Modernismo em Pernambuco e as máscaras do regional

No centenário da Semana de 1922, diversos modernismos emergem. No Recife, o regionalismo dá o tom de um debate perene sobre as artes, com ecos até hoje. Em entrevista sobre seu livro, sociólogo discute contextos, trajetórias e obras

Bichos imaginários, de Lula Cardoso Ayres
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Por Eduardo Dimitrov em entrevista a Maurício Ayer 

Esta entrevista foi realizada como parte do Projeto Ateliê da Palavra, uma realização do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria Estadual de Cultura e Economia Criativa, por meio do ProAC Editais 2021, e da Aymberê Produções. Outras Palavras é parceiro do projeto na realização de entrevistas.   

Dentre todos os “modernismos” que pipocaram no Brasil entre os anos 1920 e 1940, certamente um dos mais ricos, originais e interessantes foi o que se constituiu em Pernambuco. Distante do Rio de Janeiro, então capital, e de São Paulo, então uma província enriquecida que começava a almejar centralidade no mapa cultural do país, a capital pernambucana Recife tinha, no entanto, uma centralidade desejosa de voz própria. Ao redor da figura solar de Gilberto Freyre, a sociedade recifense procurou afirmar a ideia de que uma civilização original havia surgido no Nordeste brasileiro, e que sua contribuição à sociedade nacional e mesmo mundial viria justamente da exaltação da paisagem e da sociedade do açúcar. 

Com essa introdução, creio não trair o desenho geral que Eduardo Dimitrov, no livro Regional como opção, regional como prisão: trajetórias artísticas no modernismo pernambucano (Alameda, 2022), procura fazer da construção ideológica, social e cultural de uma voz pernambucana no concerto modernista brasileiro. Acrescente-se que, antes mesmo de Freyre, um regionalismo academicista dedicava-se a registrar a paisagem local, mas é o antropólogo que vai trazer o foco para o fundamental elemento humano. 

Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), Eduardo Dimitrov dá continuidade à pesquisa publicada anteriormente no livro O Brasil dos espertos: uma análise da construção social de Ariano Suassuna como “criador e criatura” (Alameda, 2011), em que a visão social da cultura era vista a partir da escrita de um dos principais autores da cena pernambucana no século XX (ainda que Suassuna seja paraibano de nascimento). Agora, abre o foco de seu olhar para estudar as trajetórias artísticas e entender, no calor dos embates sociais e das possibilidades vislumbradas e realizadas pelos artistas plásticos atuantes em Pernambuco, a especificidade ou os elementos recorrentes que marcam esse contexto cultural, ao menos no que tange essas trajetórias. 

Uma das coisas interessantes que o autor destaca na entrevista é que, embora a liderança de Gilberto Freyre como propositor de um “Regionalismo tradicionalista”, em contraposição aos modernismos paulista e carioca, seja indubitável e seminal, sobretudo no começo se tratava de uma visão bastante elitista da arte e da cultura. Freyre acreditava que a sociedade do açúcar trazia uma visualidade interessante e singular, que podia ser explorada pelos pintores. Os engenhos, os canaviais, o caldo de cana a ferver nos tachos e até – de maneira bastante acrítica, diga-se – os corpos dos trabalhadores negros no eito. A princípio, não se tratava de pensar também a riquíssima cultura popular de Pernambuco e Paraíba, mas de lançar um olhar apenas para os casarões, os sobrados, os canaviais e os engenhos. 

Eduardo mostra que as artes populares entram em cena pelas mãos dos artistas, invertendo a ideia sedimentada da precedência unívoca de Freyre nesse contexto. Foi Lula Cardoso Ayres, por exemplo, quem primeiro figurou suas personagens, nas pinturas, ao modo das figuras de barro de artistas populares nordestinos. 

Um outro aspecto correlato, tratado com muito cuidado no livro e sobre o qual conversamos nesta entrevista, é o apagamento da violência na representação da sociedade pernambucana, em especial a herança da cultura do açúcar – com as relações escravistas que se perpetuam transformadas, a hierarquia social, a violência colonial e escravocrata, a miséria, o trabalho extenuante do eito. Tudo isso é, em princípio, naturalizado e apagado numa sociedade pacificada e harmonizada. Ainda que a violência apareça sem idealismo ou naturalização no clássico freyriano Casa Grande & Senzala, e mesmo nos romances do ciclo do açúcar do paraibano José Lins do Rego, nas artes visuais a princípio elas são escondidas ou pacificadas. Eduardo mostra como será preciso uma geração seguinte, em especial com a pintura de Abelardo da Hora, para que a violência social seja plenamente retratada nas artes visuais locais.     

Nesse desenho geral, é a noção de regionalismo permanece presente como uma espécie de motivo condutor ao longo de todo o século XX. Mesmo quando artistas situam-se claramente fora desse espectro, de algum modo eles serão integrados a ele por um discurso que adere à obra e molda sua apreciação. O caso de Cícero Dias, como mostra Eduardo Dimitrov, é particularmente interessante. Compadre de Pablo Picasso, com quem convivia em Paris, Cícero foi aluno e amigo de Fernand Léger e pintou, entre tantas outras coisas, telas abstratas e geométricas. Porém, ao trazê-las para expor em Pernambuco, será caracterizado como um regionalista pelo próprio Freyre, que vai enxergar no verde de uma composição de retângulos e quadrados “a cor da cana-de-açúcar”. Mas nada é simples: Cícero saberá aproveitar desse regionalismo ao qual ele foi incorporado um tanto à revelia para inserir-se de um modo diferenciado na concorrida cena artística de Paris, na qual não era fácil conquistar um lugar à luz, como artista que tem algo a mostrar sobre o seu quinhão de mundo originário. 

Essas histórias dão um aperitivo da entrevista e do livro, em que Eduardo fala em detalhe e mostra obras desses artistas e de Vicente do Rego Monteiro, Francisco Brennand e Ladjane Bandeira, entre outros. 

Assista à entrevista na íntegra: 

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