 40 mm, permitem ao agente da lei disparar contra um alvo com total segurança e efetividade.”

A lista de produtos apresentada acima compõe o catálogo da empresa Condor Tecnologias Não-Letais, parceira há mais de uma década do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Nas últimas semanas, cerca de R$ 20 milhões  foram destinados pelo órgão governamental à aquisição de artefatos como esses, com o propósito de enfrentamento aos “possíveis tumultos” no sistema prisional em razão da suspensão de visitas. Há mais de três meses estão proibidas as visitas nas unidades prisionais de todo o país, sob a justificativa de prevenção à disseminação da Covid-19 nas cadeias. Entretanto, a manutenção de mais de 700 mil pessoas em instituições hiperlotadas e o fluxo permanente de entrada e saída de milhares de servidores penitenciários tornam inócuas as medidas restritivas, cujo efeito colateral principal reside na possibilidade iminente de exacerbação das tensões no interior das unidades. Nesse contexto, a compra de aparatos pirotécnicos voltados à tortura tecnológica integra o conjunto de medidas que constituem a atual administração política da pandemia de coronavírus nas prisões brasileiras. E a estratégia profilática de gestão epidemiológica no sistema carcerário passa a ser paramentada pela indústria do castigo.  

Malgrado a ocultação notória e deliberada de informações a respeito dos impactos da Covid-19 nas prisões do país e passados mais de três meses desde a deflagração da crise, já nos parece possível esboçar uma análise dos traços gerais das políticas penitenciárias desenvolvidas nesse cenário. Debruçamo-nos aqui sobre as medidas levadas a cabo pelo Depen, órgão executivo vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), responsável pelo controle e administração da execução penal em todo o país. Não contemplamos aqui, portanto, a questão das  providências tomadas (ou não) pelo Poder Judiciário, o que implicaria uma análise do fluxo de entradas e saídas das prisões após a recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sugerindo a substituição das penas de prisão de pessoas em grupos de risco e em final de pena por outras medidas, como prisão domiciliar. Com o intuito de analisar mais detidamente a gestão política da pandemia no cárcere, concentramo-nos nas medidas engendradas pelo Poder Executivo Federal sob a rubrica do Depen.

Das primeiras portarias recomendando o fechamento completo das unidades prisionais em meados de março, aos mais recentes repasses de verba para a aquisição de armamento menos letal – passando pelas propostas de flexibilização da arquitetura penal e uso de contêineres para ampliação de vagas –, as autoridades penitenciárias demonstram (uma vez mais e como de costume) pouca preocupação com a vida e a saúde das pessoas privadas de liberdade. Ao contrário, neste momento de disparada dos níveis de contágio e de flexibilização das medidas de distanciamento social, a morte nas prisões, além de cuidadosamente silenciada, mais parece reiteradamente provocada, figurando como o destino provável de centenas e centenas de presas e presos. Espaços de aglomeração infernal, atendimento médico precário e insalubridade absoluta, as unidades prisionais brasileiras reúnem os elementos propícios à disseminação generalizada do coronavírus – bem como de outras tantas enfermidades.

Em termos mais abrangentes, o diagnóstico de como o Estado brasileiro vem lidando com a pandemia já nos parece feito: trata-se da necropolítica em sua mais cristalina face, na qual avulta o genocídio de povos indígenas, negros e pobres – e se, do lado de fora dos muros, mesmo a morte de pessoas idosas e doentes “de bem” chega a ser considerada positiva para a nossa saúde previdenciária, o que se dirá das pessoas privadas de liberdade, no país onde, há muito tempo, “bandido bom é bandido morto”? De todo modo, buscamos instalar nossa análise aqui numa camada intermediária, entre esse diagnóstico mais abrangente e o registro das tragédias singulares que, nos últimos meses, vêm invadindo nossos dias. A ideia é explorar o nível das tecnologias de gestão da vida e da morte em sua empiria, discernindo nas medidas efetivamente adotadas pelas autoridades penitenciárias no contexto da pandemia, seus traços mais marcantes, seus movimentos mais pronunciados, bem como os diferentes contextos e conjunturas que desenham. 

