Argentina: a "nova" direita de Macri

Empresários em postos-chave do governo. Elogio da meritocracia. Aparência de informalidade e de “contato com a população”. Como um governo ultra-liberal esconde as garras

O presidente Maurício Macri vai às ruas. Por meio do “timbreo”, membros do governo percorrem bairros em bem montada encenação de “informalidade”

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Por Bárbara Ester e Ava Goméz, no site do Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica | Tradução: IHU 

O avanço dos governos neoliberais desde a segunda década do século XXI, seja pelas vias eleitorais ou pela ativação de golpes contra a institucionalidade — como sucedeu no Brasil e Paraguai —, fez ressurgir no imaginário coletivo, e em particular no entorno dos analistas e especialista da política, a ideia do retorno da direita política ao poder, a partir de uma perspectiva de “fim do ciclo” dos governos progressistas latino-americanos.

E é que os líderes latino-americanos, que substituíram governos progressistas por vias democráticas ou a ponto de golpes de Estado, manifestaram em uma e outra ocasião estar nas antípodas dos discursos inovadores e políticas progressistas. Assim, recordando o decálogo dos anos 1990, Temer tem estabelecido no Brasil uma atividade orientada à articulação de um discurso favorável e de acordo com as políticas de ajuste fiscal, reformas trabalhistas e previdenciárias que retiram direitos, repreende o protesto social e gera privatizações. No Equador, desde que Lenin Moreno chegou ao poder na mão da Alianza PAIS e Rafael Corrêa, tem se feito o possível para se desmarcar do exercício progressista do seu antecessor, articulando e desenvolvendo estratégias de aproximação à velha política, por meio de — entre outras ações — um Referendum Consitucional com o qual buscou reestruturar o sistema político embasando-se na aproximação aos poderes econômicos e políticos tradicionais, assim como a seus meios de comunicação. Por sua vez, Horacio Cartes, o presidente empresário do Partido Colorado no Paraguai, está na reta final de um governo de amplos ajustes em todos os setores sociais que tem impactado no aumento da pobreza e da desigualdade.

Argentina, um híbrido entre o novo e o velho

Mauricio Macri na Argentina alcançou aplicar a percepção de que existe um novo tipo de político inovador, que articula em suas lutas políticas as concepções de uma sociedade cosmopolita com jovens interconectados na “Aldeia Global”, cuja pirâmide de necessidades “New Age”, os faz ser parte de um alvo muito diverso. Esta perspectiva de “nova política” do seu partido, o “Cambiemos”, tem servido também para que os consultores da nova direita tremulem suas bandeiras e se posicionem (convertendo-se em best sellers e em estrelas da assessoria política) em todos os rincões da América Latina. Porém, qual é seu impacto na América Latina? Para além de Macri, com todas as dúvidas que pode suscitar chamar a seu discurso de “renovação”.

O caso da Argentina foi utilizado de arquétipo por Jose Natanson para definir o novo estilo da denominada “nova direita”. Natanson encontra diferenças substanciais do macrismo com outros governos neoliberais clássicos cuja máxima expressão foram os presidentes latino-americanos da década de 1990. Fundamentalmente, em certa construção hegemônica, graças a acertada eleição de formas e alvos que o Pro e Cambiemos endossaram à política.

Analisaremos ponto por ponto cada uma das características da novidade, ou melhor de um novo híbrido, no qual o novo não termina de nascer e o velho não termina de morrer.

1. A profissionalização da campanha política

Com as campanhas políticas tem passado o mesmo que com os negócios, encontraram-se nas novas tecnologias informáticas um terreno fértil para vender desde produtos até ideias. Nesse sentido, o Cambiemos conseguiu medir os tempos, os modos e as formas. Se antes o problema era a falta de informação, hoje a desinformação é produto da sobrecomunicação. Não são apenas os meios de comunicação, ainda que a visualidade se imponha e convirja na mídia dominante, “cada muro é um mundo”.

Da mesma forma que as empresas compram informação para saber o comportamento de seus usuários e criar melhores estratégias de vendas, a política tem desenvolvido um mercado de propaganda política, desde a massificação dos líderes políticos nas redes sociais, até exércitos de perfis anônimos, nomeados “trolls”, que conseguem impor tendências em redes. Este tipo de estratégia agressiva de vendas se encontra nas antípodas de toda a cultura política anterior.

A inovação e as campanhas em redes sociais chegaram para ficar, todos os partidos políticos competitivos — embora atrasados — adaptaram-se. Agora têm perfis e circulam nas redes — especialmente os comentários polêmicos no Twitter — e em programas de televisão. Neste ponto, a direita tem conseguido capitalizar sobre novas tecnologias e estabelecer uma vantagem, interpretando a modernidade na chave simmeliana, com o predomínio da forma sobre o conteúdo.

