Comuna de Paris: o lugar das mulheres revolucionárias

Elas desafiaram o patriarcado, inclusive o da esquerda. Mobilizaram ruas. Mesmo apartadas das eleições, defenderam a revolução nas trincheiras e jornais – e cuidaram dos feridos. Quem foram? Por que sofreram as punições mais severas?

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Por Mariana Carneiro, publicado originalmente no Esquerda.net

Barricada de mulheres, por Pellicer. Fonte: Associação Les Amies et Amis de la Commune de Paris (1871).

A Comuna foi uma verdadeira Revolução proletária e popular: um “governo do povo pelo povo”, o “glorioso introito de uma nova realidade”, segundo lhe chamou Karl Marx.

Mas a Comuna, eclodida em 18 de março de 1871, não foi apenas obra da classe operária no sentido estrito. Nela participaram ativamente classes médias empobrecidas, intelectuais, mulheres de várias camadas sociais, estudantes e soldados. E, no seu seio, reuniram-se libertários e jacobinos, blanquistas e “republicanos sociais”, apoiadores de Proudhon e Marx. Existindo divergências, e até divisões, no seio dos órgãos eleitos, prevaleceu a unidade na prática comum. A Comuna constituiu, nesse sentido, um movimento unitário e pluralista.

De cima para baixo e da esquerda para a direita: Louise Michel, Nathalie Lemel, Anne Jaclard, Paule Mink, André Léo e Elisabeth Dmitrieff.

É igualmente assinalável o seu pendor internacionalista, convocando combatentes de todas as nações. A cidadania comunal era, inclusive, concedida a quem trabalhasse para o seu desenvolvimento, independentemente da sua nacionalidade. Assumiram papel de prestígio no seio da Comuna figuras como o polaco Jaroslaw Dombrowskii ou o húngaro Leó Frankelii. Sessenta e cinco anos antes da Guerra Civil Espanhola de 1936, a Comuna inaugurou a tradição das brigadas proletárias internacionais, contando com uma brigada belga e uma brigada franco-americana. Citando Marx, a Comuna “concedeu a todos os estrangeiros a honra de morrer por uma causa imortal”.

No curto período de tempo de existência da Comuna, foram desafiadas hierarquias de gênero que estiveram profundamente enraizadas durante séculos. As mulheres participaram massivamente na Comuna e encontraram formas de influenciá-la através da sua participação em organizações no seio das comunidades e locais de trabalho, em sindicatos, comitês e clubes. O trabalho feminino e o acesso das mulheres à educação assumiram importância central na luta das communardes.

Primando pela auto-emancipação e auto-organização a partir de baixo, a Comuna, ainda que não contanto com um programa socialista preciso, implementou medidas com uma dinâmica anticapitalista radical. Neste contexto, não é de estranhar que a Comuna tenha sido reprimida e esmagada com uma violência atroz. Durante a Semana Sangrenta, de 21 a 28 de maio, milhares de communardes foram executados sem julgamento. Posteriormente, muitos outros milhares foram enviados para a prisão, condenados a trabalhos forçados ou deportados, grande parte para Nova Caledônia, colônia francesa no Oceano Pacífico. No rescaldo da Comuna, foi dissolvida a Guarda Nacional e proibida a filiação à Associação Internacional de Trabalhadores (AIT). A classe trabalhadora voltou a ser subjugada aos interesses dos exploradores e do capital, e as mulheres remetidas à inferioridade a que estavam condenadas.

Mas a percepção das trabalhadoras e dos trabalhadores, não só a consciência da sua exploração e da sua opressão, mas também do potencial emancipatório da sua luta, tanto em França como em muitas outras partes do mundo, bebeu desta experiência. E não mais seria a mesma. A Comuna, tal como refere Carolyn J. Eichneriii, permitindo a eliminação, ainda que provisoriamente, do status quo patriarcal, serviu também como “uma incubadora para socialismos feministas embrionários”.

A condição das mulheres

As mulheres francesas contavam com uma longa tradição de participação em lutas revolucionárias. Em plena Revolução Francesa, mulheres dos mercados parisienses marcharam até Versalhes, a 5 de outubro de 1789, em protesto contra a falta de pão e os ataques à Revolução. As mulheres voltaram a ser protagonistas das revoltas populares de janeiro de 1792, contra a escassez e carestia do açúcar. Durante a Revolução Francesa, formaram-se grupos revolucionários comandados ou organizados inteiramente por mulheres, e a sua participação em assembleias populares foi expressiva. Um ano mais tarde, lavadeiras insurgiram-se contra agiotas e especuladores. Estes são apenas alguns dos episódios protagonizados por mulheres que não foram totalmente silenciados pela História.

No rescaldo da Revolução Francesa, as mulheres sofreram um duro golpe. De acordo com o Código Napoleônicoiv, introduzido nos primeiros anos do século XIX, todos os cidadãos tinham direitos iguais perante a lei, mas a cidadania era negada às mulheres. O Código considerava as mulheres “civilmente incapazes”. A autoridade dos homens no seio da família foi reforçada e a mulher foi privada de direitos individuais. Os direitos de filhos ilegítimos também foram reduzidos. As mulheres, principalmente as casadas, eram relegadas à condição de filha menor: a esposa devia obediência ao marido em troca da sua proteção. Era estipulado que as mulheres casadas não podiam controlar os seus próprios salários, propriedades ou os assuntos financeiros ou legais dos seus filhos. As mulheres automaticamente assumiam a nacionalidade dos seus maridos e não podiam viver separadas destes seus. Uma mulher adúltera era condenada à prisão, já um homem adúltero não era penalizado, a menos que praticasse o adultério no leito conjugal, situação em que podia ser multado. A lei permitia, por outro lado, que um marido assassinasse a sua esposa, caso a encontrasse cometendo adultério. As mulheres solteiras não podiam fazer reivindicações legais de paternidade.

Mas as mulheres continuaram a honrar a sua tradição revolucionária. Exemplo disso é a sua participação ativa nas jornadas revolucionárias de junho de 1848. E a proliferação, ainda que efêmera, de órgãos de imprensa como La Voix des Femmes (março-junho de 1848) e Politique des Femmes e Opinion des Femmes (outono inverno de 1948). A Desirée Gay, diretora de Politique des Femmes; a Jeanne Deroin e a Pauline Rolland, cofundadoras de União de Associações Operárias; a Elisa Lemonnier, que cria o Ensino Profissional para moças, e a Eugénie Niboyet, diretora da Voix des Femmes e autora de Le vrai livre dês femmes, sucederão outras mulheres, intelectuais e operárias.

