Cidades: a produção do espaço a partir do futebol

Processos de arenização dos estádios capturam memórias e cultura popular em nome da cidade-mercadoria. Uma poderosa aliança entre o financismo, as construtoras e imobiliárias coloca em marcha uma produção espetacular do espaço

Imagem: Fernandes Arquitetos Associados/Archdaily
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Por Rodrigo Accioli, na Carta Capital

Quando Henri Lefebvre escreveu O Direito à Cidade em 1968, os grandes estádios mundo afora tinham como grande finalidade comportar públicos entre 60 e 150 mil torcedores, sendo muitos destes equipamentos públicos com duas finalidades específicas: a expectação nas arquibancadas e a prática esportiva no campo de jogo. Os clubes de futebol, divididos entre a forma jurídica de associações sem fins lucrativos ou propriedade privada de caráter limitado, restringiam suas funções ao convívio social e à prática esportiva. Passados mais de 50 anos, os estádios de futebol tornaram-se arenas multiúso, cuja principal característica é possibilitar uma série de investimentos com retornos a curto e longo prazo, e os clubes de futebol foram reestruturados de forma a possibilitarem novas atividades financeiras.

A obra de Lefebvre é fulcral para elucidar como o espaço urbano é produzido socialmente, contrapondo-se à ideia do espaço ser apenas um receptáculo da vida sem qualquer relação com questões políticas, econômicas e culturais. Na atualidade, não é novidade alguma que o mercado imobiliário tem centralidade na vida econômica mundial, visto que a crise econômica de 2008 surge nesta seara com efeitos devastadores nas economias ocidentais. O processo de centralidade do mercado imobiliário no modo de produção já é sensível ao filósofo francês, que pontua a crise urbana como momento atual da cidade dominada pelos anseios do mercado financeiro e a anuência do Estado, cujas áreas e vias são pensadas na rápida circulação de pessoas e mercadorias de modo a acelerar a produção, tendo como produto monumentos e construções obedientes às lógicas mercadológicas. 

Os antigos estádios nos apresentam uma lógica ainda não capturada pela crise do urbano: as calçadas, ruas e mesmo a estrutura interna era local de encontro, de convívio social por meio das relações criadas por torcedores de um clube. Após as reformas thatcheristas, logo espalhadas por todo o continente europeu, o espaço do estádio foi reduzido ao espaço do consumo e do controle das gestualidades e possibilidades dos corpos dentro de um espaço reduzido por cadeiras, vigiado por câmeras e com um preço de entrada inacessível às camadas mais pobres da população. Como o futebol não tem seus processos extrínsecos à sociedade, era imaginável que a partir dos anos 1990 empresas do ramo imobiliário começassem a ver com bons olhos a necessidade de adequação e construção de novos estádios, afinal trata-se de um equipamento com uso contínuo na casa das dezenas de milhares de pessoas. No contexto das operações urbanas e da gentrificação nas grandes cidades mundiais, era de se esperar que os estádios funcionassem em um híbrido de shopping center, estacionamento privado, espaço de eventos privados, cinema e, principalmente, como ferramenta de intervenção urbana com a construção de estádios em áreas de interesse do setor imobiliário. 

Dessa forma, estádios históricos como Highbury, Maine Road, Upton Park na Inglaterra, o estádio do Sarriá na Espanha, Olimpiakstadion de Munique se tornaram exemplos dessa substituição de antigas estruturas por outras novas. Memórias afetivas individuais e coletivas, lugares considerados “templos” para gerações de torcedores e com toda uma topofilia, uma criação de identidade e relações sentimentais, viram escombros de concreto enquanto surgem as grandes arenas com suas praças de alimentação, espaços corporativos e conjunto de lojas. Não que os torcedores não sejam capazes de criar novas memórias e afetividades, porém a finalidade das arenas é da racionalidade econômica e não das subjetividades do torcer. 

A nova realidade do futebol

Para além do estádio em si, é necessário observar a transformação dos clubes de futebol em grandes empresas e conglomerados. Desde o Manchester United até hoje, houve uma reorganização jurídica dos clubes do futebol em partes da Europa e da América Latina. Com o intuito de combater o aumento das dívidas dos clubes, as câmaras legislativas de Espanha, Portugal, Chile, Colômbia e Brasil, criou-se uma forma jurídica inexistente até então nesses países: a sociedade anônima desportiva (aqui chamada de sociedade anônima do futebol). Isso possibilitou a grupos empresariais e investidores multimilionários a compra de clubes de futebol, tendo exemplos por todo o planeta como o Atlético Nacional e a Postobón na Colômbia, o Paris Saint Germain e o sheik do Catar Nasser Al Khelaifi e o Manchester City do City Group. Como futebol é uma atividade esportiva, a necessidade de obter rendimento desportivo justifica e torna palatável aos torcedores a venda dos clubes de futebol em busca de um grande investidor. Aliás, uma reportagem do jornal Lance de 4 de março de 2016 aponta que pelo menos 9 clubes da primeira divisão chinesa têm relações com o mercado imobiliário local, caso de Guangzhou Evergrande, Changchun Yatai, Hebei China Fortuna, entre outros. 

Os conglomerados esportivos são parte desse novo modelo de negócio: desde a proibição da FIFA da prática de repartir o passe esportivo de um jogador em diversos investidores interessados com ganhos financeiros em uma troca futura, grandes corporações têm preferido a compra total de clubes de futebol em diversas ligas do mundo. A Red Bull, conhecida no Brasil por ser dona do Red Bull Bragantino, também é dona do RasenBall Leipzig da Alemanha e dos homônimos ao clube do interior paulista em Indaiatuba, Nova Iorque e Salzburg (Áustria). 