2. Política econômica

Em termos de política econômica, apresenta diferenças e semelhanças com a década dos anos 90. Em primeiro lugar, tanto na Cidade de Buenos Aires como na Presidência, o caráter estatal dos serviços públicos foi mantido, ainda que com sucessivos aumentos nas taxas e redução das pensões através da polêmica reforma previdenciária. Apesar disso, até agora sua política não foi privatizar, ou seja, não apresentou uma política antiestatista — apesar de reduzir os gastos públicos —, mas é possível que, dada a não viabilidade de continuar a fazer dívidas, seja uma opção.

As demissões em massa são uma questão complexa, uma vez que não foram disparadas de uma vez, mas em ondas sucessivas. Somente durante o mês de janeiro de 2018, o Centro de Economia Política Argentina (CEPA) registrou 6.639 demissões e suspensões em todo o país. Este número representa quase o dobro registrado por uma mesma agência em janeiro de 2017 (3.692 casos) e também em dezembro de 2017, onde 3.346 demissões foram registradas. Na quebra dos casos mencionados, quase 60% das demissões correspondem ao setor público e estão concentrados nas agências descentralizadas da administração. Enquanto isso, a mudança para a supremacia do setor financeiro lança ao mar os trabalhadores do setor privado.

3. Local vs. Público

Sem dúvida, a verdadeira novidade do Cambiemos foi desenvolvida em sua gestão na Cidade de Buenos Aires, onde conseguiu impor uma administração eficiente e supostamente moderada, modernizando a política de transportes, a oferta cultural e a melhoria de espaços e praças verdes. Nesse sentido, também não apresenta uma inovação, dado que o conceito de municipalização da política [1] explica como, no caso chileno, o regime militar conseguiu reformular a política, retirando-a das suas configurações históricas e transferindo-a para os espaços micro — comunas —, onde ocorria a vida cotidiana das pessoas, fato que constituiu uma nova institucionalidade e foi parte do processo de ressocialização do povo chileno realizado em 1973.

4. Encenação da política

Natanson aponta um aspecto fundamental, o discurso da cultura de trabalho suscitado pelo que ele chama de “herdeiros meritocráticos”. Em seu Gabinete de Ministros, destaca-se a presença de personagens antes ausentes na política institucional, como o atual chefe de gabinete, Marcos Peña, cientista político (Universidad Torcuato Di Tella). Não obstante, há convivência com membros da política tradicional como Patricia Bullrich, que atuou como secretária de Política Criminal e Assuntos de Penitenciários nos anos de 1999 e 2000, servindo também como Ministra da Previdência Social nos anos 2000 e 2001, na véspera da crise social. No mesmo sentido, Horacio Rodríguez Larreta, o Chefe de Governo de Buenos Aires, não apenas pertence à aristocracia argentina, mas também desempenhou um papel importante na esfera pública. A novidade é a incorporação de CEOs [2] do setor privado, que se somaram — incompatibilidade de interesses — ao setor público, como Guillermo Dietrich ou Guillermo Aranguren. No entanto, esse fato não teve grandes repercussões na opinião pública, em parte porque a política pode ser consumida como uma representação da realidade e não a realidade em si mesma. O melhor exemplo nesse sentido é a encenação do timbreo (visita de políticos governistas a bairros), ficção projetada para parecer espontânea e informal, que apela a sentimentos, sensação de escuta e, mais uma vez, ao cotidiano — homologando ao cidadão com o vizinho e reduzindo a carga política.

5. Hegemonia cultural

Sem dúvida, sua grande conquista é o apelo a uma idiossincrasia New Age, uma identidade global e individualista com preocupações ecológicas e ansiosa pelo autocuidado. Esses cidadãos que atribuem hábitos saudáveis veem com bons olhos a reavaliação do cotidiano e do “normal” ante ao que eles consideravam como uma exaltação da política pelo kirchnerismo. “As pessoas querem estar tranquilas” — leia-se que aspiram a diminuir a centralidade da política em sua vida diária. Neste sentido, ele subscreve uma “renovação modernizadora” em face do sacrifício totalizante proposto como modelo de vida pelo governo anterior.

