Sobre pedaladas e transformação social

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Um dos criadores do movimento mundial que está relançando o ciclismo sustenta: reagir à civilização do automóvel permite enfrentar tanto o capital quanto o culto ao sacrifício

Por Daiane de David e Luiz Eduardo Kochhann, do Jornal da Universidade / UFRGS

Em 1992, um grupo de jovens de San Francisco (EUA), iniciou um movimento que hoje é parte da paisagem social e política de 300 cidades, ao redor do mundo. Eles começaram a percorrer a cidade pedalando em grupo e associando esta atitude à crítica social.

Queriam chamar atenção para a colonização das cidades — o grande ambiente contemporâneo de socialização humana — por um símbolo do capital, o automóvel. Também desejavam mostrar que, do ponto de vista prático, não havia dificuldades para superar o colonizador. Em quase todas as metrópoles do mundo, as distâncias podem ser vencidas mais rapidamente de bicicleta que no tráfego congestionado. Não se perde o contato humano, nem a relação com a natureza. Os ciclistas não se reduzem a condutores impessoais, identificados apenas (e segregados…) pela marca e modelo de seu carro.

O movimento era multicultural. Assumiu o nome de Massa Crítica, numa referência ao curioso sistema que então regulava, nas cidades chinesas, o trânsito, nos cruzamentos sem sinalização. Os ciclistas de uma das transversais aguardavam o fluxo da outra, até que fossem suficientemente numerosos para “mudar o sinal”. Então, avançavam espontaneamente, interrompendo os que antes passavam. A alternância se auto-regulava de forma democrática e não-autoritária. O movimento de San Francisco adotou o conceito, por ver a transformação social como algo que pode ser produzido horizontalmente, a partir da adesão a ideias contra-hegemônicas. Em duas décadas, espalhou-se pelo mundo (veja os links, ao final deste verbete da Wikipedia).

Um dos precursores do movimento Massa Crítica, o norte-americano Chris Carlsson (ver site) é escritor, historiador da contracultura e ativista do espaço público. É autor de livros como Nowtopia (A Utopia do Agora – tradução livre), sobre pessoas comprometidas com políticas alternativas de trabalho que vão além da lógica de mercado e que levam uma forma mais artística de pensar para seus projetos. Em entrevista ao JU, Carlsson contou que o movimento, iniciado em 1992, em São Francisco, nos Estados Unidos, é resultado de encontros e discussões entre um grupo de amigos que tentava imaginar uma maneira de ligar ciclismo e política. Ele está organizando um livro e promovendo um encontro entre ciclistas de diversos países em comemoração aos vinte anos do Massa Crítica. Esteve no Brasil recentemente, participando do Fórum Mundial da Bicicleta, em Porto Alegre (23 a 26/2) , e de um debate promovido pelo Ciclocidade (29/2), em São Paulo. Eis o que ele diz.

Conte sobre o livro e o encontro em comemoração aos vinte anos do Massa Crítica.

Estamos solicitando textos ensaísticos de vários cantos do mundo. O Massa Crítica vem acontecendo há duas décadas em San Francisco; há menos em outros lugares, mas cada local tem a sua história particular. Nessa singularidade, há sagas em comum que unem experiências ao redor do planeta. Esperamos que os ensaios que apareçam ampliem nossa compreensão deste momento da história para ajudar-nos a situar o renascimento do ciclismo. Ele está claramente relacionado ao papel da Massa Crítica, que é de expandir os limites para a ação direta, tomando as ruas, reabitando paisagens urbanas, revigorando nosso compromisso com o uso do espaço público, e muito mais. Durante a última semana de setembro de 2012, realizaremos passeios diários, uma conferência, um festival de cinema, shows artísticos, mostras de arte, refeições coletivas, festas e concertos em um grande festival para celebrar os vinte anos de transformação política e pessoal.

Vinte anos depois, o que mudou no cenário das bicicletas?