Desde meados do século XVIII, deu-se uma proletarização das mulheres francesas, com a sua presença expressiva na produção industrial do país. No entanto, a sua integração no seio do movimento operário e o seu reconhecimento como sujeito histórico que participa no processo de emancipação social esteve longe de ser pacífico.

Pierre-Joseph Proudhon, por exemplo, opôs-se prontamente à inclusão das mulheres no trabalho assalariado e defendeu que a vontade de emancipação das mulheres era uma das faces da pornocraciav ligada ao novo feudalismo industrial.

“O papel das mulheres não é na vida exterior, na vida ativa e na agitação, mas antes na vida íntima, do sentimento e da tranquilidade do lar. O socialismo não veio apenas para restaurar o trabalho; ele veio também para reabilitar a casa, o santuário da família, símbolo da união matrimonial” Proudhon, Le Peuple, em 27 de dezembro de 1848

Os ataques às mulheres trabalhadoras eram, muitas vezes, ferozes. Quando, em 1849, Jeanne Deroin, costureira francesa, surgiu como candidata nas eleições, Proudhon declarou que ela era inapta porque os órgãos que serviam para alimentar bebês não tornavam as mulheres adequadas para a votação. Jean respondeu pedindo a Proudhon para lhe mostrar o órgão masculino que lhe permitia votar.

Jeanne Deroin, anônimo. Parte de uma Ilustração extraída do jornal L’Opinion des femmes, n. 1, jan. 1849.

Já em 1866, na reunião inaugural da seção francesa da AIT, os delegados aprovaram uma moção que afirmava que, “do ponto de vista físico, moral e social, o trabalho feminino fora de casa deve ser energicamente condenado como causa da degeneração da raça e como um dos agentes de desmoralização usada pela classe capitalista”.

Ainda que a seção francesa da Internacional se tenha mantido marcadamente proudhonista, pelo menos quatro membros socialistas da Comuna – Eugène Varlin, Benoît Malon, Édouard Vaillant e o húngaro Leó Frankel – levaram a cabo iniciativas que promoveram a igualdade das mulheres nas suas áreas de responsabilidade.

Uma sociedade patriarcal assente nas desigualdades de gênero

Nas vésperas da Comuna de Paris, as mulheres enfrentavam um quadro legislativo que as menorizava e subalternizava, um modelo de sociedade patriarcal que as oprimia e um mundo laboral hostil que exacerbava também as desigualdades de gênero.

Os números mostram que, em 1871, existiam apenas 114 mil trabalhadores na indústria parisiense (incluindo 62 mil mulheres), em comparação com 600 mil empregos em 1870. As mulheres trabalhavam entre 12 e 14 horas por dia e os salários iam de 250 francos a 50 cêntimos por dia (menos o valor dos consumíveis pago pela trabalhadora). Era o equivalente a metade do salário masculino.

Fonte: Associação Les Amies et Amis de la Commune de Paris (1871).

Nathalie Lemelvi, que, em 1865, integrou a AIT, participou com Varlin na criação do sindicato dos encadernadores. Exigiram e obtiveram, através da greve que encabeçaram, igualdade salarial entre homens e mulheres. Lemel desempenhou também um papel essencial na criação de restaurantes comunitários para “distribuir alimentos a preço de custo”, dirigindo um restaurante cooperativo chamado La Marmite. Já Victorine Brochonvii, que também era membro da AIT, dirigia uma padaria cooperativa em La Chapelle, que doava uma parte dos seus fundos para novas cooperativas e foi fundamental durante o cerco de Paris no esforço de alimentar a população esfomeada.

A par da gritante desigualdade salarial, as mulheres enfrentavam condições de trabalho mais degradantes, que lhes causavam inúmeros problemas de saúdeviii, e, não raramente, eram alvo de assédio sexual por parte de patrões ou supervisores.

Refira-se ainda que as mulheres estavam, na sua esmagadora maioria, afastadas da escola, sendo que, em 1867, 41% não sabia assinar o seu nome, contra 25% dos homens.

Origens da Comuna de Paris

Desde a Revolução Francesa de 1789, os períodos de prosperidade enriqueciam exclusivamente as elites, enquanto que à classe trabalhadora eram imputados os custos das crises. Na sequência dos levantamentos revolucionários, o Império de Napoleão III prometeu direitos, liberdades e paz, ao mesmo tempo que intensificou as campanhas militares e perseguiu ferozmente os seus opositores. Por outro lado, a tão propalada prosperidade do Segundo Império francêsix, caracterizada pela industrialização e modernização capitalista do país, o desenvolvimento da especulação financeira, da corrupção e o aumento da carga fiscal traduziu-se no agravamento das desigualdades, na miséria dos trabalhadores e trabalhadoras, e despoletou uma crise entre as classes médias e a pequena burguesia rural e urbana.

O panorama social e econômico degradou-se com a guerra franco-prussiana, desencadeada por Luís Napoleão a 19 de julho de 1870. Menos de dois meses após o início do conflito, a dois de setembro, o exército francês enfrentou uma pesada derrota em Sedan, com a capitulação do exército de Mac Mahon. O imperador Luís Napoleão foi capturado pelos prussianos no campo de batalha. Entretanto, as volumosas despesas da guerra, e o peso da derrota francesa, recaíam sobre o povo.

As notícias sobre o desastre militar chegaram a Paris a 3 de setembro, onde, durante a noite, foi anunciada nas ruas a manifestação de massas no dia 4 de setembro. Uma enorme multidão reuniu-se primeiro junto ao Hôtel de Ville, rumando posteriormente ao Palácio legislativo, que foi invadido pelos manifestantes. Até ao final do dia, o Império tombou, foi declarada a República, e formou-se um governo provisório de Defesa Nacional, presidido pelo general Jules Trochux. Por iniciativa da AIT e da Chambre Syndicale de Sociétés Ovrières foram formados comitês de vigilância, que passaram a ser responsáveis pela administração em cada arrondissement.