No que se refere às políticas protagonizadas pelo Depen, é possível identificar duas disposições constantes e três momentos ou movimentos principais. Constantes são, de um lado, as políticas de negação e dissimulação da gravidade da crise sanitária nas prisões do país; e de outro, as políticas de fechamento do cárcere, a aposta reiterada na segregação, no isolamento e na incomunicabilidade das pessoas presas – como se fosse possível impedir a entrada do vírus nas unidades prisionais; como se não fossem múltiplos os vasos comunicantes que conectam os mundos de dentro e de fora dos muros. Não obstante a permanência dessas disposições no decorrer dos últimos meses, é possível identificar nas políticas “sanitárias” das autoridades penitenciárias nacionais três  momentos principais: num primeiro momento temos a adoção de medidas urgentes diante da deflagração de uma crise sanitária sem precedentes; em seguida, um período marcado por medidas preventivas bastante tímidas e pela tentativa de ampliação de vagas prisionais mediante a utilização de contêineres – tudo isso em meio a uma aguda crise política; e, finalmente, um terceiro momento – o atual – em que o contágio e suas mazelas são aceitos como um fato consumado e se aposta no recrudescimento da repressão.  

Medidas urgentes frente a uma crise sanitária

Tão logo se confirma a presença do vírus no Brasil, o Depen institui, em 28 de fevereiro, um Grupo de Trabalho para estudar possíveis impactos do novo coronavírus nas prisões do país. Em 2 de março, o órgão divulga o Procedimento Operacional Padrão (POP) a ser implementado nos presídios federais. Entretanto (e como em toda parte), é somente quando se tem os primeiros registros de contaminação comunitária que medidas mais drásticas começam a ser tomadas: em 16 de março, o Depen suspende visitas, atendimentos de advogados, atividades educacionais, de trabalho, de assistência religiosa, transferências e deslocamentos de presos em todo o sistema penitenciário federal. Dois dias depois, duas outras importantes portarias são publicadas pelo MJSP, sendo uma delas em parceria com o Ministério da Saúde (MS), ambas trazendo determinações específicas a serem adotadas pelas administrações penitenciárias estaduais para prevenir o contágio no interior das prisões.

Entre as diversas recomendações, as três principais medidas propaladas são: a suspensão de visitas familiares, o isolamento de pessoas presas com sintomas de gripe e a separação dos idosos do restante da população carcerária. Ou seja, trata-se de um conjunto de medidas emergenciais que visam impedir que o vírus adentre as prisões do país, que ele se propague no interior das muralhas e atinja os grupos mais vulneráveis. Tais medidas são de caráter imediato e estritamente administrativo, só dependendo da decisão dos gestores locais para serem postas em prática pelo corpo de funcionários já disponível – não dependem, portanto, de maiores investimentos, recursos e planejamento. Ao mesmo tempo, as autoridades penitenciárias negavam a gravidade da situação, sustentando que não havia contágio nas prisões do país e que a letalidade do vírus em prisões do mundo inteiro vinha se provando mínima. Características desse primeiro momento da crise, essas disposições se revelarão constantes nos períodos subsequentes. Tão constantes, quanto ineficazes, se se considera a extrema superlotação que vigora nas prisões do país, sua infraestrutura degradada e degradante e a precariedade dos serviços de atenção básica à saúde nelas disponíveis. Conforme tal arranjo se cristalizava, entrevíamos se atualizar a dinâmica dos velhos leprosários – fundamentada na segregação orientada à morte – e se anunciar (mais) um verdadeiro massacre. A inclinação funesta das medidas adotadas nesse primeiro momento é confirmada e reforçada pela publicação, em 30 de março, da portaria conjunta do MS com o CNJ, estabelecendo procedimentos de registro de óbitos e de sepultamento dos corpos, sem maiores investigações da causa mortis, como numa injunção para “pacificar os mortos” o quanto antes e a qualquer custo,  no fundo de uma vala comum.  

Iniciativas dispersas em meio a uma crise política

Apesar dos esforços para fechar as instituições, isolar sintomáticos e separar grupos de risco, a pandemia atinge o cárcere. Em abril, os primeiros casos vêm à tona: no dia 8, o primeiro contágio de uma pessoa presa é confirmado num presídio do Pará, e no dia 17, a primeira morte por Covid-19 é registrada dentro do sistema carcerário do Rio de Janeiro. Rapidamente as notificações vão se multiplicando – atingindo um número cada vez maior, não só de presos, mas também de funcionários.

