Caetano Veloso, 80: O avesso do avesso do avesso

Na celebração da efeméride, jornalista lança biografia destacando aspectos polêmicos da trajetória do compositor baiano. Leia com exclusividade trecho sobre o início de sua relação, afetuosa e complexa, com o “rival”, Chico Buarque

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No aniversário de 80 anos de Caetano Veloso, o jornalista Tom Cardoso lança o livro Outras Palavras: Seis vezes Caetano (Editora Record), resgatando centenas de histórias envolvendo este que é um dos maiores artistas-intelectuais da história da música popular brasileira. O livro se organiza em torno de seis miradas sobre o compositor baiano, e destacando aspectos polêmicos de sua trajetória. 

A seguir, leia um trecho selecionado do capítulo “O polêmico”, gentilmente cedido pelo autor. Nesta passagem, Tom Cardoso traz à tona causos (alguns deles pouco conhecidos) sobre a relação, afetuosa e complexa, que Caetano cultivou com Chico Buarque. 

Nos anos 1960, Paulinho Machado de Carvalho, diretor artístico da TV Record, esfregaria as mãos se por acaso Chico e Caetano, duas das principais estrelas dos programas de auditório e dos festivais, se agredissem mutuamente, afinados com o clima de hostilidade cultivado pelos respectivos fãs. As rivalidades eram muito bem-vindas, principalmente se envolvessem artistas contratados de uma mesma emissora. 

Caetano e Chico tinham ambições estéticas distintas, mas não existia um abismo entre eles. Nem teria como ser assim — ambos foram estimulados para a música por amor à bossa nova de João Gilberto e Tom Jobim. E, em determinado período, antes que fossem acirradas paixões e deflagrados movimentos, os dois pertenceram à mesma turma de amigos. 

Um trio inseparável se formou quando o compositor baiano, contratado pela Record, viajava semanalmente a São Paulo para participar dos programas de auditório da emissora. No final da noite, Chico, Toquinho e Caetano com frequência eram vistos juntos no Patachou, restaurante francês da rua Augusta. O primeiro, nascido no Rio, mas criado em São Paulo, fez Caetano mudar a sua percepção da cidade, que lhe causara profundo estranhamento ao conhecê-la anteriormente, quando Maria Bethânia se apresentou no Teatro Oficina com o show Opinião. “As noitadas com Chico e Toquinho eram deliciosas, e com isso São Paulo deixou de ser o lugar detestável da minha primeira experiência.”

“Ele tinha mania de subir em árvore”, comentou Chico, sobre a facilidade do santo-amarense em romper os galhos de ipês e pitangueiras. Trepado numa delas, Caetano se esforçava para espiar o que o anfitrião, sem a mesma habilidade, não podia ver: os belos contornos de Eleonora Mendes Caldeira. “Ganhei dele [Chico] uma serenata histórica [e a canção ‘Morena dos olhos d’água’]: ele cantava, Toquinho tocava violão e o Caetano, dependurado em cima de uma árvore, tentava ver dentro do meu quarto, de onde minha mãe não me deixava sair”, confidenciou a socialite. 

Em São Paulo, Caetano se deparou com um Chico muito diferente da imagem projetada publicamente, o tímido crônico, com fobia de palco e das câmeras, que ao estrelar um efêmero programa na TV Record, ao lado da igualmente encabulada Nara Leão, foi chamado pelo diretor Manoel Carlos de “desanimador de auditório”. Na intimidade, ninguém mais divertido — e desvairado. “Ele não batia bem. Passava o dia desenhando mapas de um país imaginário, que chamava de ‘Terezá’, algo assim, onde só era possível se comunicar por cantos”, lembra Toquinho. 

Caetano ficou com fama de doido por culpa do verdadeiro maluco. Chico espalhou que o cantor baiano enlouquecera a ponto de ser internado num sanatório. Toquinho acreditou na história, mesmo conhecendo a fama do amigo. “Ele me disse, fazendo cara de choro, que ao ver o irmão internado, todo amarrado, Bethânia começou a gritar ‘Sai, carcará! Sai, carcará!’. Chico contava essas histórias com tamanha convicção e seriedade que a gente, mesmo sabendo do que ele era capaz, acabava caindo.”

A história se espalhou rapidamente por São Paulo. Caetano logo percebeu que havia algo de estranho; os amigos o observavam de forma diferente, num misto de pena e curiosidade. “Encontrei diversas pessoas que se surpreendiam ao me ver, me olhavam demoradamente, prestavam demasiada atenção no que eu dizia. Muitos perguntavam: ‘Você está bem?’”

Os ventos mudaram. As conversas no Patachou se tornaram mais sérias, na esteira das transformações da época, mais precisamente no desabrochar tropicalista. Quando se criou, de fato, um começo de animosidade entre tropicalistas e os chamados “tradicionalistas”, como se autodenominavam os músicos ligados a Edu Lobo, Francis Hime e Dorival Caymmi, Chico não ficou do lado dos baianos — mesmo achando risível e tola aquela história de “preservar a integridade da música brasileira”. Ele tinha sido um dos poucos de sua turma a não endossar a passeata contra a guitarra elétrica, em 1967. 