Na manifestação do dia 4, as mulheres, principalmente as trabalhadoras, eram numerosas. André Léoxi e Louise Michelxii, duas reconhecidas communnardes, recordaram posteriormente esses momentos e a expectativa criada no sentido do nascimento de uma verdadeira República e, com ela, de uma sociedade igualitária. Mas, rapidamente, se desenhou uma outra realidade. Os republicanos liberais formaram uma coligação com as facções orleanistas e monárquicas de direita, com vista a acabar com a guerra e a esmagar a ameaça de revolta social. E o seu pendor autoritário e repressor cedo se revelou. Carolyn J. Eichner refere que, aparentemente, o governo de Defesa Nacional receava mais o povo de Paris do que os próprios agressores externos.

Em 5 de setembro, foi formado o Comitê Central dos vinte arrondissements, saído dos comitês de vigilância aí existentes, que, dez dias mais tarde, clamou, através de um cartaz divulgado nas ruas de Paris, a guerra até às últimas consequências. No dia 18 de setembro, um grupo de mulheres organizou uma manifestação em frente ao Hôtel de Ville, que contou com a participação de muitas professoras. Louise Michel e André Léo foram indicadas para falar com o governo, que recusou qualquer apoio na defesa da cidade francesa de Estrasburgo, sitiada pelas tropas prussianas. Ambas foram detidas e interrogadas. Nesse mesmo dia, Estrasburgo capitulou diante da Prússia.

Entretanto, após o revés das negociações entre Otto von Bismarckxiii e Jules Favrexiv em Ferrières, perto de 200 mil elementos das tropas prussianas cercaram Paris. O cerco trouxe fome e miséria aos parisienses, mas nem todos foram atingidos da mesma forma, com as elites a abandonar a cidade ou a poder pagar os preços exorbitantes que se praticavam pela pouca comida existente. Aos guardas nacionais e, posteriormente, às suas esposas, foram atribuídos soldos, mas os idosos, os enfermos e as mulheres solteiras não recebiam nada. André Léo identificou as mulheres solteiras da classe trabalhadora, particularmente as mães, como “as verdadeiras mártires do cerco”. Ainda assim, os parisienses da classe trabalhadora permaneceram comprometidos com a causa de defender a França. Já León Gambetta, ministro do Interior, conseguiu fugir de Paris num balão, alcançando Tours.

Parisienses famintos comeram cavalos, gatos, cães e ratos durante o cerco de Paris. Rue des Archives/©Wha/ Imagens Bridgeman. Fonte: Le Figaro.

​Em 7 de outubro, as mulheres ainda estavam nas ruas. Elas exigiam o direito de trabalhar nas ambulâncias, uma função reservada aos homens, que só lhes seria reconhecido já no âmbito da Comuna.

A 31 de outubro, deu-se uma jornada insurrecional em Paris. Gustave Flourensxv e as suas tropas tomaram a Câmara Municipal, que acabaram por perder antes do final do dia. No dia seguinte, inúmeros insurgentes foram presos, apesar das promessas de que isso não aconteceria.

No início de novembro, também Louise Michel foi presa, depois de participar de uma manifestação de mulheres no Hôtel de Ville para propor diferentes tipos de defesa.

Em janeiro de 1871, o Governo de Defesa Nacional rendeu-se ao inimigo e, de acordo com Paule Minkxvi, militante da AIT de ascendência polonesa, deixou a esquerda parisiense a “tremer de tristeza e raiva”. A 18 desse mês, Guilherme II, rei da Prússia, foi proclamado imperador do II Reich unificado. Já a 21 e 22 de janeiro, deu-se uma tentativa de revolta insurrecional pela Guarda Nacional, fortemente reprimida. Louise Michel, André Léo, Béatrix Excoffonxvii e Sophie Poirierxviii estavam entre as mulheres que se juntaram a este levantamento.

O armistício acabou por ser assinado a 28 de janeiro, permitindo a realização de eleições e a posterior nomeação de Adolphe Thiers como chefe do poder executivo. A recém-eleita Assembleia Nacional era profundamente conservadora e monárquica. Dos 638 deputados eleitos, cerca de 400 eram de tendência monárquica, pouco mais de 200 integravam diferentes famílias republicanas e 30 eram bonapartistas. Mas, ao contrário do que acontecia no resto do país, em Paris uma frente progressista-republicana obteve a maioria dos mandados. Foram eleitos 37 republicanos de um total de 43 deputados, entre eles figuras como Victor Hugo ou Georges Clemenceau.

No final do mês seguinte, membros da Guarda Nacional voltaram a protagonizar protestos, com manifestações na Bastilha, que contaram com a participação de inúmeras mulheres. Foi formada uma Federação da Guarda Nacional, eleitos conselhos de soldados que, por sua vez, elegeram um Comitê Central.

O descontentamento e a frustração da população parisiense tiveram todas as condições para exacerbar-se entre fevereiro e março, com a Assembleia Nacional aprovando uma série de medidas que penalizaram duramente as classes trabalhadoras de Paris. Em causa estava, nomeadamente, o fim do pagamento do soldo aos Guardas Nacionais; a suspensão da proibição de casas de penhores venderem bens que tinham sido depositados durante o cerco; a eliminação da moratória sobre as rendas; e a introdução de medidas que restringiam a liberdade de expressão e reunião, o que incluía a interdição de jornais de esquerda. Um general bonapartista foi nomeado comandante supremo da Guarda Nacional parisiense e os líderes do levantamento de 31 de outubro foram condenados à revelia a pena de morte. Acresce que a Assembleia Nacional foi transferida de Paris para Versalhes, o que foi assumido como um ato de traição contra o povo parisiense.

Confrontado com as manifestações de desagrado da população de Paris, Adolphe Thiers, cujo programa passava pela “paz no exterior – ordem e tranquilidade no interior”xix nada mais fez do que tentar reprimir o povo e restaurar a ordem, sublevando ainda mais os ânimos.