Finalmente, além da relação estreita em termos econômicos, no que diz respeito à esfera cultural e à construção do sentido, o Cambiemos tem tido gestos de condescendência com a última ditadura militar. Desde declarações oficiais negacionistas até a benefícios de prisão domiciliar para ex-repressores, sem esquecer o retorno a uma política de maior repressão. Nesse aspecto, há pouca diferença com políticos como Pedro Pablo Kuczynski (PPK) — que concedeu a prisão domiciliar ao ex-ditador Alberto Fujimori—, à reivindicação de Alfredo Stroessner pelo candidato do Partido Colorado, Mario Abdo Benítez — filho do ex-secretário particular do ditador —, das celebrações com o busto de [Augusto] Pinochet pela vitória de Sebastián Piñera ou os elogios à ditadura brasileira que professou Jair Bolsonaro, candidato presidencial que está em segundo lugar nas preferências, logo abaixo de Luis Inácio Lula da Silva.

A título de conclusão

Em sua maior parte, os novos governos da direita continental não desenvolveram mudanças radicais nos seus discursos ou nos artigos legislativos. Em qualquer caso, eles fizeram um exercício de replicação de processos de ajuste provenientes do final do século XX. A onda de discurso progressivo impactou em menor grau nos países que mantiveram regimes políticos contínuos como o México, onde o PRI de Enrique Peña Nieto permaneceu firme em sua abordagem às políticas neoliberais, como [Juan Manuel] Santos na Colômbia, cujo salto para a paz tornou-se uma nova oportunidade para ampliar o processo de abertura econômica do país. Finalmente, o peruano PPK mas iniciou seu mandato buscando recorrer ao apoio de uma direita mais liberal que conservadora no Peru, encontrou um quadro muito mais conservador do que o imaginado. Para sobreviver, ele não conseguiu recriar imaginários globalizados como no caso argentino, mas resolveu o rasgo mais profundo que polariza o país – o mesmo que o tornou presidente – inclinando-se para o poder real, cedendo o indulto a Fujimori [acabou renunciando em 21 de março de 2018 – nota Outras Palavras].

Nem os regimes continuistas, nem os rupturistas assumiram uma mudança do eixo discursivo nem uma nova forma de “fazer política”. No entanto, a luz de mudança está presente em algumas campanhas, mas com pouca permeabilidade no eleitorado mais conservador, que parece se mobilizar massivamente diante de posições “difíceis” em torno da família, do aborto, da chamada “ideologia de gênero” e, que geralmente são articulados em torno de atividades eclesiásticas. Um caso exemplar é o da Costa Rica, onde o líder político Fabricio Alvarado, candidato presidencial do partido de caráter religioso-conservador, Restauração Nacional, ganhou o primeiro turno das recentes eleições.

Agora, é verdade que na Argentina o Cambiemos obteve uma leitura do tempo sobre a época da gestão anterior, mas o tempo não é homogêneo e sua estratégia triunfante não é necessariamente extrapolada para a política latino-americana no seu conjunto. Em parte porque o pentecostalismo conseguiu uma profunda raiz no imaginário social de grandes setores e fortaleceu a visão de uma sociedade com valores conservadores: família, trabalho e iniciativa privada [3] [4].

Não se trata de que hoje, ao contrário dos contextos das ditaduras dos anos 70 e 80, os direitos são mais democráticos por convicção, mas sim, como afirma Guillermo O’Donnell, as burguesias nacionais passam por períodos contingentes em que podem coincidir com a democracia. Atualmente, nos casos em que as direitas tiveram um longo papel de oposição (Argentina, Equador, Bolívia, Brasil e Venezuela) conseguiram articular um discurso consensualista que tenta se apresentar como “pós-ideológico”, apelando para “os problemas das pessoas”. Por outro lado, em outros casos em que a direita governou sem interrupções progressistas, as direitas não tiveram a necessidade de reatualizar – em termos gerais – nem seus discursos, nem suas políticas, ao contrário, consolidaram sua posição.

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Notas

1. Valdivia, V. y Fritz, K. La alcaldización de la política: los municipios en la dictadura pinochetista. Santiago de Chile: LOM Ediciones, (2012).

2. Horacio Rodríguez Larreta foi nomeado gerente geral da ANSES (Administração da Previdência Social) em 1995 e subsecretário de Políticas Sociais na Secretaria de Desenvolvimento Social em 1998. Em novembro de 1999, foi designado interventor do programa de Atenção Médica Integral, dependente do Instituito Nacional de Serviços Sociais para Aposentados e Pensionados. Durante sua gestão, em 29 de julho de 2000, o reconhecido cirurgião René Favaloro se suicidou, entre outras razões, devido à dívida milionária que o PAMI mantinha com sua fundação. Da mesma forma, o ministro do trabalho Jorge Triaca, filho do dirigente gremial e político Jorge Alberto Triaca, quem encabeçou mesmo ministério entre 1989 e 1992.

3. Confira artigo do Celag sobre: http://www.celag.org/iglesias-evangelicas-poder-conservador-latinoamerica/

4. Confira artigo do Celag sobre: http://www.celag.org/la-re-espiritualizacion-la-politica/

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