Chico fazia sambas; não cantava acompanhado de guitarra, baixo e bateria, mas isso jamais o transformou num purista. “Eu nunca quis ser tradicional e nunca pretendi ser (…). Criaram uma imagem minha que foi muito ruim pra mim, me chateou pessoalmente. Não sei quem foi que resolveu fazer isso. Não sei de que forma eles [tropicalistas] contribuíram para isso. A partir daí eu perdi um pouco o contato.”

Os tradicionalistas não conseguiram banir o uso da guitarra, o instrumento que simbolizava “a nociva ingerência” do rock’n’roll na cultura de massa. Mas convenceram a direção da TV Record a barrar os tropicalistas na Bienal do Samba, o primeiro festival só com composições do gênero, criado pela emissora paulista, em 1968. 

Chico defendeu um samba de sua autoria, “Bom tempo”, acompanhado de Toquinho ao violão. Nas eliminatórias, parte da plateia o vaiou. Alguns jornais noticiaram que a vaia tinha sido puxada por Gilberto Gil. Entrevistado após a apresentação, Chico não citou Gil, mas deu a entender que ficara surpreso, não com a vaia, quase uma instituição dos festivais, mas com o autor dela, uma pessoa de quem era próximo. “Um sujeito trata a gente bem e depois você o descobre chefiando uma vaia na plateia. Não adianta citar nomes. Todo mundo viu.”

A história da suposta vaia puxada por Gil contra Chico havia sido citada no livro 1968: o ano que não terminou, lançado em 1989 pelo jornalista Zuenir Ventura. Na época, Chico e Gil não comentaram a citação, mas Caetano se manifestou. “Gil jamais faria algo assim, porque é um homem digno, muito maior que essa mesquinharia. Eu disse a Zuenir, e ele não pôs no livro o meu desmentido, como deveria pôr.” O jornalista retrucou: “Não reconheço em Caetano competência específica para julgar o que é jornalisticamente certo ou errado.”

Em entrevista ao jornal O Globo, em 1997, Gil negou ter vaiado Chico — ele tinha se levantado justamente para protestar contra o protesto. E gritado: “Chico, você é lindo!” “Sandra [sua mulher na época] estava ao meu lado e é testemunha”, disse. Gil não tratou mais do assunto. Chico também. A amizade entre os dois, essa pra toda a vida, ficou acima de qualquer picuinha. As obras-primas que fizeram juntos falam por si. Mas em 1968, ano marcado por apaixonados embates políticos e comportamentais, qualquer tipo de rusga era suficiente para criar uma grande celeuma. 

E quando o Tropicalismo apareceu, questionando tudo e todos, Chico sentiu o baque, mas não pelas mesmas razões de Edu Lobo, que se considerava traído pela guinada estética de Caetano e Gil. Chico, discreto, não se colocou abertamente contra movimento musical algum, mas, por sua projeção artística, acabou rotulado pela imprensa como defensor das tradições da música brasileira. 

Chico revelou desconforto: “De repente apareceu todo esse movimento de tropicalismo que me assustou um pouco, porque veio um pouco em cima de mim, a imprensa toda me pegou pra bode expiatório.” Não só a imprensa. No programa de Hebe Camargo, perguntado sobre o que achava de Chico Buarque, o tropicalista Tom Zé, embora oito anos mais velho, debochou: “Gosto muito do Chico; afinal, ele é nosso avô.” 

Era uma alusão ao fato de Chico representar, mesmo a contragosto, uma MPB ultrapassada. Se ele era o avô, símbolo do que já estava ficando para trás, os netos eram os tropicalistas, estes sim na vanguarda. Chico devolveu a provocação, escrevendo um longo texto na coluna “Roda viva”, assinada por Nelson Motta no jornal Última Hora, que terminava assim: “Nem toda loucura é genial, como nem toda lucidez é velha.”

(…)

Em suas memórias, Caetano admite que “a glória indiscutível de Chico nos anos 1960 era um empecilho à afirmação do nosso projeto”. Para marcar uma posição “de independência em relação à hegemonia do estilo buarquiano”, os tropicalistas achavam necessário criticar o culto unânime a Chico – daí as referências e paródias a canções dele nas músicas “Alegria, alegria”, “Tropicália” e “Geleia geral”. 

(…)

No exílio em Londres, se Gil ouvia Celly Campello para não cair na fossa, Caetano ouvia Chico sem parar: “Eu cantava ‘Apesar de você’, do Chico, como se fosse um grito de guerra. Chorava e cantava, sendo consolado por Dedé, como se fosse uma oração, com ódio e uma enorme vontade de me vingar daquela gente que conduzia a ditadura no Brasil e que me prendeu.”

Na volta de Caetano e Chico ao Brasil, a imprensa, sobretudo O Pasquim, já guerreando contra o baiano, tentou alimentar ainda mais a rixa, até que um amigo de Chico, Roni Berbert de Castro, resolveu acabar com aquela bobagem e organizar um encontro entre os dois artistas. 

Onde comprar o livro

O livro pode ser adquirido diretamente do autor através de sua página no Instagram: @tom_cardoso_10 ou nas melhores livrarias.

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