Instalação da Comuna

A 18 de março, o governo de Thiers decidiu apoderar-se dos canhões existentes em Paris e capturar o Comitê Central da Guarda Nacional. O equipamento militar tinha sido concentrado no alto das colinas de Montmartre e de Belleville pela Guarda Nacional, logo após a capitulação assinada pelo governo ter permitido a entrada das tropas prussianas em Paris. Os próprios milicianos atrelaram-se aos canhões para os transportar, face à total ausência de cavalos, que tinham sido comidos durante o cerco. Mulheres e crianças ajudaram nas operações, com as munições a serem passadas de mãos em mãos. Os canhões eram do povo de Paris, na medida em que, em grande maioria, tinham sido comprados durante a guerra mediante subscrição popular. E o povo não estava disposto a abrir mão desse poder.

Exposição La Commune de Paris no Hôtel de Ville de Paris (18 mars – 28 mai 2011) – Os canhões dos parisienses em Montmartre, 18 março 1871 – Foto do Museu Carnavalet. Fonte: Wikimedia.

​Adolphe Thiers pretendia manter o efeito surpresa e tentou certificar-se de que os soldados regulares passavam despercebidos. Mas a notícia da incursão dos versalheses começou a espalhar-se quando as primeiras mulheres da vizinhança deixaram as suas casas para iniciar o seu dia de trabalho. Louise Michel, professora primária, ouviu gritos de dor e, ao aproximar-se para ver do que se tratava, encontrou um miliciano ferido. Estava dado o alarme para a defesa dos canhões.

As mulheres de Montmartre imediatamente usaram os seus corpos para formar uma barreira que impedisse a saída da artilharia. Bem como confraternizaram com os soldados e apelaram ao seu apoio. Estes, quando chamados a disparar contra os elementos da Guarda Nacional, recusaram-se a fazê-lo. Lissagaray e Louise Michel, entre outros, recordam este momento:

“[as mulheres] não esperam pelos seus homens, elas tiveram uma dupla ração de miséria – cercam as metralhadoras, desafiam os comandantes das armas: ‘é indigno o que está fazendo aqui…’ e os soldados ficam em silêncio” (Lissagaray)

“As mulheres lançaram-se sobre os canhões e metralhadoras, os soldados permaneceram imóveis. A Revolução estava feita”. (Louise Michel)

Conforme escreve Edith Thomas no seu livro Les Pétroleuses: “seria um exagero dizer que esse dia revolucionário foi o das mulheres, mas elas contribuíram poderosamente para isso”.

Na sequência deste episódio, os generais Claude Lecomte, que mandou atirar sobre a multidão, e Clément Thomas, o homem da repressão de 1848, reconhecido pela multidão na Rue des Martyrs, foram fuzilados.

Thiers e outros ministros escaparam do palácio presidencial pela porta dos fundos e o Exército evacuou de Paris. O Governo refugiou-se em Versalhes, onde já se encontrava a Assembleia Nacional e, juntamente com o chanceler alemão Otto von Bismarck, anterior inimigo, iniciou os preparativos para a guerra civil.

O Comitê Central da Guarda Nacional, por sua vez, optou por não avançar sobre Versalhes, onde não encontraria grande resistência. A decisão não foi consensual, havendo vozes discordantes na sessão que se realizou no final do dia 18 no Hôtel de Ville. Mas a decisão da maioria foi a de concentrar esforços na organização de eleições para a Comuna de Paris. A partir de 19 de março, a bandeira vermelha passou a estar hasteada na Câmara Municipal.

Em 26 de março foram eleitos noventa e dois representantes do Conselho da Comuna, vinte e um dos quais conservadores, da ala mais à direita, oriundos dos bairros mais abastados. Em abril, quando se tornou mais claro que a reação de Versalhes seria impiedosa, estes elementos renunciaram ao seu mandado e foram substituídos em eleições parciais. Nenhum deles foi alvo de qualquer perseguição pela Comuna. Na realidade, entre 26 de março a 21 de maio, data da entrada das tropas versalhesas em Paris, não foi derramada uma gota de sangue, e a Comuna não instalou qualquer tribunal revolucionário. O Conselho era constituído por artesãos, pequenos comerciantes, operários, intelectuais, na sua grande maioria republicanos e democratas-radicais, que se consideravam herdeiros da Revolução Francesa.

Em setenta e dois dias, a Comuna pôs em prática inúmeras medidas de matriz social, que passaram, por exemplo, pelo congelamento das rendas; devolução gratuita de objetos que, estando nas casas de penhores, tivessem um valor inferior a 20 francos; adiamento dos prazos de pagamentos de dívidas por três anos sem pagamento de juros; suspensão dos desalojamentos por falta de pagamento de rendas; requisição de casas desocupadas para pessoas sem-teto; limitação da jornada de trabalho de 10 para 8 horas no futuro; proibição da prática de multas arbitrárias que tinham como propósito reduzir os salários; introdução de salários mínimos dignos; proibição de acumulação de múltiplos postos de trabalho; imposição de limite máximo de salário para cargos públicos; proibição de trabalho noturno nas padarias; abertura de talhos municipais; medidas de controle dos preços; criação de medidas de apoio social, como a distribuição de alimentos a mulheres e crianças.

O decreto da Comuna de 16 de abril encarregou as Câmaras Sindicais de confiscar as oficinas abandonadas pelos patrões amedrontados e de prever o “pronto reinício de sua exploração (…) pela associação cooperativa dos operários que ali estavam empregados”, restituindo aos trabalhadores os seus meios de produção. A 18 maio, foi constituída a “Comissão de Investigação e Organização do Trabalho”, que integrava mulheres. A incumbência dada aos seus delegados era a de “acabar com a exploração do homem pelo homem, última forma de escravatura. Organizar o trabalho por meio de associações solidárias de capital coletivo e inalienável”.

A Comuna aboliu também a pena de morte, acabou com o serviço militar obrigatório e o exército regular e adotou medidas para materializar a democracia direta, como o controle permanente e a possibilidade de revogação de mandados de representantes eleitos, magistrados e outros cargos públicos, e a separação entre Estado e Igreja.

Foram igualmente adotadas propostas de reforma do sistema educativo que previam a universalidade e gratuitidade do ensino, que seria laico. Milhares de crianças da classe trabalhadora receberam material didático gratuito e entraram pela primeira vez numa escola. Os teatros e museus foram coletivizados e a sua direção entregue à Federação dos Artistas de Paris. Estes espaços mantiveram-se abertos a toda a população de forma gratuita.