Enquanto o vírus circulava, as autoridades prisionais ensaiavam uma política mínima (ou minimalista) de prevenção, calcada sobretudo na aquisição e distribuição de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e de materiais de higiene e limpeza. Trata-se de uma medida urgente, mas não imediata, porque depende da burocracia da administração pública. Mesmo com a suspensão dos protocolos de licitação, o Depen precisa levantar a demanda, contatar possíveis fornecedores, remanejar recursos – o que, invariavelmente, leva tempo. Os efeitos dessas medidas se concretizam na segunda quinzena de abril e maio adentro, na forma de dezenas de remessas, a praticamente todas as unidades da federação, com máscaras de diversos tipos, luvas e aventais, álcool em gel e sabonete líquido. 

Entretanto, o que marca e define todo esse segundo período é a proposta de ampliação de vagas pela utilização de contêineres. Atrelada à recusa sistemática em estimular um processo de desencarceramento, a criação de novas vagas por meio da utilização de estruturas metálicas claustrofóbicas e passíveis de superaquecimento aparece como solução rápida e eficaz aos quadros de superlotação. Em 17 de abril, a Diretoria Geral do Depen emitiu um ofício ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), solicitando a suspensão das Diretrizes Básicas para Arquitetura Penal, com o propósito de autorizar a instalação de contêineres adaptados para abrigar pessoas presas contaminadas e pertencentes aos grupos de risco. A ideia era utilizar essas estruturas como celas para idosos, diabéticos, hipertensos, asmáticos e pessoas com outras comorbidades, ou ainda aqueles que apresentassem os sintomas da Covid-19 e não necessitassem de tratamento intensivo. A proposta do Depen foi amplamente rechaçada por movimentos sociais, organizações da sociedade civil e coletivos anti-prisionais, que apontaram para as condições análogas à tortura subjacentes ao confinamento de pessoas em contêineres. As altíssimas temperaturas e a falta de circulação de ar no interior destes espaços, fabricados para armazenamento de carga, eram algumas das objeções apontadas pelas mais de 70 entidades signatárias de um apelo enviado à Organização das Nações Unidas (ONU) com o intuito de barrar a proposta. No dia 15 de maio, sob a pressão dos movimentos, a proposta foi vetada mediante resolução definida pelo CNPCP. Todavia, a decisão do Conselho manteve a possibilidade de utilização de “estruturas temporárias” para abrigar presos e presas com suspeita de Covid-19, deixando a cargo dos estados a definição de como seriam estas estruturas. Manteve-se aberta a brecha aos improvisos locais e uso de espaços e compartimentos deletérios para o abrigo de pessoas presas. 

É também neste período que o Depen anuncia o financiamento de programas de monitoração eletrônica, direcionados a pessoas em cumprimento de medidas cautelares diversas da prisão; medidas protetivas de urgência; regime semiaberto de execução penal e prisão domiciliar. Mediante a portaria publicada no dia 3 de maio, o órgão prevê um repasse de verbas às unidades da federação com o propósito de fomentar os serviços e estruturas de monitoramento, cujo principal efeito, neste caso, consiste em converter os regimes aberto e semiaberto em regimes mais fechados – rastreados, controlados, supervisionados. O que seria uma suposta alternativa à prisão é instrumentalizado como via de intensificação do controle penal além-muros.

Assim como ocorre com as políticas sanitárias empregadas no país de modo geral, esse segundo momento das políticas penitenciárias de enfrentamento da pandemia é marcado, em grande medida, pelas crises políticas que emanam do planalto – e que explicam, pelo menos em parte, a notória insuficiência das medidas preventivas adotadas, bem como o veto à proposta do Depen no CNPCP.  De modo esquemático, é possível dizer que uma crise decorre do enfrentamento de duas formas de se encarar a pandemia, uma mais alinhada às orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e outra que incorpora o negacionismo bolsonarista – e que tem como seus principais marcos as trocas de comando no MS, em 16 de abril e 15 de maio; enquanto a outra crise se instala no MJSP em torno da interferência do presidente na Polícia Federal (PF), acarretando a demissão do titular da pasta em 24 de abril e a troca da direção do DEPEN em 22 de maio.