A mudança mais óbvia é o aumento considerável do uso diário da bicicleta nas maiores cidades do mundo. Junto com isso, está o amplo crescimento de uma cultura da bicicleta, baseada no faça-você-mesmo, em oficinas de conserto, fanzines sobre ciclismo, programas de rádio, roupas, arte, e muito mais. Muitas cidades introduziram ciclovias para acomodar o aumento de ciclistas, enquanto outras implementaram áreas de passeio nos finais de semana ou eventuais rotas para facilitar a recreação. Os ciclistas são muito mais aceitos e parte integrada do transporte urbano do que eram há vinte anos.

O que você aprendeu com a Massa Crítica?

Aprendi que a atuação coletiva é mais aceita e bem-sucedida se for ligada ao dia a dia das pessoas e se não exigir uma ruptura drástica no seu ritmo de vida. Isso também confirma algo que eu já sabia: políticas radicais só são bem-sucedidas e atrativas quando são agradáveis, baseadas mais no prazer do que no sacrifício, no sofrimento e na raiva. A urgência por dignidade embasa o desejo da Massa Crítica e dos ciclistas por um tratamento justo. Dessa maneira, ecoa em outros movimentos sociais e manifestações que começam em uma circunstância mais difícil, mais precária, e que buscam a dignidade básica e os direitos humanos.

Você acredita nas bicicletas como meio de transformação social?

Com certeza, mas somente se os ciclistas se engajarem em políticas e estiverem dispostos a repensar seu jeito de viver. Bicicletas também podem ser veículos do tédio capitalista naturalizado.

O que você espera do futuro das bicicletas em todo o mundo? Você acredita em uma progressiva aceitação e no aumento do uso delas?

Sim, claramente. As múltiplas crises econômicas, a ecologia e a anomia social estão levando as pessoas a optarem por bicicletas como uma alternativa saudável e divertida, em vez de sofrer com a estupidez, as despesas e a sujeira da cultura dos automóveis.

Quais países servem de modelo para políticas públicas na área? Como você avaliaria o Brasil e os Estados Unidos nessa questão?

Na minha opinião, há um empate entre Dinamarca e Holanda no topo da lista. Já nos EUA, a cultura do carro está acima de tudo, e todas as conquistas dos ciclistas são resultados de uma grande luta. Ainda passarão alguns anos antes de a bicicleta ser totalmente aceita como uma alternativa normal de transporte, não mais como um brinquedo, um passo para a vida adulta — que implicaria a posse de um automóvel. Acredito que o Brasil está mais próximo dos EUA do que do norte europeu. Mas, entre os brasileiros, com a sua fantástica cordialidade e a sua incomparável vontade de aproveitar a vida, além do excelente clima do país, as bicicletas têm um grande futuro.

Quais são as vantagens de optar pela bicicleta como meio de transporte?

Saúde, melhor coesão social com o mundo que circundante, melhor compreensão da realidade, mais interação com os sistemas ecológicos e naturais, menos tempo perdido trabalhando para pagar um carro, mais tempo para aproveitar a vida.

Entrevista publicada originalmente em agosto de 2011.

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4 comentários para "Sobre pedaladas e transformação social"

  1. Arthur Araujo disse:

    Sem dúvida alguma. Mas é preciso também que seja dada grande atenção aos sistemas de transporte público de massas, como o transporte sobre trilhos, metrôs, bondes, trens, bem como o troleibus, além do desenvolvimento do transporte fluvial e marítimo de passageiros, já que todos esses sistemas acima citados foram , ou estão sendo sucateados, quando não já extintos, tudo em nome dos interesses das grandes corporações automobilísticas e petrolíferas e de um modelo social e econõmico injusto e insustentável sob todos os aspectos.

  2. Concordo plenamente, francisco. Sou iclista amador, uso a bicicleta para ir ao trabalho e para o lazer. Já fui de bicicleta até Garuva, distante de Joinville 40 kms. e até Vila da Glória, outros tantos 40 kms.

  3. Francisco De Assis Nobre Souto disse:

    Estamos engatinhando,porém já quebramos a inércia.Precisamos de mais ciclovias,respeito dos outros condutores e melhorias contínuas da indústria de fabricação das bicicletas.

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