O povo de Paris destruiu os símbolos do Antigo Regime. Em 10 de abril, a guilhotina foi queimada na Praça Voltaire por uma multidão encabeçada por mulheres. Em 16 de maio, a Coluna Vendôme, que simbolizava as conquistas napoleônicas, foi demolida. A praça foi rebatizada de Place Internationale. A Comuna adotou o programa de “luxo comunal”, proposto no manifesto da Federação dos Artistas de Paris, escrito por Eugène Pottierxx. Tratava-se de integrar a arte na vida pública, ao invés de tratá-la como uma mercadoria privada de acesso exclusivo pelos ricos.

A Comuna optou por não assumir o controle do Banco de França, onde se encontravam notas, moedas, metais preciosos e títulos financeiros, num valor total que ascendia a cerca de 3 mil milhões de francos. Daí resultou que o governo de Thiers tenha recebido desta instituição financeira vinte vezes mais dinheiro do que a Comuna. Tal opção mereceu a crítica por parte de pessoas como Karl Marx, Friedrich Engels ou Prosper-Olivier Lissagray. Em Histoire de la Commune de 1871, este último é contundente: a liderança da Comuna “permaneceu em êxtase diante da caixa-forte da burguesia que tinha na mão”. E continua afirmando que “a Comuna não viu os verdadeiros reféns que tinha em mãos: o Banco, o cadastro de imóveis e as posses do Estado, os depósitos e consignados, etc”.

Encontro entre Otto Von Bismarck e os delegados franceses Adolphe Thiers e Jules Favre, Versalhes, maio 1871.

Mulheres na Comuna de Paris

As mulheres não elegeram e nem foram eleitas para a Comuna, permanecendo excluídas do direito ao voto. Conforme sublinha Eichner, “do ponto de vista da maioria dos líderes recém-eleitos, era uma regra inquestionável que os homens poderiam e deveriam liderar e levar adiante uma revolução sem mulheres”.

“Os líderes masculinos concentraram os seus esforços no estabelecimento de um corpo governante baseado nas ideias republicanas tradicionais de representação e sufrágio masculino. Eles ignoraram o papel central e político das mulheres em instigar a insurreição apenas alguns dias antes, e desconsideraram o ativismo político e social significativo e visível das mulheres durante os anos finais do Império e o cerco prussiano”, escreve Eichner.

Mas, tal como estiveram na linha da frente nos meses que antecederam a formação da Comuna, as mulheres tiveram uma participação ativa e combatente na Revolução. Por toda a cidade, mulheres revolucionárias “encenaram, inspiraram, teorizaram e lideraram a revolução” (Eichner: 2021).

Club des femmes na Igreja Saint-Germain-l’Auxerrois (Le Monde Illustré 20 maio 1871). Fonte: Associação Les Amies et Amis de la Commune de Paris (1871).

Em toda a Comuna, as mulheres ocuparam lugar no debate geral. Elas encontravam-se em grande número nos clubes políticos e comitês de vigilância que se realizavam em todos os bairros da cidade. As communardes também escreveram e editaram jornais radicais; trabalharam nas ambulâncias; serviram como enfermeiras no campo de batalha; combateram o exército nacional francês invasor até ao último momento.

“A atitude das mulheres durante a Comuna era admirada pelos estrangeiros e exasperava a ferocidade de Versalhes”, aponta Lissagarayxxi.

Louise Michel, por exemplo, foi responsável pelo comitê de vigilância de Montmartre, que incluía também Sophie Poirier (presidente do Club de la Poule-Noire), Béatrix Excoffon (vice-presidente do Club de la Poule-Noire), Anne Jaclardxxii (filha de um general russo) e André Léo. Outros nomes eram conhecidos dos encontros públicos, como o de Blanche Lefebvrexxiii, Marie-Jeanne Lucasxxiv ou Paule Mink. Esta última, que fundou uma escola para mulheres em Montmartre, era a principal agitadora do Club La Victoire em Saint-Sulpice e do Club Saint-Nicolas-des-Champs.

Os clubes funcionavam como uma espécie de base de sustentação do movimento e eram uma expressão da soberania popular. Debatiam que ações a Comuna deveria tomar e divulgavam os seus pontos de vista e prioridades aos representantes eleitos da Comuna. Louise Michel presidia o Club de La Revolution, Ladoïka Kawecka, antiga redatora do Jornal das Cidadãs, presidia o Club de la Délivrance, frequentado por Lemel.

“Nessas assembleias, as mulheres dão o tom. Às vezes elas reúnem-se nos seus próprios clubes. As trabalhadoras intervêm, expõem as suas ideias e as suas reivindicações”, relatam Jean-Pierre Azéma e Michel Winock em Les Communardes.

As mulheres artistas também marcaram presença na Comuna, como é o caso da cantora Rosalie Bordasxxv, ou da atriz Madame Agar, que participou dos concertos organizados em benefício das viúvas e órfãos da Comuna e foi alvo de repressão no rescaldo da Revolução.

União de Mulheres pela Defesa de Paris e pelo Cuidado dos Feridos

Em 11 de abril de 1871, três semanas após o início da Comuna de Paris, surgiu um cartaz nos muros de Paris:

“Cidadãs, sabemos que a ordem social atual traz em si as sementes da pobreza e da morte de toda a liberdade e justiça… Neste momento, quando o perigo é iminente e o inimigo está às portas de Paris, toda a população deve-se unir para proteger a Comuna, que defende a aniquilação de todos os privilégios e de todas as desigualdades”.

Todas as mulheres communardes foram convocadas a comparecer a uma reunião às 20h na Salle Larched, Grand Café des Nations, Rue de Temple, 74. Neste encontro, foi criada a União de Mulheres pela Defesa de Paris e pelo Cuidado dos Feridos (Union des femmes pour la défense de Paris et les soins aux blessés), que se tornou numa das organizações mais importantes da Comuna. No seu manifesto, são bem identificados os seus inimigos:

“Os nossos inimigos são os privilegiados da ordem social atual, todos aqueles que sempre viveram do nosso suor, que sempre engordaram com a nossa miséria… Chega de exploradores, chega de mestres!