Com toda a diversificação nas atividades fins de clubes de futebol, não surpreende o City Group criar uma empresa do ramo imobiliário chamada “Manchester Life” atuando no setor de construção e aluguel de imóveis na cidade-sede. Isso aponta que os investimentos do príncipe dos Emirados Árabes Unidos Mansour Bin Zayed Al Nahyan estão para além do futebol, o que nos faz pensar que o clube de futebol torna palatável também as operações urbanas que uma empresa possa fazer, pois mobiliza os sentimentos dos torcedores da agremiação. Segundo o site da Manchester Life, há 3 grandes investimentos atuais (Murray Mills, One Vesta Street e New Little Mill) dentro dos objetivos de “melhorias” nas 200 milhas ao redor do Etihad Stadium do Manchester City. Assim, depois da construção do Etihad Stadium a região ao redor tornou-se alvo de operações urbanas realizadas pelo próprio City Group. 

O exemplo do City Group é um ponto extremo dentro de uma tendência observada na especulação imobiliária através da construção de estádios da Copa do Mundo. Segundo dados do Creci de São Paulo em 2014, o metro quadrado no bairro de Itaquera, onde foi construída a Arena Corinthians, cresceu de 2.899 reais em 2011 para 4.251 reais em 2014, sendo que no mês de abertura da Copa do Mundo, junho de 2014, o valor já estava em 3.726 reais. Aliás, a Copa do Mundo de 2014 no Brasil foi o ápice em termos de desapropriações, construção de infraestrutura urbana e valorização de entornos para a construção de estádios. 

A produção espetacular do espaço

Segundo a tese de doutorado em Geografia intitulada “A produção espetacular do espaço: as cidades como cenário na Copa do Mundo de 2014”, de Glauco Roberto Gonçalves, dos 12 estádios construídos para o torneio apenas quatro tiveram menos de 50% do valor financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) e apenas o Estádio Nacional Mané Garrincha em Brasília não contou com empréstimos feitos com o banco público. Segundo Glauco Gonçalves, além dos empréstimos no BNDES, que chegavam acima de 75% do valor total da obra em 4 casos (Manaus, Cuiabá, Natal e Porto Alegre), havia também facilitações a outras formas de crédito endossadas pelo Estado visando a melhoria das estruturas do estádios e de seus entornos. Essas melhorias nos entornos causou a perda do local de moradia por 250 mil pessoas, segundo os Comitês Populares da Copa nas cidades-sedes sendo que a cidade com mais desapropriações foi Porto Alegre com praticamente 30% desse número, seguida por Fortaleza (19,4%), Rio de Janeiro (18,9%) e Recife (14,2%). Isso mostra um uso corporativo do Estado durante a Copa do Mundo tanto para a construção quanto para a especulação imobiliária, restando à população do entorno a expulsão de seu local de residência concomitante  ao aumento do valor dos terrenos e ao aumento do preço médio dos aluguéis. 

A Copa do Mundo resultou em 12 estruturas ao redor das arenas construídas para o evento, porém engana-se quem acredita que estas foram o único legado que o evento nos deixou. Para além de toda a polêmica envolvendo o torneio, as jogadas e o 7×1, a iniciativa privada brasileira passou a copiar o modelo de construção dos estádios expandindo-os para outros cantos do país. Na leva atual de estruturas, temos como exemplos a Arena MRV, em Belo Horizonte, as tratativas e projetos de construção de estádios para Flamengo e Vasco da Gama no Rio de Janeiro e ao Cruzeiro em Betim, região metropolitana de Belo Horizonte. Um ponto crucial dessa nova fase é a expansão da arenização ao interior paulista: Santos e Ponte Preta estão na fase de projeto e o Botafogo já faz uso da Arena Eurobike em Ribeirão Preto. 

O modelo das arenas contempla uma série de atores econômicos: o setor financeiro responsável pela capitalização e a geração de investimentos na obra, as empresas construtoras que normalmente abatem parte do valor devido pelos clubes a partir de outras propriedades ou dos direitos de administração da estrutura, as empresas promotoras de eventos que se utilizam desses espaços para realização de grandes shows (a banda inglesa Iron Maiden se apresentará pela primeira vez em Ribeirão Preto na estrutura erguida sobre o antigo Estádio Santa Cruz), as redes de restaurantes e lojas que alugam lojas nas novas arenas. 

Assim, esse modelo parece um sucesso absoluto com rentabilidade garantida a credores, administradores e ao clube de futebol envolvido. Porém, nesse modelo perfeito não estão observadas todas as desapropriações causadas pelas obras (por alargamento da estrutura, construção de novas vias públicas, etc.), a exclusão social causada pelo encarecimento dos ingressos (segundo a Pluri Consultoria, o Brasil tem proporcionalmente os ingressos de futebol mais caros do planeta), o autoritarismo das forças de segurança e a cada vez menor participação dos cidadãos sobre o destino de equipamentos públicos. 

Caso ainda estivesse vivo, Henri Lefebvre teria muitos elementos novos para pensar na produção do espaço a partir do futebol. No entanto, sua obra pode servir de inspiração para denunciarmos a captura pelo neoliberalismo desse elemento tão central da cultura popular brasileira, o futebol, e pensar o quanto nós, enquanto torcedores e cidadãos, estamos presos a um sistema econômico que visa a eliminação dos espaços de vivência e memória em substituição de espaços voltados inteiramente ao consumo. A Lefebvre, o devir de uma nova sociedade viria das contradições do meio urbano, então nos resta aproveitar essas contradições para que as arquibancadas sejam tão criativas e políticas quanto os movimentos das ruas.

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