A aposta repressiva numa crise securitária

A terceira fase que discernimos no processo político aqui em tela é a fase atual, marcada pela hegemonia do negacionismo bolsonarista nos órgãos governamentais, quando uma injunção à “abertura” e à normalização da vida social (fora do cárcere) se sobrepõe à escalada do número de contágios e mortes. O MS, posto sob intervenção militar, passa a alterar políticas de contabilidade do contágio e de divulgação das informações da pandemia, num esforço deliberado de produzir uma sensação de normalidade. No Depen, por sua vez, neste último período, duas movimentações principais são dignas de nota. Em primeiro lugar, vale notar que, no fim de maio, o órgão começa a distribuir as primeiras remessas de testes rápidos de Covid-19 às administrações penitenciárias estaduais. É importante ter em mente que esses testes sorológicos, que identificam a existência de anticorpos num organismo, têm baixa sensibilidade e são incapazes de detectar a Covid-19 na fase ativa de transmissão do vírus. Eles podem ter, portanto, algum valor para a análise epidemiológica, mas não servem para informar uma política proativa de contenção do contágio – o que deveria ser ainda mais necessário num ambiente de confinamento extremamente precário e superlotado. Nesse sentido, o que pode parecer um grande esforço sanitário, mais revela, na verdade, a aceitação tácita da disseminação do vírus no cárcere como um fato consumado.   

Por outro lado, ainda no rescaldo das discussões em torno da utilização de contêineres, mas já manifestando as prioridades e inclinações da nova gestão do Depen, em 27 de maio, o diretor de políticas penitenciárias assina um despacho tratando do repasse de recursos voltados ao combate ao coronavírus no sistema prisional. Dentre os itens do despacho, previa-se a destinação de cerca de 20 milhões de reais às administrações penitenciárias estaduais, voltados à aquisição de armamentos menos letais, tais como granadas lacrimogêneas, munições de elastômero e sprays de pimenta. O objetivo era precaver os estados de possíveis rebeliões desencadeadas pelas prolongadas restrições e austeridades que haviam sido definidas pelo próprio Depen. Para as autoridades penitenciárias, o longo período sem direito a visitas e a ausência de atendimento jurídico poderiam provocar um estado agudo de tensões nas unidades prisionais, cujo controle dependeria do fortalecimento de suas capacidades repressivas. A tônica da política penitenciária se desloca, então, para o endurecimento securitário, fomentando e sendo ela mesma fomentada pela florescente indústria brasileira da punição.

Nesse sentido, o uso de artefatos bélicos desenvolvidos pelo setor privado e destinados à contenção de revoltas é revelador da mecânica perversa que vem caracterizando a administração epidemiológica no sistema prisional brasileiro. Articulado às políticas de fechamento do cárcere e à flexibilização das diretrizes de arquitetura penal, o emprego das mais diversificadas tecnologias de produção da dor física integra as principais medidas de gestão público-privada da Covid-19 nas prisões. De um lado, a crise sanitária deflagrada pela pandemia é tomada como pretexto para a intensificação da segurança penitenciária e a asfixia completa das populações encarceradas. De outro, a prospecção de rebeliões possivelmente provocadas por tal conjuntura agônica é tida como janela de oportunidades para as empresas e empresários do ramo, convertendo um problema de saúde pública em vetor de aquecimento do mercado do castigo.

Desse modo, o cenário de catástrofe desencadeado pela pandemia e seus desdobramentos no cárcere põe a nu alguns dos traços característicos do Estado brasileiro nos tempos atuais, que vincula seu culto à tortura com o estímulo zeloso à economia de mercado, às custas das vidas daqueles que habitam ou orbitam as prisões. A análise das políticas penitenciárias no contexto pandêmico revela a face mais crua do cruzamento entre a disposição obstinada do governo federal em exercer sua capacidade de fazer morrer com a incitação irrefreada à iniciativa privada como agente fundamental de gestão da crise. 

Ricardo Urquizas Campello é doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo, onde defendeu recentemente a tese intitulada “Faces e interfaces de um dispositivo tecnopenal: o monitoramento eletrônico de presos e presas no Brasil”.

Rafael Godoi é pesquisador de pós-doutorado do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU) da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor do livro “Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos”.

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Os autores fazem parte de um coletivo de pesquisadores engajados no acompanhamento da pandemia de Covid-19 nas prisões brasileiras. Nesse sentido, o artigo publicado ressoa em um conjunto de pesquisas – passadas e presentes – sobre punição, controle, desaparecimentos e outras formas de violência do Estado, desenvolvidas, individual e coletivamente, ao longo dos últimos anos. Pelas importantes sugestões e contribuições a este texto, os autores agradecem a Camila Prando, Fábio Araújo, Fábio Mallart e Fábio Candotti.

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