É de ressalvar a composição de classe da União de Mulheres pela Defesa de Paris e pelo Cuidado dos Feridos, com a sua direção a ser constituída por uma maioria de operárias. As delegadas de cada arrondissement constituíram-se num Comitê Central de onze membros que, por sua vez, designou uma comissão executiva de sete membros: Nathalie Lemel (encadernadora), Aline Jacquier (bordadeira), Blanche Lefebvre (lavadeira), Marie Leloup (costureira), Aglaé Jarry (encadernadora), Elisabeth Dmitrieffxxvi (filha “ilegítima” de um aristocrata russo, enviada de Karl Marx a Paris) e Thérèse Collin (fabricante de pantufas). Lemel estava encarregado das questões sociais, enquanto Dmitrieff era responsável pela orientação política.

Cartão de entrada para uma reunião da União das Mulheres, maio 1871.

Merece igualmente destaque a nítida vinculação da União de Mulheres à Associação Internacional dos Trabalhadores (1ª Internacional). Entre as principais dirigentes da organização destacavam-se militantes da AIT como Nathalie Lemel, Elisabeth Dmitrieff, Blanche Lefebvre, Adélaïde Valentin, Herminie Cadolle, ou Béatrix Excoffon.

As preocupações dominantes da União passavam pela organização das mulheres, a melhoria das suas condições de vida, a luta contra o desemprego, a luta contra os versalheses, a igualdade salarial, o ensino profissional emancipatório das mulheres. “Não mais exploradores! Não mais patrões!”, “Salário igual para trabalho igual” figuravam entre as suas palavras de ordem.

As reivindicações das mulheres passavam também pela sua ampla participação nos clubes, reuniões de bairro, cargos políticos; pelo fim da distinção entre filhos nascidos fora e dentro do casamento, com a mesma forma e pagamento da pensão; pelo divórcio, o reconhecimento de concubinas e a abolição da prostituição.

A Comuna atendeu a algumas das suas reivindicações: a igualdade salarial entre homens e mulheres; a escolarização das meninas e o acesso à formação profissional – foi, inclusive, aberta a escola de arte industrial para as jovens mulheres; a proibição da prostituição; o reconhecimento do direito ao divórcio e da união livre; a atribuição de pensões às viúvas dos guardas nacionais caídos em combate, casadas ou não, e aos seus filhos, reconhecidos ou não.

O Comitê de Educação da Comuna integrou André Léo, Paule Mink, Louise Michel, Noémi Reclus, Elisabeth Dmitireff ou Anne Jaclard. E a Sociedade para uma Nova Educação, que era composta por três mulheres e três homens, reunia duas vezes por semana professores e pais para discutir o currículo e os métodos usados nas escolas.

Composta por muitas trabalhadoras, a União liderou uma grande luta contra o desemprego, organizando oficinas cooperativas sob a forma de autogestão onde era respeitada a igualdade salarial.

A 17 de maio, poucos dias antes do início da Semana Sangrenta, foi lançada uma convocatória apelando à organização das trabalhadoras e ao envio de delegadas à Federação de Trabalhadoras que estava a ser formada. O texto era assinado pelo ministro do Trabalho Léo Frankel e pelas sete dirigentes da União de Mulheres pela Defesa de Paris e pelo Cuidado dos Feridos, o que é representativo da importância que a organização assumiu.

Defender a revolução de arma na mão

As mulheres também defenderam a Revolução de arma na mão. No dia três de abril, estavam prontas para marchar sobre Versalhes: seiscentas concentravam-se na Place de la Concorde, às quais se juntaram setecentas na Pont de Grenelle.

A saída não chegou a ocorrer, mas, diante de tal determinação, tornou-se claro que a necessidade de organização era indispensável.

Manifestação de mulheres de 3 de abril de 1871. Fonte: Associação Les Amies et Amis de la Commune de Paris (1871)

Durante a Semana Sangrenta, a companhia de Cidadãs Voluntárias lutou ao lado da 12ª Legião, encabeçada pelo coronel comandante Jules Montrels.

No dia 23 de maio, cerca de 120 mulheres, incluindo Lemeel, encontravam-se na barricada de Place Blanche. Blanche Lefebvre, lavadeira da Sainte-Marie des Batignolles, foi uma das 120 mulheres que permaneceu nesta barricada por várias horas até ficarem sem munição e serem invadidas. Com apenas 24 anos, Lefebvre foi fuzilada no local. Aquelas que sobreviveram ao massacre passaram para a barricada de Place Pigalle. Lemel, com 50 mulheres, conduziu esta barricada de bandeira vermelha em punho.

Foram milhares as mulheres lutando nas barricadas. São disso exemplo Louise Michel e Victorine Rouchy (Batalhão dos Turcos), Leóntine Suetens (cantineira do 135º Batalhão, ferida duas vezes), Marguerite Lachaise (cantineira do 66º), Ladoïjka Kawecka, Eulalie Papavoine, Madame David, André Léo, Marguerite Diblanc, Elisabeth Retiffe, Marie Chiffon, Adéle Chignon e Elisabeth Dmitireff.

Biblioteca histórica de Paris, edições Dittmar, Museu Carnavalet.

As mulheres da Comuna que participaram dos combates foram, em grande parte, fuziladas nas próprias barricadas.

Batalhas da Semana Sangrenta de 21 a 28 de maio de 1871 – Gravura colorida anônima, L’Univers illustré (Museu Carnavalet, História de Paris).

No rescaldo da Revolução, 1051 mulheres foram presas, das quais 71% eram trabalhadoras. A justiça foi mais clemente no início, mas as penas que lhes aplicadas foram, em termos proporcionais, mais pesadas: 13% foram condenadas à morte, contra 0,9% homens, 13% foram condenadas a trabalhos forçados, face a 2,3% dos homens, e 13% foram deportadas, contra 11% dos homensxxvii. À dureza da sentença foi acrescentada a infâmia, pois as mulheres eram frequentemente acusadas de roubo ou prostituição, inclusive com os prussianos.

Nathalie Lemel e Louise Michel foram condenadas à deportação em recinto fortificado. Ambas assumiram todas as suas responsabilidades e recusaram qualquer perdão.

“Dizem-me que sou cúmplice da Comuna! Certamente que sim, já que a Comuna queria antes de tudo a revolução social e a revolução social é o meu mais caro desejo. Mais ainda, tive a honra de ser uma das promotoras da Comuna… (…) Já que parece que todo o coração que bate pela liberdade, só tem direito a um pedaço de chumbo, reclamo um desses pedaços! Se não são covardes, matem-me…” Louise Michelxxviii

Apenas algumas communardes, como André Léo, Paule Mink ou Élisabeth Dmitrieff, conseguiram escapar das represálias, mas tiveram que fugir. Foram milhares as mulheres da Comuna anônimas que morreram em combate, foram fuziladas, presas, deportadas, humilhadas, perseguidas, violadas.

A prisão de Chantiers, 15 de agosto de 1871. Fotomontagem de E. Appert. Louise Michel está à direita, em pé, braços cruzados. Fonte: Associação Les Amies et Amis de la Commune de Paris (1871)

Esta atitude ferozmente persecutória deveu-se ao fato de serem “mais monstruosas porque, sendo mulheres, transgrediam tudo”xxix.

Tal como sublinhava Lissagaray, os jornais de Versalhes prontificaram-se a propalar o mito, que custou a vida a “centenas de infelizes”: foram as mulheres que incendiaram os monumentos da capital – eram as “Les pétroleuses”. O Le Figaro escrevia sobre uma mulher que tinha incendiado vários prédios. Como prová-lo? A sua caixa de leite ainda estava cheia de petróleo. O The Times publicou que as mulheres se esqueceram do “seu sexo e da sua gentileza para cometer assassinatos, para envenenar soldados, para queimar e matar”.

As oito mil “pétroleuses” que se anunciava terem sido alistadas, divididas em esquadrões correspondentes a cada distrito, foram reduzidas a cinco mulheres levadas a julgamento: Élisabeth Rétiffe, cartonadora, 39 anos, Léontine Suétens, lavadeira, 26 anos, Joséphine Marchais, jornaleira, 32 anos, Eulalie Papavoine, costureira, 24 anos, Lucile Bocquin, jornaleira, 28 anos.

Litografia vintage de um cartonista leal (1871), Museu de Arte e História de Saint-Denis. Fonte: Associação Les Amies et Amis de la Commune de Paris (1871).

Durante os seus julgamentos, as communardes foram questionadas sobre a sua participação na revolução, o seu envolvimento político e militar, mas também sobre os seus valores morais, sobre a sua vida familiar, a sua sexualidade.

Julgamento das “pétroleuses” no 4º Conselho de Guerra. Fonte: Associação Les Amies et Amis de la Commune de Paris (1871)

As mulheres no seio da Comuna refletiam a diversidade ideológica, de formação política, de origem social, que caracterizava o movimento. As diferentes protagonistas deste momento único na história da humanidade entraram em ação de formas diferentes, evoluíram durante este processo de forma distinta e seguiram caminhos, por vezes, divergentes. Em comum, unia-as a entrega incondicional à defesa de uma Revolução que se pretendia resultar no fim de um sistema opressivo e das hierarquias de gênero, classe e religião. Neste sentido, o objetivo principal das communardes durante este “assalto ao céu”xxx foi salvar a Revolução enquanto se lançavam as sementes de uma sociedade igualitária.


i Jaroslaw Dombrowski (1836-1871): democrata revolucionário polaco, participante no movimento de libertação nacional da Polónia nos anos 60 do século XIX; general da Comuna de Paris, comandante-supremo de todas as suas tropas desde maio de 1871; morto nas barricadas.

ii Leó Frankel (1844-1896) húngaro da Associação Internacional dos Trabalhadores eleito para o conselho da Comuna e que mas serviu como seu “ministro” do Trabalho.

iii Eichner (2004)

iv O Código Civil francês, que seria consagrado como o Código Napoleónico, entrou em vigor a 21 de março de 1804.

v A última obra de Proudhon tinha o título: Pornocracia: as mulheres nos tempos modernos

vi Nascida em Brest em 24 de agosto de 1826, Nathalie Lemel chegou a Paris no início da década de 1860. Representante sindical, participou de greves dos encadernadores e na criação do restaurante cooperativo La Marmite. Na época da Comuna de 1871, foi uma das cofundadoras da União de Mulheres para a Defesa de Paris, juntamente com Elisabeth Dmitrieff.

viiVictorine Brocher (1839-1921), nascida Victorine Marie Malenfant, foi criada numa família republicana. Quando criança, testemunhou a revolução de 1848 e os massacres que se seguiram em junho. O seu pai exilou-se na Bélgica após o golpe de estado de 2 de dezembro de 1851. Era costureira. Foi um dos primeiros membros franceses da Internacional. Fundou, em 1867, a padaria cooperativa em La Chapelle. Foi cantineira do 17º batalhão durante o primeiro cerco de Paris. Perdeu dois filhos, um dos quais a 13 de março de 1871. Foi, durante a Comuna, cantineira dos “Defensores da República”. Participou, até ao último momento, na defesa da Comuna. Foi “julgada” e condenada à morte, em 25 de maio, por uma “corte marcial” do sétimo arrondissement por um incêndio num lugar onde ela não se encontrava. Foi dada como morta no meio de um grande número de tiroteios. Conseguiu viver escondida em Paris até outubro de 1872, quando se mudou para a Suíça.

viii Em 1873, o “sociólogo” Leroy Beaulieu publicou os resultados de uma investigação iniciada antes da Comuna sobre o trabalho das mulheres. No documento, Beaulieu lista as patologias femininas que são agravadas ou mesmo causadas por suas condições de trabalho, e que vão desde abortos espontâneos a intoxicações, entre várias outras.

ix O Segundo Império francês foi implantado por Napoleão III de 1852 a 1870, entre os períodos históricos da Segunda República e da Terceira República.

x Louis-Jules Trochu serviu na Argélia, Crimeia e Itália e obteve o posto de general em 1866. O seu livro O Exército Francês em 1867, no qual denunciava a desorganização do exército imperial, levou à sua desgraça. No entanto, a popularidade que adquiriu fez com que fosse nomeado governador de Paris em 17 de agosto de 1870, durante a guerra Franco-Prussiana.

xi Victoire Léodile Béra (1824-1900) adotou o nome de André Léo, os nomes de seus dois filhos gémeos. André Léo ficou conhecida pelos romances – centrados no tema da desigualdade entre homens e mulheres, ensaios e, principalmente, o seu trabalho empenhado como jornalista na cobertura da Comuna de Paris. Era redatora do La Sociale. Léo foi a principal organizadora da Sociedade para a Reivindicação dos Direitos das Mulheres (1866). Nea participaram nomes como Maria Deraismes, Louise Michel, Paule Mink, Noémie e Élie Réclus, Maria Verdure, Eliska Vincent, Louise David e Jules Simon. Face à variedade de pontos de vista representados, a sociedade optou por priorizar a educação das mulheres na mesma condição da dos homens, por forma a acelerar o reconhecimento legal de direitos iguais para as mulheres. No final da década de 1860, a casa de Léo era um ponto de encontro de radicais e feministas da Europa e da América do Norte.

xii Louise Michel (1830-1905), filha ilegítima de uma criada e do filho do patrão, chegou a Paris com 26 anos, como professora estagiária. Dedicou grande parte da sua vida à luta pela igualdade na educação. Foi expulsa do ensino público por recusar o juramento de fidelidade a Napoleão III. Em 1869, tornou-se secretária da Liga Democrática de Moralização, destinada a ajudar as operárias de Paris. Foi eleita presidente do Comité de Vigilância Cidadã do 18º Bairro. Presidiu o Club de La Revolution. Foi soldado no 61º regimento de Montmartre. Julgada em Conselho de Guerra, foi deportada em regime de recinto fechado fortificado para Nova Caledónia. Louise Michel abandona o blanquismo para se unir aos anarquistas durante a Comuna de Paris e defende a necessidade de uma ofensiva a Versalhes. Louise, juntamente, com outros anarquistas dispõe-se a ir até Versalhes e assassinar Thiers.

xiii Chanceler do Reich alemão desde 1871 até 1890. Unificou os Estados separados alemães num só império alemão sob a égide da Prússia.

xiv Jules Favre (1809-1830) foi advogado e político francês, um dos dirigentes dos republicanos burgueses moderados; ministro dos Negócios Estrangeiros (1870-1871), manteve negociações acerca da capitulação de Paris e da paz com a Alemanha.

xv Gustave Flourens (1838-1871) foi um revolucionário blanquista, um dos dirigentes das insurreições de 31 de outubro de 1870 e de 22 de janeiro de 1871 em Paris; membro da Comuna de Paris, foi assassinado pelos versalheses em abril de abril de 1871.

xvi Paule Mink (1839–1901) era uma revolucionária socialista francesa filha de um nobre da Polónia exilado. Quando o seu casamento acabou, ela passou a trabalhar como costureira e professora de línguas. Foi editora de um jornal radical e construiu a sua reputação como oradora nos círculos radicais de Paris. Era uma incansável agitadora.

xvii Béatrix Excoffon (1849-1916), nascida Julia Euvrie ou Œuvrie, foi uma communarde que serviu como enfermeira de ambulância durante a Comuna de Paris. Foi vice-presidente do Club des Femmes de la Boule Noire e era conhecida como “a republicana”.

xviii Sophie Poirier (1830–1875) foi uma costureira francesa que criou uma cooperativa de costureiras com participação nos lucros durante o cerco de Paris em 1870. Esta organização fechou antes da ascensão da Comuna. Presidiu o Comité de Vigilância de Montmartre durante esse período, onde trabalhou com Louise Michel. Poirier também fundou o clube político feminino Boule Noire, que votou pela prisão do arcebispo Georges Darboy e pela destruição da Coluna Vendôme. Após a queda da Comuna, Poirier foi deportada para uma colónia penal. Morreu sob custódia em Rouen em 1875.

xix Haffner (2019)

xx Frase cunhada por Eugène Pottier, poeta, desenhador, operário e militante socialista francês, o Conselho da Comuna de Paris, que escreveu a “Internacional”, em junho de 1871, para comemorar a Comuna.

xxi Lissagaray (1970)

xxiiAnne Jaclard, nasceu Anna Vasilyevna Korvin-Krukovskaya (1843-1887), foi uma socialista e feminista revolucionária russa. Participou da Comuna de Paris e integrou a Primeira Internacional. Foi amiga de Karl Marx.

xxiii Blanche Lefebvre era lavadeira na lavandaria Sainte-Marie des Batignolles. Durante a Comuna de Paris, foi membro do Club de la Révolution Sociale, do qual o seu marido era secretário. Também pertenceu ao comité executivo da União das Mulheres para a Defesa de Paris e o Cuidado dos Feridos. Era conhecida por sempre usar uma faixa vermelha e carregar um revólver.

xxiv Marie-Jeanne Lucas, nascida Marie-Jeanne Bouquet. Durante a Comuna de Paris, frequentou o clube Saint-Nicolas-des-Champs. As autoridades versalhesas acusaram-na de ser uma “prostituta” que, um ano após o casamento, vivia em concubinato “às vezes com um, às vezes com o outro”. Foi condenada, em 29 de abril de 1872, pelo 26º conselho de guerra, a vinte anos de trabalhos forçados, e morreu na prisão de Auberive em 16 de março de 1876.

xxv Rosalie Bordas cantou no Concerto de Paris e, em 1870, durante o cerco, cantou “La Marseillaise” e agitou uma bandeira tricolor no palco. Foi uma mulher comprometida com a Comuna, cantando canções revolucionárias, envolta numa bandeira vermelha, a fim de arrecadar fundos para os feridos.

xxvi Filha ilegítima de um oficial czarista, Elisabeth Dmitrieff nasceu a 1 de novembro de 1851 em Volok, na província de Pskow. Desde muito jovem integrou círculos socialistas em São Petersburgo. Em 1868, emigrou para a Suíça, onde participou da criação da Seção Russa da AIT. Delegada em Londres, torna-se próxima de Karl Marx, que a envia para Paris em março de 1871, como representante do Conselho Geral da AIT. Com Nathalie Lemel, funda a União de Mulheres pela defesa de Paris e cuidado dos feridos. Participou ativamente nas barricadas do Faubourg Saint-Antoine.

xxvii Dados retirados da entrevista de Yohann Emmanuel a Mathilde Larrère publicada pela revista L’Anticapitaliste (link is external) n°122 em janeiro de 2020.

xxviii Em anexo às “Mémoires”, é transcrito o processo tal como foi publicado na Gazette des Tribunaux

xxix idem

xxx Lançaram-se ao “assalto ao céu”, foi a imagem encontrada por Marx ao referir-se a esse feito audacioso nascido, segundo expressão de Engels, da Internacional.

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